1.

Vez e outra, aclama-se ou reclama-se o espectro de uma possibilidade literária: o Regionalismo.

ACLAMA-SE pela manifestação cerrada e, algumas vezes sem olhar crítico, talvez por conta de certo saudosismo individualizado em torno de um fazer com marcas denunciatórias de lugar pré-marcado, pré-determinado, reservado a iniciados, sob o signo da pureza e do estilo.

RECLAMA-SE pela ausência de representatividade, muitas vezes anacrônica e diluída, a se desfiar ante a contracena de viés urbano, ante o puro preconceito ou por conta da volubilidade do mercado.

Da mesma maneira, o contrário dessas ações – o APUPO e a ILEGITIMIDADE – propicia um antagonismo inocente que enxovalha qualquer manifestação ou, simplesmente, evita-o, como a lançá-lo ao limbo da existência ou da impotência estética.

Feita esta preleção, cabe-nos perguntar se haveria sentido alguma discussão em torno de uma "prisão", que mais ilude, do que se assenta como perspectiva de valor literário, nesses tempos de vale-tudo pós-moderno.

Implicitamente, ou mesmo com esse pretenso intróito rebuscado por um hermetismo estéril, ou com o sabor da polêmica, supõe-nos atinar que, de nada vale o registro ou a discussão em torno do efeito, do sentido, da exigência, da urgência ou da importância do que seja Regionalismo em nosso tempo. A Literatura, sim, essa disciplina comum a todas as coisas, é que merece ser defendida.

 

2.

O pesquisador Durval Muniz de Albuquerque Júnior afirma que "o Nordeste foi inventado", ou seja, é fruto de discursos construídos (e, de certa forma, perpetuados) e repletos de estereótipos petrificados. Acrescento, muitas vezes indevidamente glorificados.

À época de Franklin Távora, de Alencar, de Bernardo Guimarães, de Taunay, as marcas se faziam presentes como se a anunciar e experimentar, sociologicamente, um contraponto ao que era urbano, burguês, aristocrata. A continuidade, o seguimento, antes caprichoso e político, levaram ao modismo propalado por Gilberto Freyre, aceito, e que se tornou grande vertente com os autores de 30.

É óbvio que se produziu com qualidade, com força estética, mas se barrou qualquer outra via de desenlace. Chegara a vez de uma polícia literária que criticava Jorge Amado e seu febril realismo socialista ou sua popularesca coleção de mulheres, quando de outra forma idêntica o princípio policialesco na literatura se cumpria.

Depois disso, passamos a um modismo estrutural. Ficamos condenados ao pertencimento ou à exclusão. Maniqueísmo perverso. E isto não ficou apenas no campo da narrativa. A poesia também padeceu esse conflito.

 

Para recolher algum exemplo, eis um trecho do que escreveu João Cabral de Melo Neto a Carlos Drummond de Andrade: em 30 de outubro de 1940:

 

É pena que a primeira vez que eu lhe escrevo seja para pedir um favor. Trata-se de uma coisa que eu não sei se você já teve conhecimento: o Congresso de Poesia do Recife, cujo manifesto foi subscrito por alguns amigos e por mim próprio.1

 

O poeta pernambucano refere-se em seguida ao fato de que revistas do Rio, por exemplo a Vamos Ler! estaria publicando entrevistas com pessoas incompatibilizadas com o espírito do congresso. Por conta disso, a ajuda dar-se-ia no sentido de Drummond fazer circular o manifesto pelo Sudeste, de modo a atenuar a incompreensão daqueles contrários ao evento.

Aqui, uma reflexão importante, continuação e final da carta, que bem acentua a preocupação de João Cabral, mas também a motivação do embate:

 

Devo esclarecer que nos importa pouco responder a esses ataques. Eles partiram absolutamente de pessoas que não contam. Acho mesmo que suas restrições são a melhor propaganda que o congresso poderia ter. Mas é que outro movimento começa a se esboçar, chefiado pelo eminente sociólogo Gilberto Freyre – ditador intelectual desta boa província –, obedecendo ao "slogan" de que "os tempos não estão para poesia". Como força de argumento, entendo que este último não é em nada mais persuasivo do que os outros. (...)

