Filósofo, professor, pesquisador e tradutor, Joaquim Brasil Fontes é atualmente titular da disciplina Leitura e Produção de Textos na Universidade Estadual de Campinas (SP) e coordenador do GEISH - Grupo de Estudo Interdisciplinar em Sexualidade Humana da Unicamp, onde desenvolve pesquisas sobre erotismo e sexualidade, no horizonte das literaturas clássicas e modernas. Atua ainda nos Grupos: Poesia da Idade Imperial Romana, Diversidade em Educação e na área de Educação, com ênfase em Literatura e Ensino, Literatura Comparada, Literaturas Clássicas — grega, latina e francesa (séculos XVII, XVIII e XIX) —, particularmente nas questões ligadas à narrativa, poesia, teatro, ensino de literatura e leitura.

 

Fiz duas entrevistas até agora com o Joaquim, que foi meu orientador no mestrado na Unicamp, sendo que uma delas pode ser lida clicando aqui, para se ter uma idéia bem completa do seu estilo e linguagem.

 

Nesta entrevista, ele fala especialmente dos dois últimos livros publicados: Os Anos de Exílio do Jovem Mallarmé (São Paulo: Ateliê Editorial, 2007) e Hipólito e Fedra — Três Tragédias (São Paulo: Iluminuras, 2007), com a tradução de três tragédias sobre o mito de Hipólito e Fedra, escritas por Eurípedes, Sêneca e Racine, trabalho com o qual ganhou o Jabuti de tradução de 2008. Joaquim Brasil Fontes fala também de seus projetos em andamento: um livro sobre o poeta romano Ovídio e um vídeo em parceria com a artista plástica Fúlvia Gonçalves, que está sendo realizado por Renato Kerr. [Ana Lúcia Vasconcelos]

 

 

 

 

 

Ana Lúcia Vasconcelos – Joaquim, vamos começar então por este livro: Os Anos de Exílio do Jovem Mallarmé, que saiu pela Ateliê Editorial (SP) em 2007 e ao qual você já se referiu na nossa última entrevista. Como foi que você chegou a ele? Enfim qual é a história deste livro?

 

Joaquim Brasil Fontes - Este livrinho é resultado de uma releitura de Mallarmé, que começou no ano de 2001, quando fui convidado para dar um curso em Belém, no Instituto de Artes do Pará. Uma série de palestras, com o título: a Poética do Silêncio... O diretor do Instituto era, na época, um poeta que havia sido meu orientando de mestrado, João de Jesus Paes Loureiro.

 

 

ALV - Porque você gosta de Mallarmé...

 

JBF - Sempre gostei muito, mas voltei a ele com atenção especial naquele momento. Li toda a sua correspondência, reli e repensei a obra dele. Meu livro nasceu daquelas palestras, num curso destinado basicamente a escritores, um público que desafiava qualquer diferença que uma visão acadêmica da escrita pudesse traçar entre "grandes" autores e "pequenos" escritores. Eram funcionários públicos, estudantes, escritores "de verdade", intelectuais conhecidos: pessoas que tinham ousado lançar uma palavra que seja "no papel que o branco defende", como diria Mallarmé. Eram todos escritores, portanto. Uma coisa muito bonita. Eu já tinha dado um curso sobre Safo em Belém para o mesmo público, e a sensação era de que ali todo mundo escrevia, era poeta, delirava. Uma coisa fortíssima. Belém me marcou muitíssimo. Quando fui ao Museu Goeldi, tive a sensação de pôr um pé na pré-história: estranhos peixes nos tanques, entre o mineral e o animal; um lago cheio de tartarugas imensas, animais nunca dantes vistos. E eu ali, no coração do país tropical, falando de Mallarmé, um poeta hermético, obscuro, um poeta dos poetas! Quanto o livro ficou pronto, o Instituto de Artes do Pará não pôde editá-lo, por questões burocráticas. Recorri ao Plínio, da Ateliê, que criou um lindo projeto gráfico para o livro.

 

 

ALV - E como foi esta opção pelo jovem Mallarmé?

