Decidi que desejo uma toalha nos trinques para abrir meu Tarô Mitológico. Não que eu seja taróloga, cigana, cartomante ou qualquer coisa do gênero (infelizmente), mas as cartas conversam comigo e sempre me revelam o que preciso saber — sem a menor consideração por aquilo que desejo ou espero que elas me transmitam, diga-se de passagem.

Tenho curtido tanto meu Tarô Mitológico, que desejo estreitar minha relação com ele, criando um vínculo de cuidado, respeito, carinho e amizade. Por isso, pensei numa toalha especial onde estendê-lo, como sinal do meu apreço. Quem sabe, minhas pequenas providências práticas de acolhimento ao oráculo não me ajudem a sintonizá-lo cada vez melhor?

Até agora, guardo as cartas dentro de uma caixinha de madeira e envolvidas num lenço de seda, que é o mesmo sobre o qual as estendo. Mas... Eu quero algo mais! O lenço é pequeno ou demasiadamente grande, traz registros indesejáveis da minha encarnação anterior, as cartas não deslizam a contento, ou deslizam demais, ou ficam acanhadas sem ter para onde se espalhar...

Um dia, descobri que poderia encontrar tais toalhas, como eu achava que sonhava, em lojas da produtos esotéricos. Fui atrás. O artigo estava em falta na primeira que visitei, mas fiz encomenda e fiquei esperando... Demorou tanto, que continuei buscando e acabei topando com o mesmo produto em outro estabelecimento, ao alcance do meu desejo, fosse no cartão ou à vista, na hora.

Não gostei da mercadoria, entretanto: pareceu-me tosca demais. Dali, parti direto para lojas de tecidos e aviamentos. E vejam Maria Emília percorrendo meandros da moda como não fazia desde a adolescência, quando a necessidade de roupas novas e "fashion" para conquistar os gatinhos da época resolvia-se mais economicamente em cursos de corte e costura, como aquele da Dona Zulmira, senhora que se tornou ícone entre as garotas do meu bairro no meu tempo.

Acabei fazendo interessantes aquisições, de tecido, linhas e agulhas, sem saber exatamente o que faria com cada coisa — cores, texturas, estilos, recursos. Eu não sabia nada! Fui a uma bordadeira, no intuito de encomendar uma barra para  a minha toalha de tarô, mas ela não se sentiu à vontade, porque só trabalha com máquinas, as quais não sabem fazer a obra que idealizo.

Eu bem que já tinha tentado uns passinhos — digo, uns pontinhos — por conta própria. Sim, porque o que eu quero só existe dentro de mim. O ponto de bordado saía irregular, levando-me a pensar que eu precisaria de anos de treino para fazer algo aceitável.

Foi então que tive um estalo! Tenho um paninho de bandeja bordado por mim na infância, que me voltou às mãos depois que meus pais se foram. Puxando agora pela memória, lembro-me de como fiquei satisfeita com aquele trabalhinho tão simples e canhestro, e do quanto me senti prestigiada pelo fato de minha mãe ter pregado em volta dele uma rendinha, dando acabamento e valorizando minha realização.

Então, por que não começar a bordar minha toalha de tarô por conta própria, sem me importar se os pontos saem desiguais? Surgiu-me a ideia de tentar soltar amarras, de recobrar o prazer infantil de fazer por fazer; de me alegrar com o resultado, apenas porque foi alguma coisa feita por mim — do jeito que pude, gostei, soube e achei bonito.

Já comecei a obra, e não é um exercício fácil. Melhor dizendo, não é fácil manter-me no foco de que seja fácil, gostoso e somente para o meu prazer. Por dá cá aquela palha, que me perdoem os mais jovens que não conhecem a expressão, sinto ganas de desmanchar um bocado do trabalho feito para corrigir um ponto lá atrás que ficou excessivamente defeituoso, e coisas assim, que jamais ocorreriam à criança que um dia fui.

Até a determinação de não voltar atrás para corrigir defeitos é rigidez. E voltar atrás, por querer um trabalho perfeito, classifica-se na mesma categoria — assim como a obrigação auto-assumida de bordar alguma coisa a cada dia, e a negação do prazer de bordar por ter, entre aspas, algo mais importante e/ou necessário a fazer...

Busco a leveza infantil, somente. Quero conseguir voltar a ser criança numa bobagem qualquer, tipo bordar um paninho, tomando apenas meu prazer como parâmetro de excelência, ou seja, sem ligar a mínima para o que outras pessoas vão achar do resultado. Em se tratando da minha pessoa, tal meta não é pouco ambiciosa!

Todas essas reflexões levaram-me a pensar sobre o perfeccionismo e o jeito ambíguo como ele é encarado na nossa cultura — ou sociedade, sei lá. Sim, porque, em dez entre dez entrevistas com famosos, quando se lhes perguntam qual é seu maior defeito, eles respondem, cheios de orgulho, que é o perfeccionismo. Assim, até eu, homessa, confessar contritamente um defeito que só faz a gente ficar bem na foto!

Ser perfeccionista sugere gosto pelas coisas bem feitas e alto nível de excelência pessoal, como se a pessoa que assume ter tal "defeito" esteja sempre buscando aprimorar-se em tudo o que faz, o que é muito louvável em si. Só que, tirando pelo próprio exemplo com meu paninho, cheguei à conclusão de que não é bem por aí...

Quando digo que cheguei a uma conclusão a respeito do tema, não quero, de jeito nenhum, sugerir que descobri a pólvora, pois talvez o assunto já esteja para lá de batido para gente mais rápida no gatilho do que eu. Essa declaração que acabei de escrever, aliás, tipo "pedido antecipado de desculpas por motivo de possível pretensão", vai bem na mão do que, por causa do meu paninho, acabei de aprender sobre o perfeccionismo: trata-se de tremenda mutreta, disfarçando em qualidade um medo terrível de exposição ao julgamento alheio! Tudo precisa estar sempre o mais perfeito possível, para não haver brechas por onde posssam entrar críticas.

Então, na real, o perfeccionista não tem um compromisso consigo mesmo, como ele pode querer fazer parecer e, até, acreditar que seja verdade. Ele sofre, sim, de uma síndrome de sujeição ao outro e, portanto, não tem guarida para ser feliz.

Cadê meu paninho???

 

 
 
março, 2010
 
 
 
 

 

Maria Emília Osório Berthier. Carioca e tijucana, residente em Florianópolis/SC. Graduada em biologia, exerceu os ofícios de técnica em laboratório de hematologia, com especialização no New York Blood Center, e de secretária bilíngue informal. Proficiente em língua inglesa (with honours), conforme diploma conferido pela Universidade de Michigan. Mais tarde, tornou-se estalajadeira no litoral catarinense, adiquirindo razoável domínio do universo hoteleiro e do idioma espanhol. Peregrina do Caminho de Santiago de Compostela. Atualmente, pós-graduanda em Psicologia Transpessoal, estudante de Astrologia e iniciante na arte do bordado. A partir do ano 2000, manteve por três anos um diário pessoal na Internet, em seu finado site intitulado O Sítio da Emília, experiência que lhe revelou o gosto pela escrita, a qual não mais abandonou, porém sempre limitando a divulgação de sua produção às caixas postais eletrônicas dos amigos. Agora, escreve o blogue A Toca da Marmota.