excertos de re/incidências — tentativas cíclicas de esquecimento

 

 

"Tenho de esquecer completamente o nome Lampe".

Immanuel Kant

 

 

0.

 

 

simples

como se voar

fosse fazer fumaça

 

 

(alarde

por dentro

 

onde acompanho

o efêmero)

 

                      

tentar suspender

os pés do chão

 

                  insistindo

 

esvaziar

o corpo

retirando

em pequenas camadas

o acúmulo de dias

na esperança de que

o corpo

voltasse a respirar

um outro compasso

 

 

ausência de provas

de planos

nenhuma armadilha

ou traçado

anteriormente traçado

 

— em vão —

 

a duração

alongada

e os efeitos

do corpo

empilhado

por sobre outro

corpo

        decantando

a cal

 

(gotas

de alambique

respingos

sobre a pele

ferindo

essa superfície

lisa

         fina espessura

de lisonjas)

 

 

leves agulhadas

repetidas

para recolher

toda a água

— hiperidrose —

ao invés de deixar

secando

ao sol

 

leves agulhadas

repetidas

até pinicar

toda a pele

 

sem nada precisar dizer

além de lonjuras

 

pode levar anos

anos se conservado

dentro da geladeira

        a espera do dia

para sair da memória

 

deixar de ser eterno

para ser instante

 

pode levar anos

mas não há pressa

alguma

 

                          (seguimos)

 

 

 

 

 

 

INTERVALO

resolveu vestir

preto

sua melhor roupa

de festa

para ver passar

com lentes

de aumento

e contraste

meu coração porta-

estandarte

— parangolé do pé —

posto em palavra

véu encoberto

de luto

enchendo

um balão

vermelho

d'água

enchendo

até explodir

em rasgos

a noite

o começo

da manhã

quando

cantarolasse

chuva

prenúncio

sob certas

circunstâncias

do casamento

da raposa

 

 

1.

 

 

tirar do corpo

arrancar

 

realizando uma operação

cirúrgica

 

— imantada —

 

as paredes

fixavam polaridades

extremos

mais e menos

nem assim tão exatos

 

           entre essa variação

 

alicate

& navalha

 

instrumentos de manejo

certeiro

os dedos circulam

 

corte de lâmina

a seco

e sangue

 

 

tudo

a céu aberto

 

(e muito sol

luzindo, luzidio)

 

 

contornar e tirar

a pérola

de dentro da pele

guardada ali

antes do banho

                             quando

 

da barriga para cima

                             era noite

da barriga para baixo

                              era rio

 

(meu corpo

uma ostra

uma bolha

flácida

inchada

 

espera

e apenas

 

 

sem flechas

no olhar)

 

tudo é deslize

de mãos

aventura

em viagem

 

patinação

pelo branco

 

se eu vejo seu nome

refletido no espelho

— embaralho —

é um princípio 

de esvaziamento

 

eros  

        =

             zero

 

erro tudo e sinto

pressinto

 

preciso começar outra vez

 

 

 

 

 

 

INTERVALO

equilíbrio

de leque

enquanto

atrás do olhar

ciganos ele disse

pela primeira vez

enquanto cuba

ele disse de novo

repetindo a barba

alisava a barba

os dedos

um alinhamento

todo irregular

se comparado

ao horizonte

longe

escapa a linha

do horizonte

decerto belo

mas não temos

nenhuma outra

evidência

além do olhar

 

 

0.

 

 

esta página

um breve compêndio

de notas enrolado

que abro no jardim

para ver a luz incidir

sobre o branco

da toalha

onde me sento

recolhendo tudo que cai

como um desdobre de mágica

é uma espécie de caixa

recolhendo

tudo que o dia despeja

a noite despende

com muita lentidão

com o passar das horas

 

(é para lustrar a pérola

felpo e seda

lustrar a pérola

sobre a toalha do jardim)

 

sem escorpião ou gatos

sem ferroadas

sem ranhuras no olhar

só acenos

a cada nova volta

em torno da esfera

cada vez mais

límpida

ao passar

das mãos

toques

de carícia

 

sem adiamentos

retorno e vejo

nada

de imediatos

 

 

 

 

 

 

INTERVALO

a vida pede grandes detalhes

para que alguma coisa advenha

é preciso que alguma coisa parta

abandonar o desejo de durar, deixar o branco

ser outra cor: arrepio, firme, flecha e corte

decapita e transborda a luz que capta

 

 

1.

 

 

eros passou e deixou

seu perfume impregnado

nas folhas do jardim

 

assim o jardim

agora agarra

fixando

a essência

do perfume em

flores

frutos

adubo

e umidade

 

tudo em agradável temperatura

ambiente

 

é orvalho do começo do dia

a luz não queima

aquece

 

o perfume que exala

vira noite

vira dia

logo vai embora

 

a essência

vira ausência

evapora

pouco se demora

 

por isso

eros passa

nunca fica

vai em boa hora

 

 

 
 

INTERVALO

vênus de vestido curto

mostrando as pernas

e os pés descalços

leva flores para espaços

ainda vagos quando

guarda toda água

em seu avesso:

                     nuvem,

chuva, choro e mar

 

veloz, desvia

do vermelho

 

depois, a língua

ardendo

mas a quentura

intensa

da pimenta

é só uma questão

de tempo

desaparece

sem delongas

            mais cedo

ou mais tarde

 

 

1.