 

JBF – Todos conhecem o Mallarmé do Lance de Dados, o Mallarmé maduro. Voltei-me, porém, naquele curso para o poeta quando jovem, de quem tentei fazer um retrato: um professor de uns vinte e poucos anos, recém-casado, trabalhando em cidadezinhas da província francesa. Foi ali, entre aulas e correções de exercícios, às vezes em meio a crises profundas de depressão, que Mallarmé, descobriu, inventou, encontrou a sua poética do silêncio, do vazio, do nada. Embora ainda marcado pela leitura apaixonada de Baudelaire e de Poe, e contemporâneo da geração parnasiana (os primeiros poemas de Mallarmé serão publicadas pela revista parisiense dos parnasianos), ele já está rompendo com a tradição poética do pós-romantismo. Tomemos, por exemplo, o poema Suspiro, ainda baudelairiano: nele já se esboça, talvez pela primeira vez, a frase poética que será — que já era — a de Mallarmé, um abstrato continuum, aéreo, e, no entanto carnal:

 

Minha alma para tua fronte em que sonha,

Ó doce irmã, um outono juncado de sardas,

E para o céu errante de teu olho angélico

Eleva-se, tal num jardim melancólico,

Fiel, branco jorro d'água para o Azul suspira!

Para o Azul comovido de outubro pálido e puro

Que mira nos grandes tanques seu langor infinito

E deixa, na água morta onde a fulva agonia

Das folhas erra ao vento e cava um frio sulco,

Arrastar-se o sol amarelo de um longo raio.

 

 

ALV - Cite alguma coisa que seja bem característica da sua poética nesta época, que depois vai se consolidar ao longo de sua carreira?

 

JBF – Lembro-me imediatamente do chamado "soneto em yx", um poema em que todas as rimas são em yx e or(e). Há, em torno desse soneto, uma verdadeira antologia de estudos críticos, como se ele fosse um enigma à espera de uma solução. Ora, Mallarmé é exatamente o poeta do insolúvel mistério, tão bem representado pela palavra ptyx, central neste soneto. Quiseram traduzi-la por "concha", mas ptyx é o puro índice do intraduzível.

 

 

ALV - Ele foi o inventor dessa palavra?

 

JBF - Não, a palavra é grega. Posso ler minha tradução do soneto?

 

 

De unhas puras no alto dedicando o seu ônix,

a Angústia esta meia-noite sustém, lampadófora,

muito sonho vesperal queimado pela Fênix

que não recolhe alguma cinerária ânfora

 

nas credencias da sala vazia: nenhum ptyx,

abolido bibelô de inanidade sonora,

(pois o Mestre foi sorver lágrimas no Styx

com este único objeto de que o nada se honora.)

 

mas junto à vidraça ao norte vacante, um ouro

agoniza segundo talvez o adorno

de licornes coiceando fogo contra uma nixe,

 

ela, defunta nuvem no espelho, embora

que, no oblívio fechado da moldura, se fixe

de cintilações  no mesmo instante  o séptuor.

 

 

Aqui, cada palavra tem um sentido, e assim também cada frase; mas palavras e frases se unem, numa estranha sintaxe que visa a desfazer o sentido, no momento mesmo em que ele desponta. Uma estudiosa belga encontrou uma raiz grega na palavra ptyx: ela reenviaria para a idéia de "dobra", a partir da qual aquela senhora propôs, para ptyx, a significação de "concha". É a partir daí que Octávio Paz traduziu, reinterpretou e escreveu um belíssimo ensaio sobre o "soneto em yx". Tanto a tradução quanto o seu ensaio trazem, na verdade, a marca do gênio e da poética do Paz. O mistério de Mallarmé permanece. Paz é fogo, Mallarmé é gelo.

 

 

ALV - Mas o gelo queima. Ou seja, ele é contraditório?

 

JBF - Contraditório? Um estudioso de Mallarmé disse, certa vez, que, nele, "a linguagem se detém no limite extremo, onde é ainda possível criar o espaço em que o Nada pode sobreviver". Ouça, por exemplo, este soneto:

 

meus livros fechados no nome de Pafos

diverte-me eleger com o gênio somente

uma ruína, por mil espumas bendita

sob o jacinto, ao longe, dos dias triunfais.

 

corra o frio com seus silêncios de foice,

não vou ulular ali uma vazia nênia

se esta branquíssima luta à flor do solo negue

a todo lugar a honra da paisagem falsa.

 

minha fome que nenhum fruto aqui sacia

encontra em sua douta falta um sabor igual:

que um esplenda de carne humano e rescendente!

