©hexen
 
 
 
 
 

 

 

 

 

 

Numa pequena vila rural nasceu um menino que captaria a atenção de todos, por ter uns olhos estranhamente negros. As íris dos seus olhos eram pretas e sem brilho, como profundos buracos escuros. As pupilas não se distinguiam no meio das íris, fazendo parte da mesma rodela grande onde nada se espelhava. A juntar a essas características havia ainda o facto de os seus olhos revelarem um olhar enigmático, perturbador e distante.

O seu pai era polícia e tinha um carácter rígido por natureza. E era sobretudo no relacionamento com o seu filho, cuja estranheza do comportamento nunca compreendeu nem soube aceitar, que se mostrava mais intolerante. A mãe tratava das lides domésticas e da criação de animais. Era uma pessoa afável e compreensiva, que cuidou dos problemas e medos do filho com o maior esmero. Outra pessoa marcante na sua vida foi o seu padrinho, velho celibatário que se relacionava com ele como se de um filho se tratasse.

Cedo se espalhou o boato de que o rapaz dos olhos negros teria faculdades especiais, conseguindo ver o que está vedado à generalidade das pessoas. Depois de alguma insistência de familiares e amigos, os seus pais levaram-no a videntes e a bruxas, para se saber ao certo o que se passaria na sua cabeça. As conclusões foram diversas. Cada explicação poderia ser esclarecedora para quem a dava, mas para quem a recebia e tinha de lidar com várias, tão diferentes e por vezes tão confusas, mais valia esquecê-la, esquecer todas! Contudo, os oftalmologistas não encontraram nada de anormal nos seus olhos, a não ser aquilo que qualquer pessoa via neles.

Quando fez seis anos, o seu padrinho presenteou-o com uma prenda que viria a marcar decisivamente a sua vida.

— Um homem deve trazer sempre consigo três coisas: um espelho e um pente para que ande apresentável, e uma navalha para o que der e vier. O pente não te cabe nos bolsos e és muito novo para andar com uma navalha. Por agora dou-te apenas o espelho.

O espelho era redondo e pequeno, do tamanho da palma da sua mão, e cabia perfeitamente dentro de qualquer bolso. Brincava com ele de muitas maneiras. Olhava-se nele e via coisas através dele, algo a que já estava habituado noutros. Mas com aquele espelho experimentava todo o tipo de brincadeiras. Olhava para a frente e via o que estava atrás, olhava para baixo e via o que estava em cima, olhava para cima para ver o que estava em baixo.

Outra coisa que o rapaz fazia era reflectir a luz do Sol nos olhos dos animais para ver como reagiam. Percorreu os quintais onde se criavam galinhas, patos, coelhos e porcos. Essa brincadeira trouxe-lhe o primeiro dissabor. Depois de algumas queixas, o pai ameaçou esconder-lhe o espelho caso voltasse a haver mais.

— Ai de ti que apontes o espelho para os olhos dos animais! Nunca mais te vês nele nem ele te vê a ti!

O medo foi de tal modo que, a partir daí, passou a brincar com os gatos, fazendo-os apenas saltar e correr, tentando apanhar o círculo mágico de luz.

À sua mãe contava as coisas que via e descobria nos espelhos ou através deles.

— A minha imagem num espelho nem sempre faz o que eu faço.

— Enganas-te! Faz sempre o que tu fazes e ao mesmo tempo que tu.

— Quando eu sorrio ela sorri; quando eu abro a boca ela abre a boca.

— Então, como vês, ela faz o mesmo que tu fazes!

— Mas nem sempre é assim.

— Por que dizes isso?

— Quando levanto o braço esquerdo, a imagem no espelho levanta o direito; quando pisco o olho direito, a imagem pisca o esquerdo.

— A tua imagem está de frente para ti, por isso é normal que ela esteja ao contrário.

— Se tudo fosse ao contrário, ela devia chorar quando eu rio e rir quando eu choro.

A mãe, paciente e cativada pelas reflexões do filho, continuava:

— Os espelhos trocam as imagens mas não trocam os sentimentos.

— Abrir a boca ou piscar um olho não são sentimentos!

— Pois não! Mas nem tudo é ao contrário.

— Se tudo fosse ao contrário, a minha imagem no espelho devia mostrar as minhas costas.

— Se tu estás de frente para o espelho, a tua imagem nele fica de frente para ti. É normal que assim seja.

— Mas assim já não é o contrário. Tens razão quando dizes que nem tudo é ao contrário. Mas não percebo porque é que o espelho escolhe umas coisas para serem ao contrário enquanto outras as deixa iguais.

— Também não sei…

— Se a minha imagem no espelho aparecesse de costas, quando eu levantasse o braço esquerdo, ela também levantava; quando eu coçasse a orelha direita, ela também coçava. Assim já não havia coisas ao contrário.

— Não, filho! Assim é que estava tudo ao contrário.

— Não percebo.

Quando se fartou de importunar os animais, passou a importunar as pessoas. Sempre que havia sol punha-se à janela e apontava a luz para quem passava à distância, para que não o descobrissem. Fazia deslizar a luz pelo chão e pelas paredes para ver como reagiam as pessoas perante aquela surpresa. Sempre que alguém tentava ver de onde vinha tal brincadeira, ele baixava-se. Mas, numa rua pequena e com uma janela aberta sem ninguém, facilmente percebiam que era o rapaz dos olhos negros quem estava com estas brincadeiras. Algumas pessoas, incomodadas, faziam queixa ao pai ou à mãe. Quando era à mãe, não havia problemas, ela sabia como proteger o seu filho; quando era ao pai tinha de ouvir mais uma ameaça vinda de uma cara dura e assustadora. Durante uns tempos evitava ou continha-se com algumas das brincadeiras, não fosse a fúria do seu pai tirar-lhe o espelho.

