Ela aí sonha o inamissível sonho, matinando, na lida absorta do diário, pensamentos de ruína moral...

No rearranjo das fantasias, o mau desejo, avassaladora visão.  Aquele moço, benzinho, rapaz dono da vaca, pulsando macho em seu eu-profundo! Talvez viesse dalguma tristura grande e assim, aconchegados, confidentes, unidos: devido desventura mútua!...

(Ela, da janela, olhos ancorados no azul das montanhas distantes, reinando indagações, varinhas mágicas, banhos espumantes, tudo preparo pro colóquio eternamente desejado, tão assaz adiado...)

Uma cavalgada longa e livre pelas dalas solitárias... No êrmo, o encontro, sob as criúvas floridas. Mais: se apertando, e no amplexo, uma envoltura fluídica repleta de fascínio, magia e acalento... Isso assim num chegado de como quem não sabe o que quer: ir se libertando do acanho e escrúpulo. Só descanso, sossego, ar puro e fragrâncias...

Já deitados na macia relva, o achego: abordagem e apalpamentos. Afagos de mãos sorrateiras, divertidas. Seios túmidos, serpe pulsante na pressão do desejo... Cafunés, sol poente. Alguma palavra inevitável...

O lento desnudar-se ao vento... Assistir, repente, surgindo, livre da tolda, lentamente surrupiada, num movimento oscilatório sem fim, pendularmente emergindo, nervosa e quente, a rola rosicéfala! Carícias... O manejo, manuseio friccionante apurando o ponto, findos receios, troféu à mostra... A mão-aranha subindo, tímida e sôfrega, indo e vindo, zanzando, progredindo, retrocedendo, indo, negaceando, blandicial, molestando em estrangulos, verificando calibre, gargalo e carapuça: minúcias...

(Ah! Pode ser vulgar, mas é assim que ela sonha e se compraz, afãmente, sem meias-medidas: total!)

Comprimento aferido, diminuta distância, namoro cálido, ali: seu totem de expiação, tumescente, latejando!... A exalação do suave aroma do macho instrumento hipnotizando-a... Muito mel, mínima carícia, roçar de línguas: arrepios... Logo sucção, engulimento: tudo assim, cada qual para seu lado, recíprocos lamberes,  como em carta de baralho... Beijos, lubrificância: as essências raras... Na letargia, em extremo oposto sentir subindo, no cetíneo das coxas, igual lisa língua, ávida de encaixes, rumo ao nicho origem dos tumultos... No pavor sacrossanto da possível negativa alheia, a prova do manjar, no recíproco e interminável recheirar-se, no vice-versa, carícias selvagens, demolidoras, lisura rosicler ali, aqui mergulhada rosnadura animal, bigodes em confronto! Tudo chamas devorando, prova dupla: num, o doce creme do marrom chocolate; noutro, o agri-manso do tamarindo. Em tudo, polimentos...

E no turbilhão, imensas ondas invasoras, clarões ofuscantes, trocados fustigos, dorzinhas, paradas táticas... Aí, o lento enleio, o cara-a-cara, vibração conjunta, tortura mútua: o jato adiado, tudo neóns clareando o universo, frêmitos, raios e estrelas em brilhância... Ela alvo do mastro ávido, projétil certeiro em rasgavestes, oferenda cruenta: gotas inaugurais... Intrusão, desonestagem, desmoçamento: tudo no colo da pouca-vergonha, lindo e puro, consciente e bestial, amor-paixão, ofegante e elétrico... Perdidos no tempo, vêm, meteóricos, o auge, o zênite, o ápice e o cúmulo... Jorro irreprimível, cascata de sêmens... Fim lento do vai-vem delirante, totalencaixe, laços perenes, corpos frouxos, bambeza gostosa, exaustão sublime, silêncio, sono... descanso!

(Isso tudo assim pensado, num descascar de alhos ou ariação de caçarola, repetidas vezes, com o sempre olhar perdido no azul das montanhas ao longe, depois que não mais se esqueceu do menino-moço.)