 

o pé nalguma serpe em que nosso amor se atiça

penso mais tempo ainda talvez perdidamente

na outra, no seio em fogo de uma antiga amazona

 

Ouça este outro, em que um leque se fecha, se desdobra e de novo se fecha na fímbria de um bracelete:

 

ó sonhadora, para que eu me atire

na pura delícia sem caminho,

queira, por uma sutil mentira,

guardar minha asa em tua mão.

 

uma aragem crepuscular

vem a ti a cada pulsação

cujo lance cativo recua

o horizonte delicadamente.

 

vertigem! e então estremece

o espaço como um grande beijo

que, louco ao nascer para nada,

não pode nascer nem sossegar.

 

sentes o paraíso selvagem

assim como um sorriso escondido

escorrer-te do canto da boca

ao fundo da unânime dobra!

 

o cetro das margens cor-de-rosa

quedos nas tardes de ouro, é este

branco vôo fechado que pousas

de encontro ao fogo de um bracelete.

 

 

ALV – Aqui ele está mais com sentido, pelo menos naquela frase: "então estremece o espaço como um grande beijo", acho eu...

 

JBF - Não. Aqui, ele continua naquele limite extremo, em que ainda é possível sobreviver o Nada. De onde, sem dúvida, essa espécie de angústia que acompanha — pelo menos para mim — a leitura de Mallarmé. Os objetos, os seres, as pessoas, as ocupações mais "normais" de um pequeno-burguês se transformam, sob a pena (se você me permite usar esta metáfora antiquada) de Mallarmé, em algo inquietante, em algo que acontece, não neste nosso mundo "real", mas no coração da linguagem que aponta para "outro" mundo:

 

Toda a alma resumida

Quando lenta a expiramos

Em círculos de fumaça

Abolidos noutros círculos

 

Atesta algum charuto

Queimando sábio por pouco

Que a cinza se separe

Do claro beijo de fogo

 

E o coro das romanças

Voa em teu lábio assim

Dele exclui se tu começas

        

O real porque é vil

Muito exato o sentido rasura

Tua vaga literatura.

 

Você percebeu o quanto a ausência de pontuação contribui para a beleza desses versos? Carlos Drummond de Andrade escreveu, já não sei onde, que a ausência de pontuação confirma, em Mallarmé, sua "misteriosa diafaneidade" e a libertação de "todo compromisso terrestre". Mallarmé fala no corpo de uma ausência, que é a de Deus. Se você me permite, vou contar aqui uma anedota: Mallarmé chegou a Besançon (uma cidade em que vivi também certo tempo) em 1866. Ele tinha na época pouco mais de vinte anos. "Antiga cidade de guerra e de religião, sombria, prisioneira", escreve ele numa carta ao poeta François Coppée. Um ano depois, queixa-se ao amigo Cazalis: Besançon, "de clima negro, úmido, glacial"... Nesta mesma carta, ele declara que tinha passado, ali, "um ano terrível":

 

Meu pensamento se pensou, e cheguei a uma Concepção Pura. Tudo o que, em conseqüência, meu ser sofreu durante esta longa agonia, é inenarrável, mas por felicidade, eu estou perfeitamente morto, e a região mais impura em que meu Espírito possa se aventurar é a Eternidade, meu Espírito, este solitário habitual de sua própria Pureza, que nem mesmo o reflexo do Tempo obscurece.

 

 

ALV - Perfeitamente morto é ótimo! Mas ele está aqui numa busca de transcendência não?

 

JBF - Um pouco mais adiante, na mesma carta, ele fala da sua luta contra "o velho e maldoso pássaro, vencido, felizmente, Deus". E acrescenta na profundidade de uma angústia atravessada por todas as luzes da ironia: "Mas como esta luta aconteceu sobre sua asa ossuda, que, numa agonia mais vigorosa do que eu teria esperado dele, tinha me levado nas Trevas, caí; vitorioso, perdidamente e infinitamente — até que um dia voltei ao espelho de Veneza, tal como tinha me esquecido muitos meses antes".

 

 

ALV - Ele sofria horrores...

