Outono de 1970

 

 

Quando o marido lhe confessou que a traíra com sua melhor amiga, ela apenas ouviu. Muda e sem cor. Ele gritou — não vai dizer nada? Não vai me esbofetear ou falar uma série de palavrões ou rasgar a roupa? Ela continuou muda. Apenas olhava no fundo de seus olhos. Estava sem cor e sua respiração se alterara. Ele a olhou sem acreditar e saiu batendo a porta. Ela foi até a geladeira, encheu um copo de água, bebeu sem sede, abriu a porta da sala e também saiu.

Na rua, outono. Folhas secas pelo chão. Folhas mortas. Tudo morto à sua volta. Desceu a avenida Afonso Pena, entrou no Parque Municipal resplandecendo de luz verde e sentou-se perto do lago. Algumas pessoas remavam. Ela encheu os pulmões de ar e ficou pensando em sua amiga. Sua melhor amiga com o seu marido. Na casa dela,  no carro, nos motéis. Toda paixão proibida, dizem, é arrebatadora  e tem alguma coisa de inferno à sua volta, não um inferno refrigerado mas transbordante de chamas em volutas, de chamas que atraem chamas, de fogo explodindo pelas entranhas, membros, por todo o corpo, pelos dois corpos unidos como um só. Depois, ofegantes, eles se beijarão longamente. O teto de espelhos irá refletir seus corpos amantes e as águas da banheira de hidromassagem, perfumadas e em ondas de espumas,  lavarão seus corpos de possíveis pecados. Mas quem ama não peca, eles sabem.

Águas. As do lago são turvas. Folhas secas de outono boiam nelas, com brilhos de chocolate. Um capricho da natureza. Puro impressionismo. As águas chamam, as águas pedem. Seu corpo é atraído por elas. Entrar na água, andar até perder o chão, afundar, debater-se, atravessar outra dimensão. A expressão mundo cruel passou como um raio pela sua mente. Ela já estava se afogando quando o rapaz parou seu barco ao lado dela e puxou-a para dentro. Os lábios dele sugaram os dela e a água suja do lago saiu, aos borbotões. Algumas pessoas estavam na margem do lago olhando os dois. "O rapaz é um herói, salvou a moça",  alguém comentou. Depois se dispersaram e o rapaz levou o barco até a margem esquerda. Sentados sob uma árvore, ficaram mudos por um instante mas em pouco tempo já sabiam tudo um do outro. Ele era solteiro, um pouco mais novo do que ela e morava ali perto. Queria tomar um café em sua casa?  Seu café era famoso no prédio. Foram. Ela estava molhada e tiritava de frio. O café ajudou-a  a  reencontrar o calor do corpo. Ele veio do quarto com uma grande e felpuda toalha azul. Vá ao banheiro e coloque-a, sugeriu ele. Que mulher bonita, ficou pensando enquanto ela fumava, embrulhada na toalha azul. Ele bebeu uma dose de uísque, ela bebericou uma cerveja long-neck direto nos lábios. Ele colocou um cd de música romântica pra tocar e de repente já estavam na cama do rapaz. "Foi a melhor noite de minha vida", ela contaria depois para a sua melhor amiga. Uma outra melhor amiga.

 

 
 

 

À noite coaxamos

 

 

Depois do jantar, a mãe recolheu os pratos e o pai ligou a televisão. O menino limpou a boca na manga da camisa e foi para a varanda. Ficou olhando o fundo escuro da noite, além do alpendre e do jardim. No céu, apenas algumas estrelas. O inverno começava. Como era filho único, o menino se sentia solitário. Gostaria de ter muitos irmãos e adejar pelos campos, no verão, como um deus do calor e da preguiça. Às vezes sonhava que liderava um bando de crianças ruidosas. Mas acordava sempre sozinho em seu quarto junto ao solitário esplendor da manhã.

Desceu as escadas do alpendre, abriu o portão e ficou parado junto ao muro. Atrás de si, o murmúrio da televisão e as panelas entrechocadas na cozinha. Na frente, o túnel escuro da noite com o ruído errante dos insetos. Moravam na periferia de Belo Horizonte, bem afastados de todo mundo. Para irem à cidade, desciam a pé meio quilômetro e pegavam o coletivo no seu último ponto.