Mas, mais uma vez refeito do medo das ameaças, tentava novas e arriscadas brincadeiras. A certa altura lembrou-se de apontar a luz do espelho para os automobilistas. Escondia-se atrás dos arbustos, nas bermas das estradas, fora da vila. Desse modo importunava pessoas que não o conheciam, nem ao seu pai. Contudo, uma vez provocou um acidente. Um automóvel despistou-se. O condutor correu atrás dele e apanhou-o. O pai pagou uma avultada despesa pelo arranjo da viatura. E dessa vez deu-lhe uma tareia. O rapaz aguentou-a com firmeza, sem uma lágrima nem um ai. Só não suportou que lhe fosse tirado o espelho.

— Vou esconder o espelho onde nunca o possas descobrir! Acabaram-se as brincadeiras e as chatices! Se eu te vejo de novo com ele pego na pistola e despedaço-o em mil bocados!

A mãe mostrava-se indignada com estes acessos de raiva. Mas sabia que eram reflexo do feitio difícil que sempre conhecera no marido, cujas origens se escondiam na infância miserável que tivera. Sabia também que quase todas as ameaças se ficavam por aí.

O espelho permaneceu escondido durante vários dias. O rapaz dos olhos negros deixou de comer, de falar e de brincar. Os seus olhos metiam medo, de tal modo que até o seu pai se assustou e lhe devolveu o espelho, sem uma palavra dizer.

A mãe era sempre o seu refúgio.

— Quando eu falo ao espelho, só oiço a minha voz. Não oiço a voz da minha imagem.

— O espelho só reflecte imagens.

— É estranho que do outro lado do espelho não saiam sons nem cheiros.

— O espelho não tem essa capacidade.

— Há coisas que o espelho faz ao contrário, outras faz iguais, outras não faz.

— A mesma superfície que reflecte as imagens é uma barreira que impede a passagem dos sons e dos cheiros, a mesma que impede o contacto físico.

— Hei-de descobrir porquê.

Perto da vila passava o caminho-de-ferro, por onde apenas meia dúzia de comboios circulava ao longo do dia. Ouvia-se sempre um apito curto quando algum se aproximava da passagem de nível. As pessoas estranharam quando começaram a ouvir vários toques sucessivos ou alguns mais demorados do que o normal. Ao pai do rapaz dos olhos negros logo ocorreu que ali estaria a mão do seu filho, até porque ele nunca estava em casa quando o comboio apitava daquela maneira. Certa vez seguiu-o até que se empoleirou num sobreiro, a poucos metros da linha. Viu-o apontar a luz do espelho para o comboio, que tocou vezes sem conta. Quando o comboio passou viu o maquinista esbracejar de fúria. Atrás do grosso tronco dum pinheiro, esperou o seu filho no caminho de regresso.

— És um bandido! Grande bandido! Se voltas a fazer esta brincadeira nem sei o que te faça… Ainda te ato aos carris! Ouviste?!

Mais uma vez ficou mudo. O pai tirou-lhe o espelho da mão e virou-lhe costas, direito à vila. O tom de voz, a cara furiosa e os gestos rudes do seu pai, deixaram-no colado ao chão, parado como uma estátua.

De novo o espelho foi escondido, de novo a depressão se tornou assustadora. Mais uma vez o espelho lhe foi devolvido passados alguns dias.

         Quando fez doze anos, o seu padrinho, não esquecendo o que lhe dissera seis anos antes, ofereceu-lhe um pente.

         — Agora, que já usas camisas e calças com bolsos onde cabe um pente, aqui está ele!

— Tenho um pente em casa! Penteio-me sempre que me levanto ou me lavo. Para que preciso de andar sempre com um?

— E para que precisas de andar sempre com um espelho?

— Para brincar.

— A partir de certa idade as brincadeiras mudam.

Além da sua mãe, só o padrinho lhe falava olhos nos olhos sem mostrar qualquer sinal de perturbação. Ele admirava-o também por isso. Levava-o a sério mais do que a qualquer outra pessoa e gostava dos seus diálogos curtos e por vezes misteriosos. Por simpatia para com ele, passou a pentear-se com o pente que este lhe deu, apesar de não cumprir a sugestão de o trazer sempre consigo.

— Coisas de velho!

Os primeiros sinais de depressão que o rapaz dos olhos negros teve aconteceram quando o espelho lhe foi retirado e escondido. Contudo, não tardaria a ter depressões mais frequentes, que surgiam sobretudo nos meses de Outono e Inverno, quando se seguiam dias cinzentos e com chuva que, além disso, lhe impediam de fazer certas brincadeiras com o espelho.

Chegou a levar o espelho para a escola, escondido. Nos intervalos das aulas, ao passar junto das raparigas, colocava-o de modo a poder ver por baixo das saias. Foi um escândalo quando as queixas chegaram aos ouvidos da gestora. Foi suspenso das aulas por dois dias e proibido de levar o espelho para a escola. Receando a reacção do pai, a mãe tudo fez para que este nem sonhasse que tal coisa havia acontecido.

Contudo, sem o espelho, descobriu uma maneira de brincar com a luz reflectida utilizando o seu relógio. Quando se sentava junto à janela e a luz do Sol lhe batia, reflectia o pequeno e suave círculo nas costas, na cabeça e no traseiro do professor de Matemática, fazendo soltar risadas dos seus colegas.

Os anos iam passando. Continuava a partilhar as suas descobertas com a mãe.

— As palavras ficam ao contrário no espelho.

— Pois ficam.

— Quando viro para o espelho um cartão com uma palavra escrita leio-a ao contrário, mas a minha imagem no espelho lê correctamente a palavra do lado de cá.

— Sim…

— Mas se eu escrever as palavras ao contrário, e com as letras ao contrário também, elas já ficam correctas do outro lado.

— Pois é. E então?