 

JBF - Sofria. Sofria nesses debates metafísicos. Sofria na sala de aulas, com seus alunos indisciplinados. Sofria com a pequenez da província francesa. Mas é ainda na província que ele esboça a primeira versão do famosíssimo A Tarde de um Fauno, mais tarde musicado por Debussy e dançado pelos Ballets Russes. É na província que ele encontra os primeiros versos de Herodiade, poema que nunca haveria de terminar... Herodiade: Ó espelho! / Água fria pelo tédio em que teu quadro gelada / Quantas vezes...

 

 

ALV - Por quantas cidades ele passou, na província francesa?

 

JBF - São três cidades. Ele chegou a Tournon com sua Marie aos 21 anos de idade. Vem depois Besançon e, finalmente, Avignon que é uma pequena jóia medieval. É ali que Mallarmé escreve Igitur, um texto enigmático, um conto em que, a rigor, não acontece nada e tudo acontece. Você se lembra daquela estranha figura que, neste texto, desce uma escada em caracol para chegar ao ponto em que se bebe "a última gota que falta do frasco do nada"?

 

 

ALV - Nossa! A última gota que falta do frasco do nada é muito hein!

 

JBF - É muito. Esse conto foi lido por Mallarmé para uns amigos poetas, de passagem por Avignon. Alguns se desconcertaram. Catulle Mendès ficou literalmente atordoado, perguntando-se "O quê? É a isto, a esta obra da qual até o assunto não se revela jamais, cujas palavras não significam nunca seu sentido próprio, que Mallarmé chegou, depois de um esforço tão longo de pensamento, ao termo de um mal tão estranho que ele suportou tanto tempo recluso em seu sonho?". Igitur é uma espécie de "conto filosófico" em que tudo se passa à meia-noite. Um quarto recolhe a quebra da hora. Tapeçarias estremecem, sepultam. Um rosto no espelho, apenas iluminado, se destaca. E, sobre a mesa, a palidez de um livro aberto... O texto só foi publicado após a morte do poeta, mas a partir de uma reformulação dos rascunhos que tem sido contestada pela crítica moderna.

 

 

ALV - E que foi feita por seu genro depois da sua morte?

 

JBF - Exatamente. Eu gostaria também de lembrar que termina em Avignon o "exílio de Mallarmé". Ele deixou a velha cidade em 1870, no momento em que a França estava sendo invadida pela Prússia. No coração da guerra, portanto. Ele parte para Paris, enquanto Marie dá a luz ao seu segundo filho, um menino.  E se você me permite, vou acrescentar aqui uma curiosidade: o nome de batismo de Mallarmé era Etienne. É a partir desse momento que ele adota, de uma vez para sempre, a versão grega desse nome: Stéphane. Com o nome nascia o novo poeta, Stéphane Mallarmé. E é em Paris que ele vai aos poucos sendo conhecido pelo happy few, pelos poucos, pelos eleitos...

 

 

ALV - Pela nata?

 

JBF - Mallarmé vivia num minúsculo apartamento situado na Rue de Rome, onde recebia, nas terças-feiras, nos mardis, um grupo de eleitos. As fotos que temos desse apartamento mostram um local de pulsantes memórias: tapetes persas comprados em Besançon, um espelho de cristal, tesouros de obras impressionistas nas paredes, uma cama de ferro batido, o gabinete japonês de laca em cujas gavetas estão importantes anotações manuscritas. Às dez horas, Vève, a filha do poeta servia discretamente um groc aos convidados, e não é difícil imaginar Madame Mallarmé atravessando o corredor com um leque na mão — mas aquele era um espaço essencialmente de homens, famosos ou não, e o estojo de tabaco sobre a mesa não deixa qualquer dúvida a respeito: ali estão: Oscar Wilde, de passagem por Paris; Whistler; toda a geração simbolista, dos velhos mestres como Verlaine aos jovens Régnier, Pierre Louÿs, Vielé-Griffin, Jarry, Gide, Valéry, Claudel, ainda desconhecidos. Na sala de jantar imersa em fumaça azulada, à luz de um lampião tamisada por um xale, Mallarmé até então simples espectador, levanta-se e toma a palavra, literalmente: apoiando-se no aquecedor, divaga sobre um tema, disserta, volta ao ponto de partida, constrói com sua voz irônica e um pouco afetada, constelações de textos para sempre perdidos; o Texto, talvez, por excelência.

 

 

ALV - E a esta altura como está à vida digamos profissional dele? Já sobrevive de literatura?