E por isso não prolongo mais esta carta, com a narração de todas as sabotagens que o congresso tem sofrido nesta terra de sociólogos...2

 

Certamente, ainda estávamos sob os auspícios do Regionalismo de 30, neorrealista, crítico às mazelas provocadas por uma sociedade ruralista decadente, que ainda se impunha. E a marca dessa expressividade estética condizia com o sentimento e ação propostos por Gilberto Freyre. Daí a motivação que colidia com qualquer outra forma de manifestação.

Ora, em outro instante, em nota atenta aos ares de cosmopolitismo da poesia pernambucana, Drummond ao tratar de Mafuá do Malungo, de Bandeira, exclamou:

 

Ah! pernambucanos! Tenho por eles uma admiração estupefata. Dessa província do Nordeste vem a poesia menos nordestina possível. Como a de João Cabral, que ordena seus jogos sábios numa atmosfera isenta de qualquer localismo, qualquer circunstância histórica ou ecológica. Os mesmos Bandeira e Joaquim Cardozo, que por vezes se detêm amorosamente a cantar aspectos do Recife, já superam nesse canto a simples visão imediata. A terra natal fica sendo ponto de partida para uma viagem aos países da geografia interior. Assim são os pernambucanos."3

 

Por esta perspectiva drummoniana, no caso da poesia, fica claro que não é a terra ou a região ou a linguagem ou qualquer outra especificidade similar que importa. Nas entrelinhas, entrevemos: nem o regional nem o urbano, mas o universal que se imprime a partir da boa ligação entre sentimento e talento.

 

3. Chegamos agora a um ponto crucial e que nos foi instigado ao debate nesta mesa: a validade de pensamento entre o que se nos afigura contemporâneo e a presença do jargão regionalista em qualquer de seus matizes. Uma brevíssima retrospectiva...

Em Fortaleza, em fins da década de 70, o movimento Siriará buscou gritar aos quatro ventos sobre a possibilidade de mostrar-se atento aos conceitos de regionalismo e de urbano, numa capital essencialmente rural, com ares de metrópole em formação.

        

                   Nosso regionalismo é um anti-regionalismo.

O "mercado" literário nacional espera de nós a caricatura de nossa realidade, o exótico, o folclore do áspero, do seco, do faminto, do sem terra; espera de nós cacto, cangaço e coloquialismos bizarros. Somente dentro desta roupagem nos permitem lançar nacionalmente nossa "mercadoria."4

 

Esta visão crítica, levou o grupo a propor em seu Manifesto:

 

                   Por tudo isso, somos:

1) Contra a ritualística de um passado literário que formal e conteudísticamente não mais representa a realidade nordestina do momento. Viva Graciliano Ramos, José Américo, Zé Lins do Rego. "O Quinze" de Rachel, João Cabral, Grupo Clã... Viva. Como lição, roteiro, experiência. Superação, não supressão. A seca e o sonho continuam.

A favor de um texto terra (conteúdo); de um texto mestiço (forma); de um texto Siriará (intenção e linguagem).

2) Contra o colonialismo interno do sul e a condenação regionalista da literatura nordestina.

A favor de uma literatura sem vassalagem, nordestinagem, inferioridade. Pensar e sentir o Nordeste e ter o direito de perguntar pelo Brasil. E não somente o Nordeste, território à parte.5

 

E mais, a negar modelos e formas de pensar e escrever importados, impostos, defendendo uma literatura brasileira; assim como a destituir a "máscara policialesca da moral e dos bons costumes (literários).

Para citar alguns autores, o contista Pedro Salgueiro e sua trajetória dentro da narrativa curta de ficção, tendente e recorrente ao fantástico, insinuam lugares que se podem afirmar locais, porém a perspicácia delimitadora insinua não-lugares ou outros lugares, pois o que menos importa é o espaço da ação, se não a imprevisibilidade dos gestos e efeitos.

Que dizer do baiano João Filho e sua tessitura de estirpe rosiana? Das Minas Gerais no texto paulista de Luiz Ruffato? Do rio Guaíba transposto para uma dimensão universal no texto de Amilcar Bettega Barbosa? Como não lembrar Ronaldo Correia de Brito que se desagrada com a temática, questionando com vigor a sua validade, mesmo porque o sertão não é mais o mesmo, pois ele traz uma "visão realista deste novo sertão, que vive os mesmos conflitos do mundo moderno", podendo significar tanto um espaço mítico como um acidente geográfico.6 O próprio autor de Galiléia atesta que "O sertão é um espaço de memória confundido com o urbano."