— Acho graça. Porque assim o que fica ao contrário é o que está do lado de cá e o que fica correcto é o que está do lado de lá.

— Ainda acabas por baralhar a tua figura do lado de lá.

— Talvez baralhando a outra fique esta mais esclarecida.

— Espero que sim…

Descobriu também que, jogando com dois espelhos se podia ver de perfil. E achou graça a essa brincadeira. Reparou que também conseguia ver-se de frente, igual a si próprio e não ao contrário, como acontecia olhando directamente num só espelho. Depois de anos a ver-se numa imagem que se lhe apresentava ao contrário, mas que lhe era familiar e que tinha como a sua verdadeira, estranhou quando viu como os outros o viam. Notou que o queixo se entortava ligeiramente para um lado enquanto o nariz se entortava para o outro. Um olho parecia-lhe um pouco mais abaixo e uma orelha um pouco maior. Até o negro dos seus olhos, que para ele sempre fora normal, lhe parecia uma anormalidade. A sua imagem verdadeira perturbou-o. Em fotografias, com pequenas dimensões e sem a definição nem a luz da realidade, nunca se tinha apercebido desses aspectos.

Outra coisa que muito o fascinava era ver os reflexos infinitamente repetidos dum espelho noutro, até desaparecerem num ponto negro. Gostava também de espreitar a sua imagem e a dos objectos em tudo o que era material reflector, incluindo superfícies côncavas e convexas, onde aparecia deformado. Só não gostava de ver a sua imagem reflectida nos vidros das montras, meio sumida e atravessada pelas dos objectos expostos.

Quando na feira anual da vila apareceu uma barraca de espelhos, foi com o seu padrinho ver aquilo de que já tinha ouvido falar.

— Aqui dentro vais ver coisas que nunca viste.

Uma dúzia de espelhos apresentava diferentes imagens de quem se pusesse diante deles. O rapaz dos olhos negros avançou com cautela para diante do primeiro. Ficou gordo e com a cara larga como a de uma raia. O seu padrinho também se quis ver nele e comentou:

— Olha para mim! Magro e seco como sou… aqui pareço um atleta.

— Arranje um espelho desses em miniatura e ande sempre com ele no bolso.

— Má ideia!

— Porquê?

— Porque fico com as orelhas ainda maiores.

— Se for um do tamanho daquele que me deu, as orelhas ficam de fora.

— Boa ideia!

Aproximaram-se de um que fazia as pessoas ficarem finas. Desse, o padrinho não gostou.

— Aqui quase desapareço. Fico que nem uma estaca!

— Mas as pessoas gordas ficam com melhor imagem.

O padrinho riu com se tivesse ouvido a piada mais inesperada que se pudesse dizer acerca daquele efeito. Frente a outro espelho foi o rapaz quem se adiantou nos comentários.

— Olhe, padrinho, como eu sou alto! Bem alto!

— Se fosses mesmo assim, dessa altura, podias seguir caminho com esta feira. Ias por essas terras fora para que todos vissem a raridade. As pessoas pagariam bilhetes para te verem. Todos te quereriam apertar a mão e tirar fotografias junto a ti.

No espelho seguinte, o padrinho continuou:

— Ou se fosses assim tão baixinho… ia dar no mesmo. Serias um anão de cabeça achatada.

Ao lado, um casal divertia-se com os comentários que fazia.

— Olha aqui, mulher! Parece que engoli um barril.

— É assim que ficas se continuas a beber.

— Ena, que exagero!

Um espelho ampliava apenas os pés, outro ampliava a cabeça, outro deformava só metade do corpo; havia um que fazia o corpo ficar com a forma dum C, outro com a forma dum S e um que deixava o corpo às ondas. Para se divertirem mais um pouco, deram uma segunda volta, aproximando-se e afastando-se dos espelhos, mexendo braços, mãos e pernas e fazendo caretas para verem os efeitos que isso causava.

Certo dia, o padrinho quis fazer mais uma surpresa ao rapaz dos olhos negros. Conhecedor de todos os palmos de terra nas redondezas, pegou no seu carro e convidou o afilhado para um passeio.

— Vou mostrar-te um espelho gigante, um espelho onde até podes entrar.

— Se me dissesse isso quando eu era pequeno, até acreditava.

— Pois acredita, que é verdade! Aliás, há certas coisas em que devemos acreditar sempre!

Depois de muitas curvas por velhas estradas secundárias e caminhos de terra, chegaram a um sítio no meio de árvores onde apenas se ouvia o som dos pássaros e das cigarras a cantar. Ainda andaram a pé durante alguns minutos, descendo por entre arbustos rasteiros até que avistaram uma represa com água, parada e tranquila. A sua superfície estava lisa como a dum vidro. Pararam contemplando o que viam.

— Então, que te parece?

— Que coisa magnífica! Como sabia que estaria assim um espelho tão perfeito?

— Esta represa está esquecida, abandonada há décadas. É raro vir aqui alguém. Como fica numa zona muito baixa, quando não há vento fica assim.

Desceram até junto da água. Olharam os cabeços à volta, as árvores e alguns rochedos. Na superfície da água tudo se reflectia na perfeição.

— Calculei que me trouxesse a um sítio com água, mas nunca imaginei que o espelho fosse tão fiel nem que este sítio fosse tão bonito. Isto parece o paraíso.

O padrinho sorriu e deu-lhe uma sugestão, que parecia já preparada:

— Experimenta passar para o outro lado. A água é límpida e pura. Até se pode beber.

— Está calor e a água é convidativa. Mas vou olhá-la mais uns instantes. Não quero estragar ainda o espelho.

O velho sentou-se no tronco de uma árvore caída, enquanto o rapaz se afastou pela margem do pequeno lago. Subiu uma pedra, despiu-se e mergulhou. Ora desaparecia pela água afundo, ora voltava à superfície. Nadou durante alguns minutos, deixando deformadas todas as árvores e rochas reflectidas naquela superfície. Quando subiu para o rochedo, o seu padrinho gritou:

— Estragaste o espelho!

