Farnese de Andrade, Gravura Nº 3, 1962
 
 
 
 


 

A prosa poética

 

           

            para Gilberto Mendes e Dojival Vieira dos Santos

 

 

1.

(Vila Socó)

Corpos em chamas se atiram na lama

mulheres e crianças primeiro

caranguejos aplaudem nossa Nagasaki

bebê de oito meses é defumado

enquanto Beatriz

agora entende o poema derradeiro

Beatriz mãe solteira antes de morrer deu um inútil pontapé na porta

 

 

2.

No ar

gritos mudos

a noite branca da fumaça envolve tudo

alguém no bar da esquina

pensa em Hiroxima

nas vozes

Horror e curiosidade acordaram a cidade

se misturando

dentro do inferno olhos clamam

por telefone

o ministro é informado

— O fogo os consome...

A sirene das fábricas não

silencia

Dois serafins passando pelo local

sussurram no ouvido

Do Criador

"Vila Socó : Meu amor"

Uma velha permaneceu deitada

em volta da cabeça na auréola

o último pensamento passa

o coro das sirenes

no meio do breu iluminado

uma garça voa assustada

com os humanos e seu inferno criado

no mangue o vento move as folhas

Um bombeiro grita:

— Ksl. O fogo está contra o vento. Câmbio.

Foi Deus quem quis

diz o mendigo

que sobreviveu porque estava dormindo no bueiro da avenida

Um orgasmo é cortado ao meio

quando o casal percebe o fogo

queimando o espelho

Voltando no tempo

Lamentamos

o movimento do gás

levíssimo iceberg

que converteu fogo em fogo horror em horror

 

 

3.

Vila Socó

estacionou na história

ao lado de Pompéia, Joelma e Andrea Dória

Pensando nisso

ergo nesse poema um memorial

para nós mesmos

vítimas vivas

do tempo

onde se movimenta a morte se espalhando na paisagem

como o gás

que também incendeia o Sol (bomba de extensão infinita)

 

 

4.

Beatriz sentou perto da porta e ficou olhando o fogo. Até

que invade a cena a luz suave de um outro sol frio. Fim de jogo

 

 

5.

(O que não queima)

Beatriz agora é outra coisa e contempla:

raios negros num céu negro

depois brancos num céu branco

— Suavemente penetrei num jardim onde uma única árvore existe.

(O incêndio acaba e a garça pousa no mangue, onde os anjos sonham)

Naquela noite um acordou

andou no meio das chamas

e as chamas

O queimaram.

 

 

(Em Tratado dos Anjos Afogados. LetraSelvagem, 2008)

 

 

 

Razão

 

Fruto do não-entendimento de uma tragédia, a tragédia alcança facilmente a dimensão do inteligível? E sabendo que Adorno ao citar Auschwitz como o limite de um opaciamento do fazer poético, estava na verdade se referindo aos limites da energia do desespero, limites ultrapassados por Celan, o delicado que torna possível o poema apesar do horror, decidi escrever esse poema como um ponto de demarcação entre minha interioridade violentada em seu núcleo pela tragédia e suas camadas significantes do cotidiano e da dimensão burocrática do trabalho, que estas camadas transfiguram como um campo de miragens do horror que não é apenas um cenário. Dante é a referência visível, pensei em uma reportagem escrita pelo Dante de Eszemberger em parceria com Mano Brown. O incêndio aqui é ele mesmo um personagem mítico, como um surto do Deus de Spinoza.

 

março, 2010
 
 
 
 
Marcelo Ariel (Santos/SP). Poeta autodidata, dramaturgo e performer. Mantém, desde 1988, um sebo itinerante chamado "O Invisível". Publicou  pelo Coletivo Dulcinéia Catadora os livros Me enterrem com a minha AR 15 (2007), O céu no fundo do mar (2009) e pelo Selo LetraSelvagem o Tratado dos anjos afogados (2008). Escreve o blogue Cancelando o Teatrofantasma.