 

JBF - Ele continuava vivendo do salário de professor. Durante sua vida, Mallarmé foi, digamos, um poeta de "obras inéditas": uma versão do Fauno, Herodíades, Igitur, os fragmentos do Túmulo de Anatole, todo um exercício de preparação para a escrita do Livro por definição, necessário e impossível. O que se poderia chamar de "obra de Mallarmé", no ano em que ele morre — 1898 — é uma pequena biblioteca de textos esparsos em revistas de curta duração, álbuns de versos, uma edição fotolitográfica das Poesias, folhas soltas, divagações, rabiscos... E acrescente-se — equívoco que a história literária, no entanto reafirmará — que esse poeta de uma obra que é naquele momento pura evanescência, não se considerava simbolista: "o verdadeiro mestre dos simbolistas", dizia ele, "é Verlaine".

 

 

ALV - Se tentássemos uma comparação com as artes plásticas ele seria um impressionista?

 

JBF - Mallarmé foi grande amigo do impressionista Manet, autor daquela que é talvez, a mais famosa imagem pintada do autor do Fauno. Geralmente, quando se fala de Mallarmé, este retrato vem à nossa memória. E se Mallarmé é contemporâneo dos impressionistas, se sua estética tem pontos de encontro com a deles, o nosso poeta talvez tenha ido — é a minha opinião — muito além do impressionismo.

 

 

ALV- E quanto a sua saúde? Ele era saudável?

 

JBF – Nas cartas escritas na província, ele se queixa de dores, reumatismo, angústias. E há uma fotografia dele, já maduro, que é emblemática: todo friorento com uma echarpe de lã pied-de-poule sobre os ombros.

 

 

ALV - A echarpe de Mallarmé... Olha que pode ser um título de livro.

 

JBF - Não é?

 

 

ALV - Mas apesar disso era super ativo.

 

JBF – Fiquei impressionado com a descrição do jovem Mallarmé feita pelo poeta parnasiano Catulle Mendès. Tão impressionado que a repeti três vezes, em pontos diferentes do meu livro: "ele era pequeno, enfermiço, com, numa face ao mesmo tempo severa e dolorosa, doce na amargura, destroços de miséria e decepção. Tinha mãozinhas finas e um dandismo (meio cortante e frágil) de gestos. Mas seus olhos mostravam a pureza das criancinhas. (...) Passando a impressão de não dar a menor importância às coisas tristes que me dizia, contou-me que tinha vivido um longo tempo muito infeliz em Londres (...). Depois me deu versos para ler. Estavam escritos com uma letra fina, correta e infinitamente minuciosa num desses caderninhos encadernados com papelão imitando couro, fechado por uma fivelazinha de couro. Fiquei deslumbrado". Eu também, e foi esse o Mallarmé que eu tentei desenhar no centro do meu livro. Ah, antes que eu me esqueça disso, deixe-me lembrar que, desde a adolescência, Mallarmé foi grande admirador de Poe, de quem traduziu O Corvo: uma edição lindíssima, ilustrada por Manet, que também ilustrou A Tarde de um Fauno, uma edição de luxo, pouquíssimos exemplares. As gravuras foram aquareladas à mão pelo próprio Manet. Ah, e antes que eu me esqueça disso também: um orientando meu de pós-doc, Fernando Scheibe, traduziu o que talvez seja o mais importante livro em prosa de Mallarmé: Divagations — Divagações.

 

 

ALV - E agora vamos ao outro livro que é a tradução das três tragédias de Eurípedes, Sêneca e Racine com o qual você ganhou o Jabuti de tradução de 2008. Foi editado Iluminuras (SP, 2007), com o título Hipólito e Fedra. Três tragédias. Eu vi aqui que ele é trilíngue?

 

JBF - Considero esse livro, com seu ensaio inicial de cerca de 100 páginas, o texto grego, o latino e o francês, tanto quanto as traduções, uma longa divagação sobre o mito de Fedra e Hipólito. Fedra, rainha cretense, era a mulher de Teseu, rei de Atenas. Hipólito é o filho de Teseu com a rainha das Amazonas: um jovem casto, dedicado ao culto de Ártemis, a deusa das inóspitas selvas. Deusa também casta. Para vingar-se da pureza de Hipólito, Afrodite, a potência do amor, sopra nas veias de Fedra uma paixão desenfreada pelo seu enteado. Há, portanto, dois eixos neste universo trágico: Castidade e Paixão, em torno do qual rodei obstinadamente durante cerca de cinco anos, no curso de uma pesquisa financiada pelo CNPq. O resultado: um ensaio de cerca de mil páginas, que "enxuguei" para compor as 100 páginas que abrem a minha edição do mito de Fedra e Hipólito. Não sei se o conjunto será publicado algum dia...

