Em ano de Copa do Mundo, impossível não evocar, mesmo sem querer, os tempos em que me esforçava por ser um craque de futebol. Não só eu, como todos os meus companheiros de pelada. No fim, terminamos todos no mesmo time, que hoje corre atrás de tudo, menos da bola. Apesar das altas esperanças, jamais passei de um jogador médio, mesmo quando jogava por todo o tempo vago, às vezes o dia inteiro, só desistindo do campo quando o escuro da noite já me obrigava a engolir um frango após o outro, visto que sempre joguei na posição de goleiro.

Só estive jogando na linha quando era para garantir o equilíbrio de forças, nos casos em que o adversário jogava pesado demais. Fui um beque decidido e via-me escalado para esta posição sempre que precisava advertir o outro time de que precisavam maneirar nas agressões. Se o recado fosse entendido, retornava à posição preferida. Caso contrário, continuava na defesa da área, não raro fazendo voar tanto a bola quanto um outro jogador violento. Mas, estranhamente, minha melhor atuação como goleiro não se deu em campo de futebol e, ainda por cima, incluiu alguns belos frangos.

Aconteceu na paradisíaca cidade de Correntina, no sertão baiano, cortada pelo rio das Éguas, um dos rios de corredeiras mais bonito do Brasil. Numa ilhota, isolada do continente por uma pontezinha de madeira, o restaurante Ranchão era o ponto de encontro preferido da juventude. Fazia tempo que não freqüentava o local, e ali havia retornado ávido por reencontrar as paisagens e os amigos do tempo em que meu pai tinha uma casa, na beira do rio, onde costumávamos, eu e minha família, passar as férias.

Paizinho e Alemão, os donos do Ranchão, em homenagem ao meu regresso, convidaram-me para uma galinhada, a ser servida depois que os fregueses da noite fossem embora. Ansioso por me deliciar com a iguaria, cheguei cedo. Logo percebi que tomara uma atitude errada. Como não queria provar nenhum quitute antes do jantar, para não estragar o paladar do prato principal, e como os fregueses se revelavam muito mais boêmios do que imaginava, bem antes de fecharem o bar para iniciar o serviço da galinhada, eu já estava com o estômago pregado nas costas.

Por fim, restou apenas um cliente. Mesmo assim, o sujeito, completamente bêbado, ainda deu trabalho para ser despachado, acrescentado mais alguns preciosos minutos à espera. De qualquer forma, não dava para reclamar demais por ter de se aguardar tendo a visão daquele rio límpido e sentido-lhe a força das águas a raspar as pedras da beira da ilha, refrescando a temperatura sempre alta do sertão, impondo seu ruído selvagem além do som dos falantes. Sem falar da multidão de estrelas tremeluzindo no céu, inspirando sonhos e lembranças boas.

Finalmente, depois que o último freguês sumiu além da ponte, Paizinho e Alemão iniciaram o fechamento do caixa. E, a seguir, o fechamento do bar! Perplexo, observei quando punham as cadeiras para dentro, apagavam todas as luzes e cerravam as portas. Sem entender o que estava acontecendo, tentei reclamar. Disseram-me que logo entenderia e foram me conduzindo em direção à ponte e à cidade.

No início, julguei que a galinhada deveria estar aguardando em algum outro lugar e que eu simplesmente havia entendido errado ao pensar que a comilança se daria no restaurante. Porém, para meu desespero, visto que a fome impiedosa me roia as entranhas, explicaram que ainda tinham de conseguir os frangos. Mesmo achando que deveriam ter avisado antes, para que, no mínimo, eu pudesse calcular o tempo de jejum a que seria submetido, decidi que o melhor a fazer seria auxiliá-los em tudo, de modo que o jantar saísse o mais rápido possível. Quis saber então em que casa compraríamos os frangos, ou se já estavam comprados.

Aí veio a surpresa principal. Era tradição local que uma galinhada para valer tinha de ser feita com frangos roubados. Fiquei pasmo quando percebi que estávamos, àquela hora silenciosa da madrugada de Correntina, simplesmente agindo como ladrões de galinha. Imediatamente quis retornar à pensão em que estava hospedado, onde dona Rosa, quando eu estivera de saída, terminava de cozinhar uma carne assada cujo aroma se espalhava até o meu quarto. Logo a seguir, lembrei que a pensão fechava cedo e que não haveria sequer uma chance de conseguir por lá alguma coisa para comer. Odiando a situação em que estava metido, mas cônscio de que não havia outra maneira de resolver a urgência de alimento que me torturava, tive de dobrar-me à universalmente conhecida força da fome, e topei a parada.

A partir dali embaralhei de vez refeição e futebol, pois a missão de conseguir a matéria prima para o jantar exigia, mais do que nunca, que todos caprichassem nos dotes de goleiro. Nos fins de rua mais afastados, agíamos como um time muito bem treinado, cercando galináceos de surpresa e procurando evitar, com uma ação rápida e eficiente, que fizessem escândalo. A tática era, uma vez localizados os aperitivos emplumados, gritantes e ágeis, levá-los até um beco sem saída. Daí, sempre que se viam acuados, repetiam o mesmo comportamento, e arremetiam contra o trio de larápios, procurando escapar pelos lados, por debaixo das pernas ou até mesmo pelo alto.

Não sei se foi a subalimentação que me fez ir além das forças ou se, de fato, ainda valia meu talento de goleiro. O fato é que fui eu quem conseguiu agarrar os três frangos com os quais voltamos para o Ranchão.

Horas mais tarde, ouvindo o murmurar das águas e pedindo um pouco mais de pimenta, comemoramos a inesquecível noite de ladroeira e esporte. Confesso que foi assim que engoli os melhores frangos de minha vida.

 

 

 
junho, 2010