Vasculhando jornais, suplementos literários, eis que nos deparamos com uma discussão, datada de 1976, em torno dos rumos culturais do Nordeste. O grupo era formado por pernambucanos e "sudestinos" Nagib Jorge Neto, Héber Fonseca, Marcelo Cavalcanti, Marcos Cordeiro, pernambucanos; e Ivan Cavalcanti Proença, Antonio Torres, Galeno de Freitas e Pedro Paulo de Sena Madureira. A discussão estava ali, nas entrelinhas.7 E para quê?

Esta discussão não é de hoje nem tampouco terá fim...

 

4. Em tempos ditos pós-modernos, atitudes estéticas se restringem ou se expandem de tal forma que geram falsos "ismos". Por conta disto, talvez o maior sentido que se provoca seja o da exclusão. Tudo leva, cremos a uma forma perversa de preconceito: o de si mesmo.

Eduardo Portella, em 1981, afirmou:

 

os romances de 30 no Nordeste, sem reproduzir o escândalo revolucionário dos anos 20 no Sul, representam predominantemente um esforço de verticalização, severo e perdurável: um dos principais espaços de realização da ideologia da ruptura e, em seguida, uma central produtora de discursos fortemente interativos."8

 

Eis os pontos: ideologia da ruptura, verticalização de conceitos e formação de discursos interativos. Isto não seria uma forma de exclusão, contrariando o provinciano fato de estampar em vitrines ou estantes a literatura do estado ou da região. Não seria o caso de se pensar em Literatura, sem as algemas de uma pretensa formulação?

 

5. Para concluir: não é momento para discutir o sexo, ou a família, ou a diversidade na/da literatura. Talvez o que importe mesmo seja salvá-la com produções capazes de arrebatar o leitor sem que se curve e se comprima à imposição mercadológica.

O regionalismo é meramente um discurso. E de nada vale se não se dá por competência.

Encerramos, pois, esta nossa reflexão provocativa com as palavras de Carlos Meira, na apresentação brasileira de A literatura em perigo, de Tzvetan Todorov: "Se o texto literário não puder nos mostrar outros mundos e outras vidas, se a ficção ou a poesia não tiverem mais o poder de enriquecer a vida e o pensamento, então teremos de concordar com Todorov e dizer que, de fato, a literatura está em perigo."9

Portanto, sejamos hábeis na criação, independentemente dos percursos amordaçantes de qualquer "ismo" ou tendência restritiva, dentre elas o que se propôs sob a fachada estética regionalista. À literatura, provoquemos um universo sem guetos.

 

4/out./2009

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

BANDEIRA, M. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1983

Diário do Nordeste. Caderno Regional, 27.09.2009.

Manifesto Siriará, 1979. [cópia xerográfica]

MELO NETO, J. C. de. Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. Org., apres. e notas Flora Süssekind. Rio de Janeiro: Nova Fronteira / Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001.

Revista O Saco Cultural O Saco #6, 4º caderno. Fortaleza, dez/96.

TODOROV, T. A literatura em perigo.Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

 

Notas

 

1 Cf. MELO NETO, J. C. de. Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. Org., apres. e notas Flora Süssekind. p. 161.

2 Op. Cit. p. 161-162.

3 Trecho da Nota preliminar publicada no Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 de julho de 1948, sob o título "O Poeta se Diverte". Transcrito in Passeios na Ilha. Rio de Janeiro, 1952; e in BANDEIRA, M. Poesia Completa e Prosa. p. 360.

4 Extraído do Manifesto Siriará, assinado por 24 escritores, cineastas, teatrólogos, poetas, produtores culturais,  jornalistas, todos formadores de opinião e em fase inicial de produção.

5 Idem, ibidem.

6 Trecho de matéria publicada no Diário do Nordeste, Caderno Regional, 27.09.2009, pelo repórter Antônio Vicelmo. p. 3.

7 A íntegra dessa discussão, ocorrida na Livro 7, em 4.09.1976, foi publicada na Revista O Saco #6, 4º caderno, em dezembro de 1976, p. 13-14.

8 Conferência proferida em 23.11.81, na Universidade Federal do Ceará-UFC, sob o título "Ficção e renovação no Nordeste dos anos 30", in Confluências: manifestações da consciência comunicativa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. p.139.

9 MEIRA, Carlos. Apresentação à Edição Brasileira. In TODOROV, T. A literatura em perigo. p. 12.

 

 

 

 

março, 2010