Quando o longo eco das suas palavras desapareceu, o rapaz encolheu os ombros e abriu os braços, como que dizendo "Paciência!". Vestiu-se e voltou para junto do seu padrinho, que comentou em tom de brincadeira:

— Que tal a sensação de ir ao outro lado do espelho?

— Era como eu calculava. Do outro lado não existem as árvores nem os montes que aqui vemos, nem som, nem cheiros, nem ar que possamos respirar. No entanto, eu permaneci eu.

Riram como crianças encantadas com uma nova descoberta, mesmo sabendo que estavam apenas a brincar com as palavras e as ideias.

Durante uns agradáveis e luminosos dias de fim de Primavera, a sua mãe estranhou-lhe o comportamento fechado e triste. Quando lhe pareceu que o silêncio e a tristeza eram já sinais de preocupação e que o seu filho estava a sofrer mais do que de costume, decidiu falar-lhe. Ele estava no quarto, sentado na cama, cabisbaixo, com os antebraços nas coxas e as mãos abandonadas e caídas.

— Filho…

Ele nada disse e manteve-se quieto. Ela aproximou-se.

— Que tens, filho? Pareces doente.

Ele ergueu a cabeça e virou-a lentamente. A mãe inspirou fundo e deu dois passos atrás, assustada com o que via. Os olhos do seu filho estavam diferentes. No sítio das rodelas negras e foscas estavam dois círculos luminosos que pareciam fogo.

— Estou apaixonado.

Como que por contágio, a mudez passou para a mãe. Por um minuto ela ficou incapaz de dizer o que quer que fosse ou de estruturar uma ideia, não pela frase proferida pelo filho, mas pelas luzes acesas cravadas no seu rosto pálido.

— Pareces assustada, mãe.

Ela permaneceu de pé, junto da porta do quarto, com um nó que lhe prendia as palavras na garganta.

— Os teus olhos…

— Que têm os meus olhos?

— Estão diferentes…

Ele começou por sorrir, depois soltou sonoras gargalhadas, no fim desatou num choro descontrolado.

— Por que choras assim? É bom estar apaixonado.

Quando parou de chorar, conseguiu responder.

— Quando se é correspondido…

A mãe sentou-se ao seu lado, pegou-lhe nas mãos e nada mais lhe conseguiu dizer.

Dias antes de completar dezoito anos, a mãe do rapaz dos olhos grandes mostrou-se preocupada com a intenção traçada pelo padrinho, que tinha a regularidade dum pêndulo.

— O seu afilhado está quase a fazer dezoito anos. Julgo que é sua intenção oferecer-lhe a navalha prometido há muito tempo.

— Sim. E vou oferecer-lha! Não me esqueci.

— Venho pedir-lhe para não o fazer.

— Mas… um homem que se preze deve andar sempre com um espelho, um pente e uma navalha. Ainda não lhe ofereci a navalha. O que eu queria fazer com o meu afilhado é o que o meu avô fez com o meu pai e o que o meu pai fez comigo. Como não tenho filhos…

— Percebo e lamento estar a fazer-lhe este pedido. O espelho marcou-o da maneira que nós sabemos, mas não lhe dá o uso que você esperava; utiliza o pente como preferido, mas não anda com ele. Tem de perceber que os tempos de agora não são como eram os de antigamente.

— Entendo…

— Além disso, ele não é um jovem como os outros.

— Mas isso só se nota nos olhos.

— Quase ninguém sabe que o meu filho tem depressões, cada vez mais frequentes e por vezes profundas.

— Mas se eu não lhe oferecer a prometida navalha ele vai estranhar.

— Esqueça a navalha! Ele nunca disse nada sobre ela nem nunca mostrou interesse em ter uma.

— Mas… é muito feio não cumprir com uma promessa.

— Peço-lhe: esqueça a promessa, esqueça a navalha!

— Porquê tanto receio com uma prenda tão simples?

— Há pouco tempo, durante uma forte depressão devida a uma paixão não correspondida, o seu afilhado partiu um espelho…

— O espelho que eu lhe dei?!

— Não, esse é-lhe querido como uma relíquia é a um crente. Partiu um espelho e golpeou os pulsos com os pedaços de vidro.

— Meu Deus! Nunca me passaria tal coisa pela cabeça… O meu afilhado…

— Peço-lhe também que nunca lhe dirija uma palavra acerca daquilo que lhe estou a contar. Proceda como se esta conversa não tivesse existido.

— Percebo. Assim farei…

— Agradeço-lhe muito.

— Mas assim… fico sem saber o que lhe oferecer.

— Com a imaginação que você tem, vai ver que encontra uma prenda de que o seu afilhado goste.

— Hei-de descobrir uma que o marque tanto como o espelho.

No dia do aniversário, o padrinho presenteou-o com uma caixa. Estendeu-lha com um sorriso que parecia sugerir que uma grande surpresa ali estaria guardada. Esperou que ele a abrisse e lhe mostrasse a sua reacção.

— Que caixa tão estranha para uma navalha! Além disso é pesada.

Tirou o laço, rasgou o papel do embrulho e abriu-a.

— Fantástico! Uma máquina fotográfica!

— Preferias a navalha?

— Claro que não, padrinho. Isto é uma excelente prenda, uma óptima máquina!

— Ainda bem que gostaste.

Naturalmente, com o passar dos anos o seu fascínio obsessivo pelos espelhos foi diminuindo. Mas com a máquina fotográfica passou a utilizar os alvos que em criança tinha com o espelho. Pessoas, animais, objectos, paisagens. Tudo lhe interessava registar. Os auto-retratos também o fascinaram. Fotografava-se das mais variadas formas: rosto, meio corpo, corpo inteiro, pormenores, com especial preferência pelos olhos. Parte dos auto-retratos fazia-os ao espelho, com a máquina na mão, também ela presente na imagem. Normalmente apresentava-se com a sua expressão de rosto habitual, sem qualquer teatralidade.

