©tomas rangel
 
 
 
 

 

 

 

Rodrigo de Souza Leão - Bernardo, por que você escolheu biografar Nise da Silveira?

 

Bernardo Carneiro Horta - Primeiramente, gostaria de agradecer pela oportunidade de estar sendo entrevistado pelo escritor Rodrigo de Souza Leão, em matéria a ser publicada na Germina - Revista de Literatura e Arte. É muito legal. Quanto à escolha de escrever sobre a psiquiatra e escritora Nise da Silveira, eu diria que não foi exatamente uma escolha: foi fato e privilégio. Quando eu tinha 25 anos, em 1987, tive a sorte de conhecer pessoalmente esta brasileira fantástica, que não mudou somente o perfil da psiquiatria, no país — ao longo do século XX, Nise influenciou psicologia, educação, pedagogia, história, política e artes plásticas, entre outros. Sua atuação profissional e humanista vai além do Brasil — há cerca de 30 anos, ela é renomada internacionalmente, sendo homenageada especialmente na Europa. É nome de enfermaria na França, clínica psiquiátrica na Itália, grupo de estudos em Portugal...

 

 

RL - Como era a sua relação com a Doutora Nise?

 

BH - Minha relação com ela era especial. No início eu estava ali como curioso, jornalista e aluno informal do Grupo de Estudos C.G. Jung, fundado e coordenado por Nise. Eu, jovem, excessivamente entusiasmado e ingênuo — ela já idosa, na cadeira de rodas por conta de uma fratura no fêmur. Mesmo havendo esta diferença de 60 anos, entre nós, a verdade é que fiquei fascinado por Nise — Nise mulher, Nise brasileira, Nise mergulhadora-arqueóloga do psiquismo. Conhecê-la foi uma experiência única e impactante — comecei a anotar muita coisa que escutava, durante os estudos no Grupo. O que não podia imaginar é que, 20 anos depois, tais anotações — além da leitura das obras de Nise e de relatos de amigos e familiares — iriam se transformar num livro. Em um primeiro momento, para mim, ali estava a autoridade, a professora. Num segundo, se tornou amiga e mestra. Eterna mestra... Foi a pessoa que mais marcou minha vida. O maior gênio brasileiro com quem tive a chance de conviver foi Nise — a dama do inconsciente.

 

 

 

RL - Qual, ao seu ver, é a passagem ou capítulo mais significativo da biografia que você escreveu?

 

BH - Nise da Silveira viveu 94 anos de existência intensa e repleta de reviravoltas... É difícil falar de uma fase ou outra, especificamente. Posso mencionar temas e acontecimentos que me emocionaram, ao escrever o livro. A infância de Nise, em Alagoas, no início do século XX — a presença valiosa de seu pai e sua mãe. A mudança para o Rio de Janeiro, em 1927, quando ela participou de momento histórico único, no Brasil. Dava-se o período entre-guerras, o modernismo, a difusão do engajamento político... Foi uma fase belíssima — há mesmo quem diga que, se o Brasil foi descoberto em 1500, o país foi inventado por aquelas gerações dos anos 1920, 1930... Acho que faz sentido. O fiapo de identidade que temos, devemos àquelas gerações que deram a vida pelo Brasil. Outro trecho que me impressiona muito é a prisão de Nise — quando esteve na Casa de Detenção da Frei Caneca, com Olga Benário e Graciliano Ramos, entre outros... Ali, ela quase morreu. O encontro de Nise com Jung é outro evento imperdível, contado detalhadamente no livro. A relação dela com os loucos e com os animais merece atenção... Enfim, os ultimos 12 anos de sua vida, na cadeira de rodas, após superar uma cegueira, foram muito marcantes. Tive a chance de ver esta última fase — muito singular, tocante.

 

 

RL - Como se inspirou para escrever um livro tão caudaloso?

 

BH - Loucura e paixão. Foram esses elementos que me levaram a escrever sobre Nise de forma tão intensa. Foram 20 anos de estudos, nos quais li duas vezes a obra dela (cerca de 10 livros, muitos textos e matérias na imprensa), 12 anos de convivência — e mais quatro, nos quais me arrebentei para finalizar a obra. Terminei no segundo semestre de 2008, é o meu primeiro livro. Os originais contaram com a leitura de cinco pessoas, para eventuais correções de conceito, norma e gramática. Ao final do processo, antes de o livro ir para a gráfica, ser impresso, me deu uma insegurança tal, que o reli oito vezes... Só depois, foi impresso. Foi um processo, ele todo, incrível. Um livro como este, Nise — Arqueóloga dos Mares, nunca mais escreverei. É coisa única, é Nise — com sua unicidade, inteligência, sensibilidade e brilho inigualáveis.

 

 

RL - Qual a diferença entre o perfil de Nise, feito pelo poeta Ferreira Gullar, e a sua obra?

