SEPULTAMENTO

 

Os meus olhos pregados

no infinito

como os pregos nas tábuas

cravejados,

e de pontas viradas,

redobrados,

sustentados e fixos

numa curva.

No aconchego da madeira macia,

minhas costas

nos ossos da bacia

consolam meu corpo

tão curvado.

Pelo tempo que tenho acumulado,

a ferrugem do mundo

me comeu,

e a tampa que pregam

me prendeu

para sempre num rito consumado.

Por debaixo da terra

condenado

a ser parte da mesma

e não ser eu.

 

 

 

 

 

 

TORRE DE BABEL

 

O juiz do supremo,

Jeová,

se irrita e sai do sério,

quando seu filho Jesus

vai à noite, ao cemitério.

 

No boteco do Davi,

onde quem manda

é o Golias,

não há funda,

quem afunda

na cachaça, é o Isaías.

 

No salão do senhor Sansão,

quem faz o cabelo

é sua mulher Dalila.

 

As mulheres de Salomão,

o cafetão lá da vila,

choram e sentem solidão

quando estão de barriga.

 

Lúcifer anda arrasado,

o seu mundo virou trevas,

por ter visto abraçados,

Adão e a senhora Eva.

 

Noé, o velho barqueiro,

não gosta de animais.

No entanto, adora um peixe-frito

no barzinho lá do cais.

 

Essa torre de Babel

é o mundo em que vivemos,

onde não há inocência.

Se algum nome ou fato ofender,

é mera coincidência.

 

 

 

 

 

 

A MULHER DA MINHA VIDA

 

A mulher da minha vida,

Sempre é lida em meus versos,

De uma forma ou de outra.

É a sua voz que ecoa

Reclamando meu regresso.

É bem mais que uma amante,

Que uma amiga e companheira.

Necessária como a fonte

No deserto de areia.

A mulher da minha vida,

Entre linhas abstratas,

Põe em mim, doces palavras

E expressão de alegria.

A resumo em poesia,

Tal qual em cartas,

A saudade que nos mata

Se envia.

A mulher da minha vida

É a graça

Que um devoto em desgraça,

Alcançaria.

 

 

 

 

 

 

O GRANDE DIA

 

Ai de nós se não fosse o profeta

Para converter o nosso coração.

Do contrário, Deus feriria a terra

Com terrível maldição.

 

Com o Senhor não há perdão.

Seu grande e terrível dia

Não será de alegria

E sim de destruição.

 

O poder de sua mão

É extremamente acintoso.

Deus é um ser ambicioso,

Quer de todos,

Atenção.

 

Não importa a condição,

Será imposto

Sofrimento e desgosto

Por qualquer contravenção.

 

Deus não quer nos dá lição,

Quer aniquilar a todos

Pelo caráter odioso

Que passou à criação.

 

 

 

 

 

 

FRUTO SEM CASCA

 

Espalhando letras

Sobre velhas páginas,

Semeei palavras

Que insatisfeitas

Deram-me em colheita

Uma grande safra

De um fruto sem casca,

A minha tristeza.

 

Uma fruta fresca,

Presa pela boca

Em que uma ou outra

Tenta mordiscar,

Murcha sem parar;

Se tornando feia,

Seca na areia

Quando o vento dá.

 

Versos pelo ar,

Lágrimas e poeira,

Solidão na mesa

Onde o fruto está

Exposto, sem par,

Sem mostrar beleza,

É minha tristeza

A me alimentar.

 

 

 

 

 

 

CONTRACEPTIVO

 

Eu não sei se é o desespero
que me leva à loucura
quando o sexo estupra
a minha alma,
ou a calma
que advém do meu tormento
pelo tempo
que passou em minha palma.
Movimento anormal
de penetração moral
em sua saia,
e no cheiro da indecência,
feromônio da ciência
em uma jaula.
Uma fera excitante
que no último instante, ofegante,
cospe a vida
no seu couro de borracha.
Não há luta, nem corrida;
há uma triste despedida
de um suposto vencedor
que foi fruto de um amor
e se enforcou
com a própria cauda.

 

 

 

 

 

 

INDECENTE

 

Não sou um cavaleiro imaginário,
apenas um vassalo
que caminha.
Pela realidade,
um escravo
que tem a ilusão
que é livre ainda.
Não sou nenhum beato,
nem um cão.
Eu não uso sermão
e nem batina.
Meu rosto
é palidez,
enquanto expiro.
Meu sexo
sem estilo,
estupidez.

 

 

 

 

 

 

MUNDO FICTÍCIO


Uma criança brincava
Com a comida, na mesa.
Corria de pés descalços,
Sem ninguém a seu encalço,
Pela ruazinha estreita.

Não enxergava a sujeira,
No seu mundo fictício,
Do real desconhecido;
Tudo era brincadeira.

Contudo, era tão bonito
Ver o mundo d’aquela maneira:
Sem ter ódio,
Ser ter vício,
Sem sombra de sacrifício,
Sem pecado
E sem tristeza.

 

 

 

 

 

 

A PEQUENA D'ARC

 

A guria
não gostava de pia,
de casinha ou fogão.
Para ela,
tudo era opressão.
Ela ouvira
sua mãe reclamar
que a mulher tende a trabalhar
só com água e sabão.
Por que não
brincaria de guerra,
de doutora,
de terra na mão?
A guria,
parecia antever
que seu mundo seria
uma doce ilusão.

 

 

 

 

 

 

A SOMBRA

 

Minha sombra
que se perde no escuro,
salta o muro
quando o sol
no céu desponta.

Se arrasta no chão duro,
se encolhe,
se estica,
passa rente a dobradiça
e se perde pela casa.

Mas à noite,
minha sombra cria asa,
voa quando saio a rua.
Pela luz que vem da lua,
minha sombra me abraça.

Me divirto e acho graça
quando atravessa a fogueira.
Minha sombra, não sou eu,
mas é minha companheira.

 

 

 

 

 

 

A GRAÇA

 

Deus me deu o fardo
para eu achar pesado
o termo ser livre.

Deus me deu o espelho
para ver se aceito
esse meu rosto triste.

Deus me deu o segredo
para pensar, eu mesmo,
o que é ser tolice.

Deus me deu a culpa
para eu pedir desculpa
por qualquer deslize.

Deus me deu a dor
para eu sentir pavor
do seu dedo em riste.

Deus não me deu nada,
eu que faço a graça
crendo que ele existe.

 

 

 

 

 

 

QUEM SOU EU

 

Sou um jovem ateu
Que entra na igreja
Para tomar cerveja
E beber café.
Desconheço a fé,
Mesmo na ressaca.
Rio quando a graça
É de um milagre
De ser eu, um padre
Que toma conhaque
Num cálice de vinho
E vive sozinho
Pensando que sonha
Em ser um demônio
Que se sente Deus,
Ser o próprio Deus
Se sentindo humano,
Ser um santo insano

A brincar de ateu.

 

[imagem ©glutter]

 

    

 

Felinto Neto (Apodi/RN, 1966). Escritor, publicou em junho de 2003 seu primeiro livro, Cabaz — com frutos do meu delírio — e em apenas sete anos de extrema dedicação à caneta, em abril de 2010, o trigésimo-quinto, Livro negro — exaltação à morte foi publicado. Ingressou no serviço público aos 19 e aos 25 tornou-se bacharel em Ciências Econômicas pela UERN. Casado, pai de dois filhos, somente aos 34, começou a escrever e catalogar poemas e crônicas. Até então, seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.