Quando o rapaz dos olhos negros acabou os estudos secundários foi estudar para a capital. De tal modo se entusiasmou com a prenda que o padrinho lhe deu que pôs de parte as dúvidas que tinha, quanto ao curso a tirar, e foi estudar Fotografia. A sua mãe apoiaria qualquer opção do filho, o seu pai nunca o influenciou nem criticou por tal escolha. Contudo, ela receava o afastamento. Habituada a ler-lhe os sinais, sabia como minimizar o seu efeito quando ele se aproximasse do poço escuro e insondável.

Conheceu uma rapariga por quem se apaixonou à primeira vista, e ela por ele. Aquilo que todos olhavam com admiração e distância foi o que a atraiu. Na timidez e no aparente vazio dos seus olhos, ela viu a profundidade da sua alma, boa e apaixonada. Ele foi atraído pela sua beleza e sobretudo pela atenção e confiança que ela nele depositava, algo que nunca tinha tido de nenhuma rapariga. Ela em tudo era o oposto dele, divertida e faladora, e com uns olhos verdes, brilhantes e translúcidos como pedras preciosas. Cedo se entregaram por inteiro, e sem receios, ao amor.

Numa das primeiras idas a casa, os olhos do rapaz apresentavam um brilho que nunca antes tivera. O seu rosto transbordava de contentamento e felicidade. A sua mãe perguntou-lhe sorrindo:

— Estás diferente, filho. Que se passa?

— Estou apaixonado.

— Desta vez os teus olhos estão brilhantes e não mudaram de cor.

— Desta vez ela também está apaixonada por mim.

Ele fez um sorriso como nunca a mãe lhe tinha visto. Ela abraçou-o como só uma mãe sabe fazer. Ele mostrou-lhe fotografias dela e de ambos.

— Que bonita que ela é! Tem um ar bem simpático. Parecem estar muito bem um para o outro.

— E estamos.

Retrataram-se vezes sem conta, registando muitos dos momentos que passavam juntos. Algumas das fotografias não as mostrava a ninguém, nem à sua mãe, fiel confidente de longa data.

No Natal, ele foi visitar os pais dela, a quem foi apresentado. Na Páscoa foi ela visitar os pais dele e a eles se dar a conhecer. De parte a parte deu-se uma aceitação natural daquela relação, apesar da já esperada aparente indiferença do pai dele.

Nas férias do Verão estiveram quase sempre afastados. Mas telefonavam-se diariamente e mantiveram acesa a paixão, que parecia não se deixar perturbar pela distância. Nessas férias estiveram juntos apenas uma semana em que ela o foi visitar. Num dos dias, ele pediu o velho carro emprestado ao seu padrinho que, sem hesitar, lho emprestou.

— Hoje vamos passar os dois para o outro lado do espelho.

— Como vamos conseguir isso?

— Já vais ver.

Passaram o dia inteiro no lago da represa. Juntos observaram, encantados, o mesmo cenário paradisíaco que ele havia visto pela primeira vez com o seu padrinho, uns anos antes. Caminharam nus por caminhos que não existiam. Fotografaram-se vezes sem conta. Nadaram até fazerem abanar todas as árvores reflectidas na água.

Beijaram-se, abraçaram-se, rebolaram na margem do lago. Ele segurou-a pelos braços e olhou as pedras preciosas dos seus olhos. Ela, como que enfeitiçada, permaneceu estática, olhando os olhos negros dele, fundos e brilhantes.

— És tu o meu espelho!

Findas as férias deu-se o regresso às aulas. Logo no primeiro fim-de-semana a mãe estranhou o comportamento do filho. Os seus olhos voltaram a perder o brilho. A tristeza parecia estar de volta.

— Que se passa, filho?

— Coisas sem importância.

— Contavas-me sempre os teus problemas e preocupações. Por que mos escondes agora?

— Não quero que fiques preocupada, mãe. São pequenos problemas que logo passam.

— Eu não me importo de ficar preocupada. Conta-me o que se passa.

Ele não contou, mas ela sabia o que se estava a passar. Fim-de-semana após outro, ele surgia com o semblante mais carregado e os olhos mais baços e vazios.

Num domingo de manhã, quando metade da vila se encontrava fechada na igreja, onde a mãe rezava pela felicidade do filho, mais uma vez ele pediu o carro emprestado ao padrinho e abalou sem dizer para onde ia.

Em cima da cama, a sua mãe encontrou uma fotografia onde ele estava auto-retratado ao espelho, com a máquina fotográfica encostada à cabeça no instante do disparo. Tinha os olhos acesos como brasas. Tremendo, ela beijou a fotografia e encostou-a ao peito. Quando a apertou num forte abraço ouviu-se, vindo de longe, o som dum tiro multiplicado por ecos infinitos.

 

 

 

 

 

Os dias passam rotineiros e bafientos na pequena e antiga cidade de casas brancas com ruas e praças fechadas sobre si próprias, que convidam à intimidade e cumplicidade entre vizinhos. Numa povoação com estas características, qualquer acontecimento que fuja à rotina, por insignificante que seja, facilmente se torna notícia.

No Beco Escondido existem sete pequenos prédios de dois andares, onde alguma cal teima ainda em manter-se agarrada. Têm portas e janelas de madeira, estalada de tão ressequida; as minúsculas varandas têm protecções de ferro ferrugento com formas retorcidas, notando-se vagamente que em tempos foram pintadas de verde-escuro.