 

 

ALV - Sei também que está trabalhando em outro ensaio? É isso? Sobre Ovídio, poeta romano de quem você gosta muito? Do que se trata? Por que Ovídio?

 

JBF - Ovídio é um poeta surpreendente, que tem sido redescoberto pela crítica literária moderna há cerca de uns 50 anos. É talvez, dentre os poetas latinos, aquele que tem sido mais estudado atualmente, nos Estados Unidos, na Itália e também no Brasil. Um escritor irônico e sutil, que escreve sempre na pauta do discurso citacional, plurivocal. Um poeta erótico, autor de uma Arte de Amar, motivo de certo escândalo já na Antiguidade Clássica. Há um elemento curioso na biografia dele: foi exilado por Augusto (não se sabe exatamente por que) no "inóspito Ponto" (hoje, Romênia), onde morrerá, no começo da era cristã, escrevendo intermináveis elegias tristíssimas, publicadas, aliás, com o título de Tristes. Ovídio é o autor das famosas Metamorfoses, que sempre foram, para leitores medievais, renascentistas e modernos, uma verdadeira mina de mitos. As Metamorfoses deixaram uma marca profunda na poética de Shakespeare. Basta lembrar, ao acaso, Tito Andrônico e Sonho de uma Noite de Verão. Acabo de reler toda a obra de Ovídio e estou escrevendo sobre ele, ao longo dos dias e das noites.

 

 

ALV - Você me disse que pretende lançar antes alguns artigos sobre este estudo? Como é isso?

 

JBF - Pois é! Lanço, este ano, como três "balões de ensaio", três artigos que vão ser publicados em revistas especializadas em literatura e latinidade. Vejamos o que dirão os especialistas... Quanto a mim, me sinto, ao ler Ovídio, como o Dr. Cottard, de Proust. Você se lembra dessa figura interessantíssima, que aparece no Amor de Swann? O Dr. Cottard se transformou para mim numa espécie "metáfora do leitor de Ovídio": sempre inseguro quando se tratava de escolher o tom adequado para responder ao seu interlocutor. Um daqueles sofisticados freqüentadores dos salões proustianos — o Dr. Cottard não se sabia nunca se ele estava falando a sério ou se gracejava. Por isso, tinha se habituado a acrescentar a todas as suas expressões faciais a oferta de um condicional e provisório sorriso cuja expectante agudeza o absolveria do reproche de ingenuidade, se a frase que lhe diziam fosse mesmo chistosa, embora, forçado a enfrentar também a hipótese contrária, não deixasse nunca o sorriso afirmar-se nitidamente — de modo que se via flutuar em seu rosto uma perpétua incerteza, onde era possível ler uma pergunta jamais formulada por ele: "O senhor está dizendo isto a sério?". Na Antiguidade, Sêneca, um admirador de Ovídio, já se irritava com uma série de cenas burlescas que emergiam, de forma inesperada, no final de uma magnífica descrição do dilúvio, no livro I das Metamorfoses... Os austeros erudidos do século XIX, por sua vez, franziam o sobrolho às pueriles ineptiae, às "brincadeiras pueris" (como eles mesmos diziam) do grande poeta... É verdade que uns poucos estudiosos modernos conseguem acompanhar, com a sua, a freqüência da ironia ondulando nos céus ovidianos. Mas o leitor, digamos habituado aos clássicos, desconcerta-se, seguramente, com que o parece ser, na poética ovidiana, "futilidade, farsa e agudeza", como dizem, às vezes, os críticos desse discurso que, por outro lado, é composto a partir de uma alucinante erudição e está ligado, também, a máquinas textuais que lhe repassam fluxos de imagens, temas poéticos, expressões formulares, fulgurantes alusões, cenas cuja violência não sei se é sempre possível tomar à la légère. E não estou pensando aqui apenas no espancamento da amada na juvenil recolha de Amores, mas – cena macabra entre muitas – no estupro de Filomela nas Metamorfoses: arrastada por seu cunhado Tereu até o alto de um estábulo, oculto em antiga floresta, pálida e trêmula e temendo tudo ao mesmo tempo, a mocinha pergunta, em lágrimas, onde estaria sua irmã, enquanto o feroz cunhado, confessando cinicamente um projeto atroz, estupra a virgem desprotegida que clama e volta a clamar, em vão, pelo pai, pela irmã e, acima de todos, pelos grandes deuses. (...) Violada, a infeliz estremece, feito a cordeirinha temerosa arrancada, ferida, das goelas de um lobo feroz; ou feito a pomba, com as plumas empapadas de sangue, temendo ainda as sôfregas garras que a estavam rasgando. (...) E então ele, para impedir que a pobre criatura o denuncie, retém com uma pinça sua língua e a decepa com uma espada insensível; a raiz daquela língua tremelica no fundo da boca, e a própria língua cai, e, trêmula, murmura sobre a terra negra: como costuma convulsionar-se a cauda de uma serpente mutilada, ela palpita e, morrendo, busca os restos de sua dona. (...) E, horror dos horrores, contam que mesmo após o crime (dirás que estou mentindo, meu doce leitor!) ele ainda satisfez várias vezes sua luxúria naquele pobre corpo lacerado1. Shakespeare se lembraria desse episódio numa das cenas mais macabras de Tito Andrônico, tragédia representada pela primeira vez em 1593: violada, a língua e os braços depois mutilados por Demétrio e Chiron, Lavínia tenta contar ao pai e ao tio a história de sua desgraça... Você se lembra dessa cena, na qual o macabro beira o histriônico e parece, para os modernos, horrivelmente grotesca? Pois ela deriva claramente de Ovídio.