 

BH - O poeta Gullar — que foi amigo de Nise durante quase 50 anos... — escreveu um belo perfil sobre a grande brasileira. É bem redigido, agradável, instrutivo — perfeito para iniciantes na obra e na vida da senhora das imagens. E mais... Quando Gullar o escreveu, ela ainda estava viva, foi a única obra biográfica autorizada por Nise. Gosto muito — intitula-se Nise da Silveira — Uma Psiquiatra Rebelde. Até o título foi estabelecido como ela sugeriu. Já meu livro é outra coisa: quando a conheci, anotava histórias sobre sua vida e sua obra, na marra. De cara, ela não gostava, reclamava — me achava imaturo, solto, aparentemente oportunista... Não dei bola — anotei de qualquer maneira. Ao final de 12 anos, eu tinha uma pasta vermelha abarrotada com cerca de 400 frases e episódios maravilhosos. Só então é que a ficha caiu e pude ver que todo aquele material poderia, de fato, se tornar um livro diferenciado. Meu livro é grande, tem 400 páginas. Nele, cito pessoas, fases, episódios, impressos, instituições, animais e demais elementos que marcaram a vida da fundadora do Museu de Imagens do Inconsciente. Quando alguém me diz que leu o livro todo, chego a levar um susto... Leu todo?! Isso, em tempos de audiovisual, tecnologia hiper-avançada e internet, é um milagre. Um privilégio. O livro, em geral, tem causado nos leitores as seguintes reações: paixão, susto ou fascínio. Acho compreensível: era exatamente isso que Nise causava nas pessoas.

 

 

RL - Por que o título "Arqueóloga dos Mares"?

 

BH - É simples, mesmo parecendo complexo. Nise era apaixonada por dois homens que mergulharam no psiquismo, na "cuca" das pessoas: Sigmund Freud e Carl Gustav Jung. Esses dois gênios, juntamente com Wilhelm Reich, arrebentaram a boca do balão do universo psi, revolucionaram a psiquiatria, a psicologia, a cultura... Então, Freud — um dos maiores crânios do século XX — afirma, em sua obra, que psicologia e arqueologia são matérias diferentes que se dão de forma análoga e similar. Tal qual o arqueólogo, aquele que deseja investigar o psiquismo terá de escavar (mergulhar...) em sítios arqueológicos da mente, da história de nossas civilizações. Sem tais escavações, não há como rastrear o psiquismo. Portanto, o elemento "Arqueóloga" diz respeito a isso. Já o elemento "Mares" está presente pelo fato de o mar e o oceano serem, por excelência, representações do psiquismo. Portanto, Nise — Arqueóloga dos Mares. Uma Nise que vestia o escafandro e mergulhava fundo, sem medo, para obter conteúdos (em geral, imagens) a serem estudados. É fascinante...

 

 

RL - Como você encara a doença mental, mais especificamente a esquizofrenia? Nise mudou muito a sua cabeça?

 

BH - Sim, o convívio com ela mudou minha cuca e minha vida. Era figura polêmica, ora amorosa, ora agressiva. Era humaníssima, porém gravemente marcada por perdas e traumas. De repente, tornava-se dura e rigorosa. Com ela, aprendi a ser menos ignorante e preconceituoso. Menos aburguesado e arrogante. Aprendi a falar menos e escutar mais. Aprendi a ver beleza em coisas e pessoas aparentemente feias ou inadequadas. Então, a vida se torna uma outra espécie de beleza, mesmo com todos os seus horrores e a condição humana, ao mesmo tempo, admirável e terrível.

 

 

RL - A importância de Nise no Brasil é inegável. Qual a importância de Nise para a psiquiatria mundial?

 

BH - A importância dessa mulher para o Brasil e para o mundo é indiscutível e, cada vez mais, isso se tornará claro, visível, transparente... Vejo na reação das pessoas que lêem o livro que escrevi: admiração, emoção, forte impressão, sofrimento, dor, reconhecimento... Nise foi ao fundo do que há de essencial na existência — era implacável, não havia meio termo: era tudo ou tudo. Era impressionante, de dar medo e, ao mesmo tempo, admiração. Ela destilou sua personalidade, sem recuo ou perdão, fez com que toda a matéria de sua vida e obra fosse peneirada e filtrada, ao máximo. Era uma mulher que gerava amor ou ódio — não conheci quem fosse indiferente a ela...

 

 

RL - Quem são os escritores que fizeram a sua cabeça?

 

BH - Os escritores e artistas das obras-primas me salvam, dia-após-dia. São meus ícones, balão de oxigênio, salva-vidas. Quando vejo tudo turbilhonado — repleto de violência, agressividade, barbárie... —, a única coisa que me salva é a arte, a poesia. Então, vamos falar de autores: Platão, Shakespeare, Machado de Assis, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Lima Barreto, Castro Alves, Manuel Bandeira, Drummond, Vinicius de Moraes, Michel Foucault, Roland Barthes... Uma constelação. Obviamente, há outros. Brilham, me iluminam.

 

 

RL - Qual o seu próximo projeto?