Entra-se no beco por uma estreita abertura entre prédios, onde um homem de estatura média consegue, de braços abertos, roçar com as pontas dos dedos em ambas as esquinas. Lá dentro, os três prédios de cada lado vão-se afastando ligeiramente até que se chega ao do fundo. O beco assemelha-se, por isso, a um triângulo com um bico cortado. Das mais de cinquenta pessoas que em tempos moraram no Beco Escondido, apenas oito lá moram, todos velhos.

No primeiro prédio do lado esquerdo mora o Chico sapateiro, que tem no rés-do-chão a sua pequena oficina de trabalho. Casou três vezes e outras tantas se divorciou. Passou grande parte da vida com amantes mas vive agora sozinho. É quase um porteiro daquele aparente e humilde condomínio. Atrás do pequeno balcão, quase colado à porta, apercebe-se de todas as entradas e saídas do beco. E muitas vezes nem levanta os olhos dos pregos ou do pincel da cola para se certificar de quem passa. Reconhece todos os que habitualmente ali entram e saem pelo som do andar ou pelo tipo de mancha que lhe ofusca a porta por um segundo.

Clarinha mora no primeiro andar do prédio ao lado. Nunca casou e preferiu o celibato. Passa horas à janela, sempre que não tem que fazer. Tem por hábito deitar-se mal o Sol se esconde, levantando-se quando a noite vai a meio, para fazer bolos para a pastelaria mais afamada da cidade. Aprendeu a fazê-los com a sua mãe, que foi freira durante vinte anos, até engravidar. Ela, que nunca fez votos de qualquer género, acabou por ser mais freira do que a mãe, confinando-se à clausura do reduzido espaço da sua casa e do beco. Apenas sai do beco para ir às missas de Domingo e de outros dias santos. Consta que os dois únicos homens que entraram naquela casa terão sido os cangalheiros que foram buscar a sua defunta mãe. A empregada da pastelaria que lhe vai buscar os bolos quentes, de manhã bem cedo, leva-lhe os ingredientes que ela lhe pede de véspera. A seguir ao almoço prepara as massas para os bolos da noite seguinte. Todos os dias sai de casa para oferecer meia dúzia de bolos a um dos vizinhos do beco. Segue a ordem dos números das portas e nunca se engana ou esquece.

Jacinto mora sozinho no segundo andar do último prédio do lado esquerdo. Desempregado e divorciado há vários anos, sobrevive com o dinheiro que os filhos, vindos da capital, lhe trazem de dois em dois meses. Passa o tempo em tabernas a beber vinho e a jogar cartas e dominó. Embebeda-se todos os dias. Entra no beco sempre a cambalear e aos tropeções. Quando sai de manhã parece também ir bêbado, pois as toscas pedras da calçada também lhe dificultam a marcha, definitivamente afectada. A velha frase que se diz dos bêbados, "É como o Jacinto, tanto bebe do branco como do tinto", assenta-lhe perfeitamente.

Idalina, a viúva que mora no rés-do-chão do prédio do fundo, é uma espécie de governanta autoproposta daquele espaço. Varre as pedras do chão duas vezes por semana. Começa dentro de casa e segue calçada fora até à entrada do beco. Quando é preciso rega as flores de dezenas de vasos que alinhou junto das paredes, e arranca as ervas daninhas e as folhas secas. Sempre que o tempo permite põe uma cadeira na rua e passa horas a fazer renda, enquanto canta fados ou os sussurra de boca fechada.

No último prédio do lado direito já há muito tempo que não mora ninguém. É o mais degradado e o único completamente desabitado de gente naquele beco. Mas não está vazio de vida. Habita-o uma dezena de gatos de várias cores, que entram pela porta e janelas danificadas que dão para as traseiras.

Precisamente em frente da Clarinha mora o pacato Alcides, carpinteiro em tempos. Uma boa alma que nunca ninguém viu zangar-se ou ser indelicado com quem quer que fosse. Casou pela igreja porque era assim que todos faziam, mas sempre foi ateu. Agora passa horas na varanda a ler a Bíblia. Por vezes, a pedido da Clarinha, lê passagens em voz alta. A velha solteira delicia-se, pois lembra-lhe os tempos em que a sua mãe lhe fazia o mesmo. Firmina, a mulher do Alcides, toda a vida fez do resmungar com o marido a sua principal ocupação.

No rés-do-chão em frente do Chico sapateiro vive o Jaime cego. Trabalhou nas minas quando jovem, e foi lá que apanhou uma infecção na vista que o viria a cegar em poucas semanas. Estava a mulher grávida nessa altura, pelo que nunca chegou a ver as suas filhas gémeas, de quem se dizia nunca ter havido beleza maior na cidade. Depois de cegar, dedicou-se por inteiro à sua paixão pela guitarra portuguesa, passando décadas a acompanhar fadistas por todo o país e até no estrangeiro. Agora acompanha as crianças da cidade em festividades populares. Maria, a sua mulher, é modista e passa os dias atafulhada em tecidos, trapos e linhas num canto da casa. Sempre que pode, o Jaime senta-se no segundo dos três altos degraus à entrada da porta, ao fim da tarde, para tocar. A Idalina, caso não esteja na sua cadeira, logo aparece quando ouve a afinação das primeiras cordas. Por vezes juntam-se moradores das ruas vizinhas ou turistas para os ouvir.

— Oh velho!, vamos a um fadito?

Mais velha do que o Jaime cego, é assim que lhe mostra ternura.

— Vamos a isso, fadista!

O Jaime inicia um solo introdutório e logo a Idalina entra no tempo certo.

                  — Não te mandaria embora

                   sabendo que ias voltar

                   sofro agora uma vez mais

                   sofro agora a dobrar.

                   Doeu-me quando partiste

                   deixei de pensar em ti

                   o tempo apagou as mágoas

                   nunca mais então sofri.

                   O coração ficou pedra

                   de tanto chorar sequei

                   acabando por esquecer

                   o quanto em tempos te amei.