 

 

ALV - Sei ainda que você e Fúlvia Gonçalves estão articulando um DVD. Gostaria que falasse sobre isso: quem está fazendo, do que se trata?

 

JBF - É um trabalho em curso, feito por um jovem especialista na área, Renato Kerr. Ele parte de uma série de gravuras impressionantes que a artista plástica Fúlvia Gonçalves criou a partir da leitura de treze traduções minhas de poemas de Mallarmé. Pude acompanhar alguns das sessões de filmagem e me surpreendi com a qualidade desse trabalho, com a perícia, intuição e delicadeza do Renato.

 

 

 


1 Cf. Met., VI, 511-530.

 

 

 

 

 

junho, 2009
 
 
 
Ana Lúcia Vasconcelos (Campinas/SP). Licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, SP, com mestrado em Filosofia de Educação pela Unicamp, Campinas, SP. Como atriz e jornalista atuou em Campinas e na cidade de São Paulo, tendo trabalhado em vários veículos da Editora Abril - Grandes Personagens da Nossa História, Música Popular, Mestres da Musica Universal, Revista Escola, Enciclopédia Abril, Revista Nova, Claudia Moda, Revista Pop, e free-lancer para dezenas de jornais e revistas: Suplemento Cultura de O Estado de São Paulo, Isto É, Shopping News, Revista Artes, vários house organs, Leia Livros, Folha de São Paulo, DO Leitura, Etiqueta Moda Profissional, Revista Visão — inclusive uma capa que foi reproduzida na  Seleções do Reader's Digest em 19 países da Europa e Estados Unidos.  Foi editora de um jornal de Campinas que já não existe: Jornal de Hoje. Escreveu no Diário do Povo e Correio Popular, Revista Vívere, Jornal de Domingo, City News, entre outras publicações de Campinas. Na televisão foi assistente de produção e apresentadora do programa Semanário das Artes, que depois passou a se chamar Em Cartaz e é o atual Metrópolis da TV Cultura. Participou como atriz do programa Ator na Arena dirigido por Ziembinski, e da peça Natal na Praça, de Henry Ghèon, na TV Cultura de São Paulo e foi Pesquisadora de Arte da novela Os Gigantes, de Lauro César Muniz, na Rede Globo de Televisão. Atuou ainda como produtora e apresentadora do Programa Ponto de Vista da TV Thathi, da Rede Manchete de Campinas, em 1995. Atualmente, termina uma longa pesquisa sobre a escritora Hilda Hilst, que se transformará em livro.
 
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