 

Bernardo Carneiro Horta - Quando lancei o livro sobre Nise, aconteceu algo que eu não esperava. Eu sabia que um livro, em tom jornalístico, sobre a vida e obra dessa mulher causaria impressão, seria bem-recebido, mas nunca pude imaginar que geraria o impacto que gerou... Em 40 dias, a primeira edição (bancada por mim, minha mãe e meu pai) esgotou. Então, em 50 dias o livro ganhou editora (Aeroplano) e uma segunda edição, com capa mais bonita. Agora, ele está por todo o Brasil — isso me parece um sonho, uma revelação. É a mais concreta prova de que faltava uma obra acessível sobre a doutora, para tanta gente curiosa sobre tal personalidade. Nise era extraordinária... Por tudo isso, meu próximo livro precisa ser sobre uma pessoa igualmente apaixonada por uma idéia, pelas criaturas, por um país, um sonho. Paixão total. Já a escolhi: é mulher, é brasileira, é escritora. Foi educadora, abolicionista, republicana. Revolucionária, espírita, libertária. Seu nome? Ainda é segredo — eis a melhor parte... Basta dizer que essa mulher, sobre quem escrevo agora, nasceu em 1853. Quando jovem, seu apelido era "perigosa". Quando faleceu, em 1919, se fosse católica e italiana, rapidamente se tornaria santa.

 

 

RL - Como você gostaria que Nise fosse lembrada?

 

BH - Imagem de força, coragem, alegria, luta, revolução, esperança e fé inquebrantável. Quanto me lembro de Nise, assim, sempre repleta de luz e energia, confesso que me sinto fraco e vulnerável — carrego um fiapo da identidade radiante de Nise da Silveira comigo. No que se refere à doutora e à forma como ela gostaria de ser lembrada, é preciso citá-la: "Quero ser lembrada com emoção...". Sim, lembrar de Nise com emoção. Não é difícil — basta ler suas palavras, rememorar sua figura fisicamente frágil, que continha em si um gigante de potência e beleza.

 

 

RL - Por que Nise não ganhou o Nobel?

 

BH - O que sei é que foi indicada uma ou das vezes. Mas sabemos que Prêmio Nobel para essas bandas — América Latina, Brasil — é coisa rara... De toda forma, verdade seja dita: ela nunca fez questão de Nobel nenhum — o grande sonho de Nise era ver a humanidade socialmente mais justa, mais solidária e compaixonada...

 

 

RL - Como ajudar na divulgação da obra de Nise?

 

BH - Lendo Nise, lendo sobre Nise — realizando entrevistas como esta, que Rodrigo de Souza Leão assina na revista Germina. Quero deixar registrado, inclusive, que o encontro com Rodrigo é especial, e seus comentários sobre o livro que escrevi me emocionaram. Assim como minha leitura de seu livro, Todos os cachorros são azuis, me emocionou também. Rodrigo é escritor diferenciado. O texto de Rodrigo é direto, escrito como foi vivido e sentido — é ostensivo... Gera interesse, constrangimento — instiga. A melhor maneira de divulgar a obra de Nise da Silveira é Rodrigo, aqui, entrevistando Bernardo, em difusão que germina. Por isso, quero lhe agradecer.

 

 

RL - Seu livro tem algum mote específico, um tema em particular?

 

BH - Sim: a tentativa desesperada de ver sentido na vida e nas pessoas. Uma espécie de loucura... Como dizia o filósofo francês Antonin Artaud: "Os estados místicos do poeta não são manifestações de delírio. São a base de sua poesia. Se eu não acreditasse nas imagens místicas de meu coração, não conseguiria dar-lhes vida. Nunca ninguém escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu, inventou, a não ser para sair realmente do inferno".

 

 

RL - Qual o papel do escritor na sociedade?

 

BH - Enfim — e novamente — cito a mestra Nise: "A principal função do intelectual é a denúncia". Quando alguém profere a palavra escritor, só a concebo se na essência dessa função houver a fúria de gritar o que há de podre, de ruim e terrível na atuação da espécie humana. Fora dessa esfera, ao meu ver, não há escritura que valha a pena — a impressão da palavra vazia é mero gasto de papel, abate de árvores. Espero, sinceramente, ao concluir e publicar Nise — Arqueóloga dos Mares, ter conseguido me aproximar um centímetro de tal objetivo. Se o consegui, então sou um escritor feliz.

 

 

 

 

março, 2009
 
 
 
 
 
 

Bernardo Carneiro Horta nasceu no Rio de Janeiro, em 1962. É jornalista, formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Publicou Nise — arqueóloga dos mares (Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2008). Além de autor, colabora para jornais e revistas. Atuou em publicidade, assessoria de imprensa e elaboração de roteiros, sendo especializado em propriedade industrial.

 
 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há flores na pele, e de Todos os cachorros são azuis (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008) entre outros. Participou da antologia Na virada do século — poesia de invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái - Revista de Poesia & Debates. Edita o blogue Lowcura. Mais na Germina.