 

 

[ Excerto do conto "O Exôdo" do livro O Reino das Coivaras ]

 

 
 

 

 

 

 

De manhã bem cedo o circo chega: o Lisco-Lisco. Recrutamento de ajudantes, os chapas. Na montagem árdua, dia inteiro, revela-se a inovação: tapumes de latão ao redor, pintados em vermelho-amarelo-azul, dispositivo anti-moleque-por-baixo-da-lona. Ninguém entrasse mais subaixo da grande tenda de velho plástico multicolorido, habitado por tantos novos buracos por onde é coado o piscado das estrelas, depois de apagadas as luzes.

Para a estreia, conforme o anunciado, chegaram da Capital as lutadoras, famosas na luta-livre, gigantes do ringue. Desfilando numa carroceria de caminhão toda enfeitada, envergando colantes malhas esportivas, são deleite e atração para olhos acostumados a saias até os tornozelos. Um escândalo passeando pelas pudorosas ruas de Coivaras... Um rouco alto-falante propõe ultrajante desafio à comunidade dos barbados locais: — Homem qualquer pode, em troca de grande soma de dinheiro, num tira-teima desarmado, tentar vencê-las se aventurando em surras por baixo de qualquer uma delas: Mulher Gorila — a como que tal; Naja Vermelha — a ruiva até dendágua; India Paraguaçu — a morena modelada, caiçaramente; Tia Morgana, a viperina enrugada, maleficamente.

Foi ver o desfile: aí começou o calvário de Talico Bueno. Paixão por mulé-macho!

É maio, as laranjas ilhoas já murchando, rugosas, nas árvores dos pomares.  Findas as colheitas: grãos, espigas e vagens. As ruas de Coivaras se dourando do arroz em casca, tapetes em homenagem à deusa Ceres, dias infindos durando a secagem do cereal. Serviço e trabalho pra toda gente. Muito dinheiro correndo, algibeiras recheadas, o circo sempre vem...

Talico vive dos braços e acaba com o que ganha na cachaça. Recebendo o dinheiro da semana bebe-o até desacordar-se. No outro dia acorda com o dia pelo meio e, numa rotina registrada, diz sempre abanando a cabeçorra:

— Que calor!  Até parece que o sol abaixou um palmo!  Que sede!  

Nessa noite de estreia, contudo, não tomou nenhum trago. Tinha um propósito premeditado?  Conseguisse planejar alguma coisa naquele bestunto? Foi o primeiro a chegar, bilheterias inda fechadas. Foi o primeiro a entrar, camarote mais perto do picadeiro, pertinho donde armaram o tabuado em forma de ringue, almofadas e tatames em capim forrados.

Dali, unidinho, bem próximo, vê marmanjos apanhando de fazer dó. Não sabe como pôde se atrever àquilo, onde arranjou loucura suficiente para desafiar a linda Paraguaçu, longos cabelos negros, uma braveza esculpida nas faces angulosas, uma beleza estampada no corpo escultural.

Começou tomando puxões de orelha doloridíssimos. Foi jogado de um lado para o outro. Tomou vários balões, voando como um albatroz desengonçado e quase se desmanchando em aterrissagens suicidas...

De repente ela se enroscou como cobra em suas pernas e ele, ao tentar abraçá-la, só encontrou o vazio. Foi quando o pegou pelo braço direito, armou firme golpe, chegando a anca e as nádegas em seus baixios machos, tremenda macieza.

 (Ah! Como lutar justa pugna em supergolpes no rostinho, costas, pernas e seios durinhos de uma ferazinha assim?)

Aí, num rodopio, voou sobre ela e tornou a cair... Talico ia apanhando até rir. Parecia gostar daquilo! 

Depois de um tombo e outros, quando a macha gladiadora dava um arrocho final com a cabeça do adversário entre as musculosas coxas, e ele ia desistindo, sufocado em asfixias, ocorre insólito fato... Ela começa a tremer entre gemidos, como se entrando em convulsões, e seus sussurros vão se alteando e podem ser percebidos até pelos moleques dos mais altos poleiros da arquibancada circular que oscila perigosamente sob o peso do grande público.

Suas mãos descem delicadamente até os cabelos de Talico e querem como que arrancá-los, porém sem violência, à quisa mesmo de carícia-sem-jeito. Tudo durando longos minutos até que ela, sem ouvir os urros alucinados da plateia excitada, desmaia, perdendo o combate quando a vantagem era toda dela...

