Sem intimidade

 

Não sei o que hoje se passa

Essa vontade de dizer o que não deve

ser dito. Íntimo.

De gritar o que se quer aprisionar,

de arrancar as barras da prisão interna,

intestina.

 

O olor fétido da mágoa.

A boca de feijão. Anágua.

O cheiro do sexo

sem nexo.

Perplexo.

Vergonha. O cheiro do cheiro: acre.

As pernas-prisão: fechadas

Sem graça.

O medo do cheiro. Odor sem calor.

Sem gemido.

 

Movimentos retesos.

Tensos, tesos.

Entranhas estranhas.

O cheiro, o jeito.

O feito, o dito A vergonha.

Eterna.

 

 

 

 

 

 

Concha vazia

 

Bocas que se procuram. Gemidos.

Cerveja que se bebe.

Movimentos recolhidos.

Peso sobre o umbigo

O sono permitido

O membro empobrecido.

A mulher: inflável

Sem coração e emoção.

O olhar perdido.

Auto-estima

Falida

Desdita.

O corpo invadido

A emoção.

Concha vazia, partida.

 

 

 

 

 

 

Nunca aos sábados

 

A vida para aos sábados.

O clube, o futebol, os amigos.

A cerveja.

O sol craveja o céu

Mas a vida pára aos sábados.

 

As crianças correm aos sábados

E a vida pára aos sábados.

 

A bola, o gol, o papo.

O copo.

A nuvem desliza sobre os montes.

Mas a vida pára aos sábados.

 

A falta, o grito, o riso

Sem siso.

 

O verde descansa sobre a grama

Mas a vida pára aos sábados.

 

A casa, o sono, a briga

A dor.

Nos sábados não há espaço

Para o amor

Pois...

A vida para aos sábados.

 

 

 

 

 

 

No Paraíso

 

Eva viu a uva, mas não viu Adão.

Perdeu-se Eva na contemplação.

Adão e a serpente

O ardil levou Eva a comer: o pecado

Da maçã oferecida à Eva seduzida

Por Adão e a serpente: dementes

 

A mulher levou a culpa

Da perdição e multiplicação.

Eva viu a uva.

Adão viu a Eva e a vida

Sem culpa.

 

No sexo,

Não de uvas, mas de maçãs.

Eva perdeu o Paraíso

A uva, então, amargor.

Perdidas Evas-mulheres

Sem vida, sem uvas e maçãs.

 

 

 

 

 

 

Na ausência da poesia

 

Faço versos de pés quebrados

Daqueles da janela da namorada

Sem eira nem beira

Sem canto ou encanto.

 

A rima é pobre

O tema está perdido

A vida sem solução.

A cerveja, a cerveja...

 

A demência desfila em vestidinho de pois

E o cheiro de chuva é trazido pelo vento.

 

Faço versos de solidão

Solidão sem ornamentos.

O almoço já feito.

O gosto desfeito

Ao som de alegre tristeza: efeito.

 

A vida escorre pelo relógio do tempo: Dali

Um salvador sem salvação?

 

O dia se dilui no ar

O sol se perde nas trevas

O mar se esconde na areia

A onda desfaz-se no rochedo.

Impenetrável.

 

O poeta se derrama em palavras.

Na falta do que é inspiração,

No desacordo dos versos,

Na ausência das rimas,

Na pobreza do tema,

Na solitude do dia:

Melancolia.

 

 

(2003)

 

 
 
 
 

Ilusão

 

Não sei fazer versos

Porque a palavra

Fere.

Queima, apunhala.

A palavra é meu ofício.

Oficial sustento.

 

Ofício difícil esse

de tramar contra as linhas,

de dizer o indizível,

de descrever o invisível.

Farsa.

 

Desfazer a trama.

Dissipar vestígios.

Destecer o dia.

Desarrumar palavras.

Cadeias de sons.

Finitos.

Urros, não versos.

Não há poesia.

No vazio.

 

Silêncios profundos

Agudeza cortante

Cantante o vento

A trama desfeita

Trancada, falida.

Pensamentos. Cadeia fonética:

Prisão.

 

 

(2003)

 

 

 

 

 

 

O verso quebrado

 

O verso forçado

A ferida aberta.

No punhal, o sangue.

A lâmina cortante:

A palavra-lâmina.

O ofício e Felício.

Felício e a lâmina.

O corte e o sangue.

A estrofe contida.

O poeta medíocre.

O verso quebrado.

O poeta e o fracasso.

O dito não-dito:

Maldito. A cena indizível.

O afeto desafeto.

A palavra perdida.

No peito, a pedra.

Endurecida. Mistério-minério.

Pétreo.

 

 

(2003)

 

 

 

 

 

 

Ambiguidade

 

Meu canto não é único

Não é jovem, nem velho.

Ele apenas é.

 

Flor que murcha, criança que desabrocha,

Sorriso que fenece, choro que tranqüiliza.

Sol que nunca se põe e noite que silencia.

Ele apenas é.

 

Assim é meu canto:

Saudade perdida no vagão do trem

Que se esqueceu da passageira felicidade.

 

 

(Una, 15/04/04)

 

 

 

 

 

 

Intertextualidade

 

HIPO

              HIPER

 

POÉTICA E PARÓDIA

                     PERPHÍDIA PARÁFRASE

                                            DE HIPOCRISIA INTERTEXTUAL.

 

 

(Abril, 2004)

 

 

 

 

 

 

Frustração

 

Como dizer de rosto, de nomes e sobre nomes

se minha poesia desenha vultos?

Espectros levados pelo vento.

Linhas-silhueta, desenhos já baços na linha do tempo.

 

Como povoar meus versos pode o homem sentido?

Os temas brotam e gritam.

Ditam regras: o homem concreto, arrumado de férrea

feição espera a hora — que não vem.

 

 

(Abril, 2004)

 

 

 

 

 

 

Sopro do poema

 

O sopro da poesia explode

No poema e encontra a matéria

Orgânica-idéia.

 

A busca constante da palavra-grão

Que fertiliza na mineral

folha de papel.

 

A semente da poesia germina

Sem encomendas.

 

Não há como duendes

Povoar espaços

Completados.

 

Minha aldeia é ínfima

Solidão.

 

Grão polido e ferino

Palavras lapidadas.

 

Cortante veículo de idéias

Explosão.

 

 

(14/04/04)

 

 

 

 

 

 

Dialogismo

 

Por que vieste à minha janela

meter o nariz?

Não sou nem poeta, nem sou tão feliz.

Agora o que diz?

 

Se for curioso

Se for amoroso

Se for curió

Ou se sabiá

Só posso dizer

Não sei o que fiz.

 

Se canto ou se choro

Se rio ou se danço

Não sei fazer versos

Só sei que vivi.

 

Não sou um Vinicius,

Não ando feliz.

Cai fora, aprendiz!

 

 

 

 

(imagens ©friedrich poyer | alberto rot)

 

 

 

 

 

 

Norma de Siqueira Freitas nasceu na cidade de Teresópolis, no Rio de Janeiro. Doutora em Letras (Literatura Comparada) pela UFF e Mestre em Literatura Brasileira pelo CESJF. É autora de artigos e ensaios literários, dentre eles: "Traducción o transgresión? La adaptación en escena" (2009); "O olhar: janelas da alma na ficção machadiana" (2008); "Entre lembranças, silêncios e odores: o corpo nas Memórias do cárcere" (2008); "A escrita do trauma: vida e morte no Carandiru de Varella" (2006); "Entre a folia e a repressão: a Xica cinematográfica de Carlos Diegues" (2005); "A secura e o atrito: a poesia antilírica de João Cabral" (2002).