                   Agora que estás de volta

                   tudo voltei a lembrar

                   lágrimas que agora choro

                   não tas queria mostrar.

Depois de mais um solo de guitarra, que por vezes parece acompanhado de propósito pelo bater do martelo do Chico sapateiro, repete-se a primeira estrofe para terminar. O som entoa límpido naquele espaço quase fechado, com um suave eco nas notas mais fortes. São cortantes os acordes da guitarra, pela rudeza do timbre das cordas metálicas; são encantadoras as subidas e descidas da voz.

Quebrando a rotina habitual do Beco Escondido, um homem de meia-idade, de todos desconhecido, passou um mês inteiro a entrar e a sair do prédio da Clarinha. Estava a tratar do apartamento por cima do dela. Por aquilo que os moradores puderam observar, nos primeiros dias terá feito limpezas, depois pinturas e envernizamentos. A tinta já sem cor, ressequida e escamada das madeiras das janelas, foi substituída pelo branco de tinta reluzente que há muitos anos perdera. Para o fim carregou caixas, objectos vários e mobílias, as maiores desmontadas em peças. Tudo sozinho. Das janelas e portas indiscretas em redor, apesar da proximidade, não foi possível à atenta e coscuvilheira vizinhança observar mais do que isso.

Era um homem reservado, cabisbaixo e metido consigo mesmo, como se ninguém existisse à sua volta. Durante o tempo em que preparou a mudança foi muito difícil arrancar-lhe uma palavra, mais ainda um sorriso. Os vizinhos iam tentando uma aproximação simpática. Por passar muito tempo fora da porta, foi a viúva Idalina quem fez mais investidas junto dele com o intuito de o cativar.

— Bom dia!

Ele, umas vezes fazia que não ouvia, outras ia tão ocupado com os seus pensamentos e afazeres que não ouvia mesmo. Raramente respondia ou olhava para quem lhe falava, e quando o fazia era com a voz a perder-se, ouvindo-se apenas parte da resposta.

— … Dia!

Uma vez, estando sentada a fazer renda, a Idalina levantou os olhos por cima dos óculos e fitou o homem mal entrou no beco. Projectando a sua voz límpida, disse-lhe:

— Bom dia! Aqui temos por hábito cumprimentar toda a gente, seja pessoa conhecida ou desconhecida, morador ou não…

Dessa vez ele deu uma resposta audível e límpida, já à entrada do prédio, instantes antes de sumir pela escada acima, de novo sem mudar em nada a sua expressão reservada.

— Bom dia!

Numa das primeiras vezes que o Chico sapateiro deu pela passagem do homem, saiu-lhe um reparo como um tiro:

— Tenha calma, homem! Sempre com pressa!

Mas não obteve resposta. Ficou a ouvir o barulho dos seus passos, cada vez mais distantes, e acrescentou:

— Ainda há-de ser o meu melhor cliente!

Apesar da sua natural simpatia e habilidade para lidar com os outros, o Chico sapateiro não conseguia arrancar uma única palavra ou olhar, por fortuitos que fossem, àquele homem. Quando o trabalho se concentrou nas janelas, ao velho Alcides bastava olhar para cima, a partir da sua varanda, para deparar com ele. Aproveitando a sua experiência na carpintaria, chegou a oferecer-lhe ajuda.

— Se precisar de ajuda, diga. Sei fazer de tudo um pouco.

Depois de uma longa pausa, e mal olhando para o seu futuro vizinho, que parecia disposto a esperar eternamente, o homem respondeu:

­— Não preciso, obrigado.

— Desde que me reformei chego a cansar-me de não fazer nada.

Quando o velho Alcides pensava que dali já não viria mais uma palavra, elas surgiram:

— Pois eu faço muita coisa.

Vendo o homem a raspar a tinta seca, Alcides deu-lhe um conselho:

— A tinta ficará melhor se levar um preparo antes.

O homem continuou a sua tarefa, indiferente. Firmina gritou:

— Não chateies o senhor! Vem para dentro!

Lá de baixo, sentada na sua cadeira, a Idalina cantava. Vendo a sujidade que caía no chão levantou mais a voz e substituiu a quadra que era suposto cantar por outra:

                  — Não se importe, não se importe

                   com o lixo que cai no chão

                   amanhã o varrerei

                   por ser hoje dia não.

O Jaime cego cedo se apercebeu daqueles passos decididos e pesados, dum género que já ninguém do beco apresentava. Apercebeu-se também do cheiro a pó que o homem trazia consigo nos primeiros dias, e do cheiro do verniz e das tintas, mais tarde.

O Jacinto bêbado foi o único que não se apercebeu da movimentação do futuro vizinho. Aliás, mal se apercebia da presença dos vizinhos de há décadas. Contudo, uma vez por engano pegou numa lata de tinta e subiu com ela. Só depois de entrar reparou que não era a sua casa. Largou a lata e desceu apenas com a garrafa de vinho que trazia na outra mão. Já na rua questionou-se:

 — Estou bêbado ou quê?!

A viúva Idalina apercebeu-se do acontecimento e, expectante, aproveitou para inquirir:

— Então, falou com o homem?

— Qual homem?

É a partir do meio da tarde, quando o sol já não bate na parede, que a Clarinha vai para a janela mostrar a sua pele tão branca como o cabelo. Todos os dias esfarela um ou dois bolos secos para o chão, onde pombos e pardais disputam as migalhas.

— Os passarinhos dão a alegria que falta a este beco!

Quem não vê com bons olhos aquilo é a Idalina, pois dá-lhe mais trabalho limpar os excrementos dos pássaros do que o resto do beco. Nessa altura canta sempre um fado mais pesado, em tom de lamento. Mas, sem que ninguém soubesse, a Clarinha dava-lhe mais bolos do que aos outros, como forma de a compensar pelo trabalho a mais que lhe dava. Quando via aparecer o homem à entrada do beco, Clarinha seguia-o sem pestanejar até à porta do prédio, ficando a ouvir-lhe os passos na escada, olhando depois para a janela de cima esperando vê-lo aparecer.