O circo quase veio abaixo! Estava lavada a honra dos machos locais... Os aplausos ajudaram a tirar do êxtase o franzino combatente vencedor. Carregado como herói para fora do ringue, faz passeata (ou volta olímpica) nos ombros dos amigos ao redor do picadeiro, sob a ovação ininterrupta e entusiástica do povo satisfeitíssimo...

Interessante é se ouvir de sua própria boca a narração do que realmente aconteceu naquela noite inexplicável e inesquecível. Quando ele começa a contar, onde estiver, junta a rodinha de curiosos e excitáveis ouvintes:

 "Num golpe de chave de pernas no meu pescoço, que quase me esmaga o atla, ela retorceu tanto as coxas que eu ali quase me afogava no perfume de sua pombazinha se mostrando por causa do muito perto que meus olhos se chegaram e o nariz cheirava, e das retorcidas malhas se entrosando entrevãos adentro. Entre os pentelhos repuxados, me produzindo cócegas e deleite, vi o teso grelinho. Era uma frutazinha macia, úmida e pirra. Tive com ela nos lábios, sobretons, perfumes: unto do fundo. Aí, quando lingüei os gordinhos à minha frente, enfurnando a dura língua loca adentro, uma lambada como que pancada ou pescoção, de pau, chicote ou correia, não sei, sei lá, me doeu demais. Nem porisso eu me afastei daquela felicidade maravilhosa.  Ela se contorcia como uma serpente. Nênias soaram e meu pescoço nérveo foi-se enrijecendo à medida em que suas coxas foram afrouxando a pressão e se tornando suaves forros do arreio que ela me era".

 (Assim ia possuindo a adversária temida à frente do respeitável público.)

 "Quando a custo consegui arrefecer o ímpeto de minha língua, o tempo parecia ter parado e tudo sumiu: uma colônia floral, como que escuridão líquida, se derramou sobre os meus olhos...".

 (Índia, durante os movimentos enérgicos e ritmados da oral entrega, balbucia lascívias, murmura tigrezas indecências. Atordoada, a plateia custa a entender o que se passa na erótica arena. No rosto da fêmea realizada, antes talhado em dureza macha, há agora um semblante carregado de inafáveis suspiros).

 "Só voltei a mim quando quando o juiz me arrastava para o outro lado do tablado, cara lambuzada em méis fêmeos, cueca molhada, pra longe da fera domada.  Fiquei sem jeito de me levantar da lona. Aí a turma veio e me tiraram para carregar nos ombros... Foi aquela festa pra mim...".

Ah! o valor do prêmio — uma nota preta! — Talico juntou ao dinheiro das apostas que ganhou, formando um razoável pé-de-meia. Logo pôs a juros nas mãos duns fazendeiros de café daqui, apertados com as colheitas da safra.

 (Antes de quedar exangue, a lânguida lutadora navega por ondas de prazer. Cada célula sua parece se dissolver num turbilhão povoado de borboletas fosforescentes. De alguma parte de seu corpo exausto, triturado pelo gozo a tanto reprimido, sente fluir uma cachoeira de flores. Quando a multidão atordoada, sem compreender aquele mistério de ausências, se põe de pé, pode assistí-la, entorpecida, numa derradeira convulsão, mergulhar, serena, a profundezas abissais... Fora do circo, uma sinfonia de relâmpagos e coriscos clareia a grande noite coivarense...) 

 

 

[imagem ©paulo marques]
 
 
 
 
 

Oscar Kellner Neto (Delfinópolis/MG). Arte-educador, artista plástico, escritor, professor de gramática e redação. Começou a escrever em 1963. Premiado na 1ª Semana de Arte Moderna de Franca, SP, em 1966, com o poema "Beatniks". Em edição mimeografada, lançou o primeiro livro de poesia Canto de buscas (1968). Produziu textos, poesia concreta e poemas-processos na década de 1960. Recebeu inúmeros prêmios literários nas décadas passadas, e possui livros publicados em vários gêneros literários, entre outros, Fazenda interior (contos, São Paulo: Casa do Novo Autor Editora, 2009).

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