Dolly olhando o mar, Ubatuba/SP
 
 
 
 
 
 

 

Rua Francisco Sardinha, nº 770. Sempre me perguntava quem teria sido o Sr. Francisco Sardinha. Naquela ocasião, porém, isso não interessava. Não era no meu endereço que residia o problema. O problema morava ao lado. Infelizmente, a cachorrinha de Dona Branca, nossa vizinha, estava doentíssima. Diziam que não havia mais esperança para ela. Nós três, crianças de nove, dez e onze anos, não acreditávamos nessa história de doença fatal. Com certeza, bastaria dar carinho à meiga bassê Bolinha para que ela em pouco tempo se recuperasse, mesmo apesar daquele constante e preocupante catarro verde e do abatimento que tomara conta do pequeno animal de focinho comprido e pelo escuro. E da febre que não cessava, tão alta...

Não corria mais atrás da gente, não pulava mais para o meu quintal. Naquele dia, Dona Branca viera avisar que Bolinha estava mesmo nas últimas, e lamentou que, no bairro, não contássemos com um veterinário sequer. "Mesmo que houvesse um" — falou enquanto se erguia, deixando a cachorrinha deitada na grama, aos nossos afagos —, "Mesmo que houvesse", repetiu, "eu não teria como pagar". Deitada, Bolinha olhava de esguelha, como a entender. "Mas dizem que tem um doutor que atende de graça, toda quarta, lá no Cravinho", acrescentou. Vi a lágrima rolar pelo seu rosto. Enxugou-a e retirou-se, ladeando a casa em direção à cozinha.

Nós continuamos acariciando o pelo quente e muito liso de Bolinha. De vez em quando ela suspirava, esticava o pescoço. Passados uns momentos, encolhia-se e suspirava novamente, emitindo um gemido baixinho e agudo. "Quarta-feira é amanhã", lembrou-nos Evandro. "Vocês topam levar a Bolinha lá?" Estava claro que sim! Bem cedo, logo ao amanhecer.

À noite perguntei a minha mãe, Cecy, se poderíamos ir até o Cravinho para tentar uma consulta para a Bolinha. "De jeito nenhum!", foi a resposta. Ao ver-me de cara triste, reconsiderou, como sempre fazia. Sentou-se, tomou-me pela mão e puxou-me para junto de si: "Você tem mesmo coragem de ir tão longe levando a cachorrinha?". Nem precisei dizer que sim. "Quem vai com você?", quis saber ela. Contei-lhe que iriam comigo Evandro e Leco, mais velhos e com força suficiente para carregar Bolinha no colo pelo longo caminho. Cecy passou a mão em minha cabeça. O gesto significava que aprovava nosso plano. Em seguida, ergueu-se e tratou de escolher uma cesta que acomodasse a cadelinha, para que pudéssemos transportá-la.

O dia ainda estava raiando, quando despertei. Eu adormecera imaginando nossa amiga de quatro patas boazinha, pulando e latindo atrás da gente. Acordei excitado. Encontrei Evandro e Leco já de pé, com Bolinha acomodada na cesta. Tomamos um café da manhã reforçado. Cecy beijou-nos um a um. Iniciamos a caminhada.

O sol de Niterói, no verão, machuca bastante. Quando chegamos ao Cravinho, era quase o meio-dia. Estávamos exaustos. Viéramos nos revezando no esforço de conduzir, pelas alças, a cesta, usada para fazer feira, com Bolinha desfalecida em seu interior. Paramos diversas vezes para descansar, dar-lhe água, fazer-lhe carícias e limpar-lhe o catarro verde. Contudo, estávamos cheios de ânimo e energia. Sabíamos que iríamos curá-la, tínhamos certeza de estar no caminho de sua salvação.

Emocionados, chegamos ao consultório e tomamos lugar na fila de atendimento. Era numa casa isolada, com um quintal amplo, numa rua pobre, de terra batida. Deixei os amigos tomando conta de nosso lugar e adiantei-me até o local das consultas para dar uma espiada no médico. Era um velhinho de cabelos desgrenhados, óculos de lentes fundo-de-garrafa, fala mansa e que demonstrava ter muito carinho pelos animais. Enchi-me de mais esperança ainda ao vê-lo atender com desvelo, apesar de gratuitamente, os gatos, cachorros, papagaios, passarinhos.

Voltei animado e relatei aos outros o que tinha presenciado. Quase aplaudiram. Festejamos dando beijinhos em Bolinha, que reagiu com um uivinho. Ao chegar nossa vez, não nos contivemos de alegria quando o médico pegou nossa amiga no colo. O doutor perguntou: "De onde vocês vieram?" Informamos que da Engenhoca. Ele deitou Bolinha numa mesa. "De tão longe?", inquiriu. Prendemos a respiração, quando começou o exame. Imagino a cena que oferecíamos ao doutor: três guris, apaixonados pelo bichinho doente, olhares ansiosos, tentando salvar-lhe a vida. E, hoje, compreendo sua dor, quando, após examiná-la, apertou Bolinha de encontro ao peito e chorou. Vimos, quando tirou os óculos, seus olhos inundados de lágrimas. Fitou-nos, e, em seguida, nos enlaçou num abraço. Por fim, proferiu as palavras que jamais esqueci: "Vocês a trouxeram tarde demais. Eu sinto muito por terem vindo de tão longe para nada".

O retorno à Engenhoca foi uma jornada penosa.

Um dia me falaram que a família Sardinha, cujo patriarca, Francisco, dava nome a nossa rua, fora proprietária da Fazenda Engenhoca, que deu origem ao bairro. Mas quem merecia mesmo ter seu nome perpetuado numa placa de rua era aquele médico sensível e humano que se dedicava a curar animais de estimação da população pobre. Se não chegou a ser homenageado aqui, que Deus tenha reservado para ele, no céu, uma casa bem bonita — e rodeada pelos bichos que adorava.

 

 

Zoe Maria da Graça de Jesus no jardim, de frente pras montanhas de Beagá/MG

 

 

[Escrito em 2001]

 

 

 

 
março, 2010