 

 

como medir a distância alargada do teu olhar

no instante

em que eu

lanço a imagem

à luz

em outra direção

rompendo a linha

preto e branco

uma divisão irrisória

das horas

quando amanheço

sem necessidade

como medir o movimento lento das tuas mãos

no instante

em que eu

me despindo 

me despeço

sem saber direito o quanto dura

enquanto digo

o corpo

a pérola

a barriga

e o rio

uma recolha aleatória

de imagens

uma lista qualquer

improvisando o diverso

do dia

quando deposito reunindo

palavras pelas pedras

levantando em sequência

uma afirmação

que em seguida se desfaz

(mesmo assim

não esqueço o peso

sobre a cabeça

um incômodo

permanente

entre os fios)

agulhas alojadas

por tantos séculos

antes de afiar a forma

das pontas

arrastando

em cada uma delas

um encadeamento

de impressões

— impreciso —

fagulhas de cana

de açúcar

                 mel

& limão

garapa de álcool

adocicando

a manhã

como quem cicia

anunciando

uma nova passagem

de pólvora

excitação

de palavras

por entre as pernas

lixa feita de lima

e sexo

de ventanias

esse dois a dois

sem pausa

só a respiração

lancinante

 

 

0.

 

 

trazia impresso esse mapa

do lugar

abriu quer dizer

era puxar o braço

e ali estava

sua maior invenção

mostrava-me como se fosse

tudo assim

tão óbvio

o primeiro a descobrir

a imagem muda

(não fosse o som

da respiração)

em certas sintonias

esse branco

é tão parecido

esse braço

é o mapa

do lugar

adentrar no novo pelo corpo

descobrindo tudo com os pés

a cabeça colocada em outra direção

arrastada para baixo

força de descida

e queda

quando a gravidade arrisca

o mar tem seus próprios meios

alguma intenção desconhecida

era essa a deixa

e seguiu

à noite

caminhava lendo o mapa

aberto

o braço esticado rumo ao norte

procurando a melhor posição

para semear a pérola

no meu corpo

ao rés do chão

uma reta paralela

ao horizonte

— durante a primavera —

uma coisa qualquer 

em despropósitos

 

 

 

 

 

 

INTERVALO

café preto

vento brando

ventilador rodando

(risco de paralisia)

café preto

vento brando

ventilador rodando

(risco de paralisia)

café preto

vento brando

ventilador rodando

(risco de paralisia)

                                  ab aeterno

 

 

bilhete deixado na porta

da geladeira — enquanto dorme

 

 

"amor,

entrei no teu corpo

de passagem

para ver como era

de bem perto

a diferença entre

este múltiplo de dois

                          expiração

inspiração

                         indo e

vindo

                 (continuamente)

indo e

                           vindo

tomei um susto

com cada coisa

que fui pegando

no caminho

apagando rápido

em cada coisa

que fui deixando

desaparecendo

no caminho

o pensamento

rápido

correndo à mão 

                     — não resisti

escrevi estas

tentativas cíclicas

num só fôlego

procurando

recuperar

o ar

o ritmo

— vazio

                 cheio —

do meu corpo

 

(poço fundo

de dizer

matéria palpável)

 

pego tudo com as mãos —

a palavra amor

teus poros exalam

misturam suor e língua

às letras fortuitas

da palavra amor

arrepio sentindo

repito de novo com as mãos

rabiscos e frêmito

meus dedos inspiram

sem infortúnios

ou qualquer dificuldade

a palavra amor

um gesto duplo

de entrada

e saída

pela contramão

seco as lágrimas

e envelheço devagar

segue a cavalo

sim

bez"

 

 

 

 

 

 

dois indícios de movimento

 

 

1º indício

apresentação do método 

 

escrever para esquecer

 

(repetir por quantas vezes for

necessário — mesmo sabendo

impossível escapar da contradição —

todo método é em essência falho)

 

2º indício –

instrução de montagem

 

acompanha cada parte

na medida em que

encontrar arestas

 

e algumas repetições

 

                              (é para tocar o ar)

 

 

0 - dispersão para dentro

 

concentração para fora - 1

 

(e vice-versa)

 

depois intercala

criando sequências

variadas ao dispor

os poemas

na ordem em que

quiser, i.e.

a que lhe convier

 

usa também os

INTERVALOS

para abrir brechas

entre 0  e  1

 

onde tudo está posto

nada está dado

 

talvez

nem mesmo chegue

a ser um lance

talvez

possa ser chamado

de acaso

acaso objetivo

talvez

 

— como queira —

 

pelas tuas mãos

o poema segue

em outra direção

 

 

[imagens ©van brussel]
 
 
 
Érica Zíngano (1980) reuniu sua produção em artes visuais & etc no 1000 e 1 notas (genéricas). Publicou a plaquete drobapura — arte da meditação (2005) pelo Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura; noite, dias brancos (2008) na Zunái — Revista de Poesia & Debates e alguns poemas no livro XXI poetas de hoje em dia(nte) pela Letras Contemporâneas, 2009. Também publicou o livro fio, fenda, falésia (2010) escrito em conjunto com Roberta Ferraz e Renata Huber, com apoio do ProAC 2009, além de ter rabiscado muitos outros pedaços de escrita por aí, como cadernos de viagem, 1: conversas imaginárias. Faz mestrado na USP em Literatura Portuguesa e edita — com Francine Jallageas, Ícaro Lira e Lucas Parente — a revista de artes e literatura Astro-Lábio [http://astro-labio.net].