O
MIJÃO
Levantei
e larguei-a na cama, lânguida e encolhida, pernas cruzadas e
apertadas como se ainda houvera qualquer gota extra de prazer a
extrair. Acendi o cigarro, a fazer de conta que lia alguma coisa
numa revista qualquer. Ela sorria, olhos semifechados, rodando o
replay daqueles longos e deliciosos momentos que acabávamos de
usufruir.
Eu
tragava a fumaça com gana e remorso. Se ela fosse quem disse que
era, eu até que poderia sentir uma ponta de paixão. Paixão não de
agora, mas dos tempos idos onde dançávamos embalados, transpirando
ao som do rock-and-roll. Paixão de uma lembrança de rostos e corpos
colados, ralando tesão juvenil sob os acordes de Ray
Coniff.
O
cigarro começou a queimar meus dedos. Fui ao banheiro jogá-lo na
privada. Mijei forte em cima, desfazendo o toco, antes de puxar a
descarga. Se fosse ela mesma, eu certamente sentiria alguma paixão,
insisti com meus botões. Mas, aquela por quem essa farsante se faz
passar foi desta para melhor há tempos. E só eu sei exatamente como
isso ocorreu. Tudo parece querer se repetir. E
agora?
Joguei
a revista no chão e voltei para a cama, já excitado. Ela se esticava
toda, como uma gata arrepiada a afiar as unhas. Escancarava um
sorriso repleto de desejo, o olhar aceso num convite irrecusável
para mais um round. Se ela fosse quem disse que era, eu até que
poderia sentir uma ponta de paixão.
Paixão
não de agora, mas dos tempos idos onde eu tinha um esconderijo no
colégio, no mísero aposento da faxineira, que me liberava o acesso
por um maço de cigarros Macedônia ou por uma garrafa de pinga. Era
lá que eu era compelido a abafar os gemidos de delírio e os uivos de
gozo da minha apaixonada. Boca na boca, mãos no pescoço, até que se
calasse.
Desta
feita, tudo pareceu querer se repetir. A compulsão imperativa de
calar aqueles gemidos e os crescentes gritos de prazer. Boca na
boca, mãos no pescoço até a inolvidável convulsão do orgasmo de
agonia. Afinal, aquela por quem esta farsante se fazia passar havia
ido desta para melhor há tempos. E só eu sabia exatamente como isso
havia ocorrido, lá no catre da faxineira bêbada. Tão exatamente como
agora. Ela
jazia imóvel na cama. Nua, pernas esticadas e braços abertos, como a
desejar um abraço de despedida das agruras da vida. Seu rosto, num
sorriso esgarçado, irradiava felicidade e — agora mais do que
nunca — parecia-se com aquela outra por quem ela se fez
passar.
Tratei
de sair sem ser visto. Aproveitei o escuro da noite sem luar e a
inépcia do velho vigia para alcançar a rua sem ser notado. Acendi um
cigarro e fui fumando, em paz, pela rua deserta. Brinquei com a
fumaça até que a brasa começou a queimar meus dedos. Larguei-o no
chão, abri a braguilha e mijei sobre ele, deliciando-me com o silvo
da brasa.
O
ponto do ônibus estava ainda a um quarteirão de distância quando
ouvi o ruído do motor. Apressei o passo e cheguei bem a tempo de
tomá-lo. Motorista, cobrador, um velho mendigo, um casal de
namorados abraçados, uma senhora gorda que tagarelava com o cobrador
e, no último banco, ela. Que sorte encontrá-la novamente. Ou seria
alguma outra fazendo-se passar por ela?
Devia
passar das duas horas da manhã. Conversávamos no banco de trás do
ônibus quando ela disse estar chegando o seu ponto. Aquiesceu em que
eu a acompanhasse, pois não se sentia segura àquela hora. O meu amor
é tão grande que qualquer farsante — como esta agora —
fica logo atraída e me carrega, afoita, para o seu ninho,
alimenta-me e faz sexo selvagem comigo.
Levantei,
acendi o cigarro e comecei a brincar com a fumaça. Ela, na cama,
deliciada e feliz, ria como criança a cada vez que eu produzia cinco
ou seis perfeitos anéis de fumaça e os seguia fazendo de conta que
os girava com as mãos. O cigarro começou a queimar meus dedos. Fui
ao banheiro jogá-lo na privada. Mijei forte em cima, desfazendo o
toco, antes de puxar a descarga.
Se
fosse ela mesma, eu certamente sentiria alguma paixão, insisti com
meus botões. Mas, aquela por quem essa farsante se faz passar foi
desta para melhor há tempos. Eu tinha certeza disso. Tudo parecendo
se repetir novamente. Mas tratei de sair sem me despedir. O rosa e
púrpura do nascente já manchavam o escuro da noite sem luar quando
sai para a rua silente e deserta.
Amanhã
voltarei, com certeza. E, com certeza, tudo será diferente. Ou
não?

CAFÉ
COM RUM
A
chuva caía forte. Dois corpos rolavam entrelaçados na penumbra.