A noite ardia de insetos e escuro. E o menino começou a caminhar dentro dela. Lhe dera uma súbita vontade de caçar rãs, era um passatempo a que se entregava com prazer. Às vezes o pai ia junto e voltavam rindo, carregados de moles rãs esperneantes.

O menino, apesar de sentir frio, enfiou os pés descalços na lama, andando ao longo do riacho. Arranhava-se nos espinhos, sem perceber, abaixando a cabeça quando os galhos das árvores eram baixos. Ali era o paraíso das rãs, o ninho esponjoso dos girinos, a casa aquática de deliciosos anfíbios que ele agora sentia pulando entre seus pés com suas línguas retráteis, suas frias coxas enoveladas. Palpitava em tudo o eco dos coaxos.  Lindezas, pensou o menino muito contente. Agachou-se, puxou uma rã pela perna. Soltou-a de novo.  Pegou outra. Tinha muita técnica, talento e arte para pegar rãs. Era o seu esporte favorito. E único.

Segura pelas patas posteriores, a rã se debatia em seu peito, espargindo lama e intervalados lamentos. Então o menino sentiu. Foi muito rápido, coisa de um segundo — um silêncio de sombras, um vazio em repouso, uma luz magnética como um caldo, uma pressão de elevador chegando ao solo. A rã saltou  de sua mão e na sua frente, não muito perto, mas na sua frente estava a coisa. Era um prato de metal do tamanho de um carro, com uma clara luz azul e um ruído doce de motor. Parecia um bicho pastando com inocência, ruminando. O menino não sentiu medo, apenas curiosidade. Sabia o que era aquilo. Era um disco voador. Recebeu paralizado a corrente de luz e frio. Seus olhos brilharam no escuro, ele podia perceber, brilharam cheios de radiação. Alguém tentava lhe passar uma mensagem. Ele não entendia bem o que era, mas era uma mensagem, térmica, cifrada, carregada de tensão. O menino não podia tirar os olhos da coisa que agora se movia em sua direção. Então ele sentiou um pouco de medo, mas não muito medo. Dois olhos duros, adamantinos, o fitavam de dentro da coisa. Em sua volta não havia o mundo se manifestando. Havia a conspiração, o entendimento. Como a idade da sombra, uma coisa antiga enfunada de luz e gelatina, bronze e mercúrio, e ao mesmo tempo nova, novíssima. E então o encanto se quebrou, houve uma espécie de vácuo à sua volta, as rãs voltaram a pular e a coaxar, o mundo se mexeu, seus músculos se distenderam e o menino permaneceu na frente do nada com uma espécie de saudade e febre. Olhou em sua volta, para o céu. A coisa se fôra.

Em casa ele contou com a maior naturalidade — vi um disco voador. Seus pais o olharam sem entender. E então ele repetiu: vi um disco voador perto do riacho, estava parado na minha frente e brilhava. Era redondo, tinha motor e alguém dentro. Os pais balançaram a cabeça e se limitaram a sorrir. Agora vai dormir, meu bem, falou a mãe. O pai deu-lhe um tapinha nas costas — e vai lavar os pés imundos.

Como esse menino tem imaginação, comentou o homem para a mulher. Os dois sorriram e balançaram a cabeça. O homem desligou a televisão. Espreguiçaram e foram dormir.

No quarto, o menino  levitava. Havia uma palavra em sua cabeça — klyckoj. A janela do quarto estava aberta. E foi por ali que a coisa entrou.

 

 

 

 

 

 

 

Duílio Gomes é autor de seis livros de contos premiados nacionalmente, dirigiu o "Suplemento Literário do Minas Gerais" nos anos 70, coorganizou as Bienais Nestlé de Literatura em São Paulo nos anos 80, foi comentarista de livros do "Jornal do Brasil",  tem um conto — "Nada será como antes" — filmado pelo cineasta Breno Milagres [ clique aqui e assista ao trailer ] e edita um blogue de comentários literários e culturais [ http://blogduiliogomes.blogspot.com ]