Trovões abafavam os gemidos. Línguas procuravam por bocas, bocas por
seios, seios por mãos, mãos por dedos, dedos por lugares. Vertigens,
arrepios e gritos sufocados até a doce exaustão do prazer. Parcos
raios de sol forçavam as cortinas quando Florence colocou o vestido
de alcinhas, calçou as sandálias, pegou a bolsa e saiu. Só então
Rosana percebeu que dela só aprendera o nome e o
corpo.
Naquela
manhã, Rosana enfiara-se no vestidinho de alcinhas, branco com
delicadas estampas florais. Os pés brincaram com as sandálias rasas,
de couro batido, quando as calçou. Sentiu-se deliciosamente
confortável para enfrentar o dia nublado e abafado, digitando a sua
tese no computador. Era o que fazia quando a luz acabou. — Merda! —
gritou, como se o ex-marido ainda estivesse lá, pronto para
acalmá-la. Respirou fundo, desceu as escadas e foi para a varanda
olhar a chuvarada. Deu com Florence ensopada, encostada na árvore em
frente.
Tailleur
bege, bolsa e scarpins marrons. Um lenço de seda estampado tentava,
displicente, ocultar a transparência da blusa que afrontava a
formalidade do traje. Florence havia assinado os papéis do divórcio
e, exultante, caminhava para o carro quando a chuva desabou. Passava
por uma rua de sobradinhos antigos, avarandados. Encostou-se numa
árvore, mas não pode evitar: em segundos a água insinuou-se,
penetrando as vestes que agarraram-se à pele arrepiada, revelando,
para um público ausente, os detalhes voluptuosos daquele corpo
exuberante. De súbito, a moça apareceu na varanda bem em
frente.
—
Entre aqui — Rosana convidou-a sem hesitar.
—
Obrigada — Florence aquiesceu e, depois de subir os três degraus de
cerâmica, foi recebida de forma inusitada.
—
Que maquilagem você está usando? — perguntou a jovem, sem a menor
cerimônia.
—
Trouxe da França, é antialérgica também! — a resposta veio sem
pestanejar.
—
Só podia. Você encharcada até os ossos e com a maquilagem perfeita!
Venha — continuou — Vamos tomar um café na
cozinha.
—
Café com rum? — foi a vez de Florence igualar o
jogo.
—
Que seja, café com rum! — Rosana não se deu por
achada.
E
riram como se conhecessem do colégio.
A
trilha de água marcava o curto roteiro desde a varanda até a poça no
chão da cozinha. Lá mesmo, onde descalçou os sapatos, Florence
desnudou-se enquanto Rosana trazia uma toalha e o roupão do "ex"
para ela. Passou a toalha pelos cabelos curtos, ajeitando-os com a
mão. Aninhou-se no roupão, satisfeita, enquanto a outra foi para o
fogão, onde a chaleira apitava. Sentiu uma sensação muito diferente
quando mirou sua benfeitora. Tinha que lhe dizer algo em
agradecimento e, mansamente, dela se aproximou. Rosana virou a
cabeça e sorriu por sobre o ombro, quando Florence encostou-se por
detrás, abraçou-a pela cintura e sussurrou em seu ouvido — Obrigada,
doçura. — Arrepiada, Rosana voltou-se e, num impulso cego, a outra
lhe tomou o rosto com as mãos, encostando carinhosamente seus lábios
nos dela.
Semanas
após, num dia de sol, Rosana decidiu vestir o tailleur bege com os
scarpins marrons que Florence lá deixara para — afinal —
ir assinar os papéis. Um lenço de seda estampado tentava,
displicente, ocultar a transparência da blusa que afrontava a
formalidade do traje. Exultante, voltava para o agora seu sobrado
próprio. De longe avistou, encostada na árvore, uma linda mulher
trajando um vestido branco de alcinhas, sandálias de couro e uma
bolsa marrom que combinaria melhor com o tailleur que trajava.
Olharam-se sorridentes e sequiosas. — Quer café com
rum?
Passando
a varanda, foram engolidas pela penumbra do
sobradinho.

AS
TRÊS METADES
Duvidam
da minha sanidade. Ou não entendem o meu português. Afirmo que — por
mim — garrafas nutrem especial carinho. Sejam de cachaça ou de
vinho, destilados ou fermentados, de misturas turras ou burras —
louvem e soltem hurras — vou lhes dizer a verdade, que de metade
todas elas têm três. Bebo sem cerimônia — a primeira metade? — já se
foi de uma vez. Pedem-me parcimônia, não tenho vergonha, enfrento a
próxima etapa com altivez. Sem pressa, mas com muita vontade, lá se
vai a segunda metade. Agora chegamos ao ponto, me chamam de tonto,
ignaro e estúpido como nenhum outro freguês. Eu levanto, mostro e
provo, cato gente à unha, chamo testemunha, curiosos sem maldade,
para provar que inda resta ali mais outra metade. Ficam pasmos
falando asneira, como é possível haver outra — a terceira — se por
perto nem há torneira? Eu digo com fé e tranqüilidade, é tiro e
queda mais uma metade. Duvidam, fazem pirraça, não acham graça se da
garrafa inda sai mais cachaça. Bradam que estou no fundo do beco,
perdido em vida lunática, pois só pobre de porre crê em tal
matemática.
[Revisto em 16/mai/2009, Águas de
Lindóia]
(imagens
©panibe)