A mudança definitiva do novo vizinho não foi observada por ninguém, por ter sido feita a altas horas da noite, quando a única luz que se via na rua era a do frouxo candeeiro de iluminação pública, colocado no centro do beco. O sono leve da Clarinha levou-a a aperceber-se do acontecimento. Ouviu os degraus de madeira velha chiar uma vez, com passos lentos e pesados, subindo; outra vez com passos rápidos e leves, descendo; e a última vez com passos normais, novamente subindo.

Mal o novo vizinho se mudou, passou a estar incluído no percurso de oferta de bolos. Quando chegou o seu dia, encheu-se de coragem e foi bater-lhe à porta, levando-lhe um prato coberto por um pequeno pano branco rendilhado à volta. Bateu uma vez e esperou, bateu duas, três vezes e esperou…

— Quem é?

— A vizinha de baixo.

Depois de uma breve espera, a porta abriu-se timidamente, mostrando metade do corpo do homem. Atrapalhada, Clarinha logo falou, revelando o seu sorriso simpático e cativante:

— Boa tarde.

Fez-se de novo silêncio por mais uns segundos.

— Boa tarde.

— Venho dar-lhe estes bolinhos, feitos por mim.

Levantou o pano e mostrou-os.

— Não precisava de se incomodar.

— Não é incómodo nenhum. Tanto gosto de os fazer como de os comer e os oferecer.

O homem aceitou e retribuiu o sorriso, embora contido.

— Obrigado.

— Ora essa, não precisa agradecer.

— Sabe, estamos muito contentes por ter cá um novo vizinho. O que isto foi e o que é agora! Este beco já jorrou alegria. Já há muito tempo que aqui vivem só velhos. E o senhor é um jovem. Em tempos brincaram por aqui crianças. Este beco precisa de sangue novo!

As frases saíam-lhe separadas umas das outras, hesitantes perante a inexpressividade do homem, que respondeu:

— Obrigado. Fico muito contente por saber isso.

— Ora essa, não precisa agradecer.

Gerou-se novo silêncio, agora perturbado pelo incómodo de ter sido demasiado longo.

— Bem, não o maço mais.

— Não maçou nada.

Ele ia agradecer uma vez mais mas não o fez para não ouvir de novo a frase já repetida pela mulher. Ela virou-se, ele fechou a porta. No dia seguinte, ao descer a escada, ele bateu-lhe à porta e entregou-lhe o prato, limpo e com o pano a cobri-lo.

— Gostou?

— Se gostei! Há muito tempo que não comia uns bolos tão bons.

Ela sorriu e acrescentou:

— Ontem esqueci-me de lhe dizer que você veio pôr a minha semana em ordem.

— Ora essa…

Ele seguiu o seu caminho, escada abaixo, sem ter percebido que a Clarinha ficou com a semana arrumada, fazendo seis entregas de bolos pela vizinhança ao longo da semana. O Domingo, o dia em que a pastelaria estava fechada, era também aquele em que não distribuía bolos. Certo dia, sentado na sua pequena varanda, lia o Alcides carpinteiro algumas passagens da Bíblia à Clarinha quando surge o novo vizinho assomando da janela logo acima.

— Quer também ouvir algumas palavras?

O homem olhou-o de passagem e encolheu os ombros, mas para que o seu desinteresse aparente não passasse por verdadeiro, apoiou os cotovelos na janela antes que os ombros baixassem. Retorcendo-se para olhar para cima, Clarinha convidou-o também para ficar.

— Oiça, oiça! Faça-nos companhia.

Ele ficou à janela fingindo olhar para uma coisa qualquer, mas o matreiro do Alcides topou-lhe a intenção e retomou a leitura.

— "Um leproso veio ter com Ele, caiu de joelhos e suplicou-Lhe: 'Se quiseres, podes limpar-me'. Compadecido, Jesus estendeu a mão, tocou-o e disse: 'Quero, fica limpo'. Imediatamente a lepra o deixou e ficou limpo".

Impaciente e rabugenta, Firmina gritou de dentro:

— Nem as leituras nem as rezas te vão desviar do caminho do Inferno! Agora já é tarde!

Clarinha mudou de cor. O Alcides continuou as leituras, com a voz mais baixa.

Alguém soube que o novo vizinho estava a trabalhar na única fábrica da cidade, uma pequena e velha fábrica de transformação de cortiça. O homem entrava e saía duas vezes por dia. Saía cedo, voltava para almoçar e abalava logo a seguir para só voltar ao final da tarde.

Certo dia, ao entrar no beco, estava o Jaime cego a acabar de se sentar nos degraus quando meteu conversa com o novo vizinho. Aproveitou o facto de o Chico sapateiro estar ocupado com um cliente, para que o homem se sentisse menos incomodado numa conversa a dois.

— Boa tarde.

— Boa tarde.

— Posso fazer-lhe uma pergunta?

Perante o cego, o homem sentiu-se mais à vontade e aceitou o breve diálogo.

— Faça.

— Durante um mês, você saiu e entrou no beco, ocupado a ajeitar a sua casa.  Agora já cá mora há duas semanas. E como é pouco falador…

— Não é por mal. É feitio.

— Já reparámos nisso. Pelo menos, gostávamos de saber o seu nome.

Sem hesitar, o homem respondeu:

— Chamo-me Edgar.

O velho guitarrista estendeu a mão e sorriu:

— Eu chamo-me Jaime.

— Muito gosto em conhecê-lo.

— Eu também tenho gosto em conhecê-lo.

Apertaram as mãos. O homem afastou-se. Enquanto afinava a guitarra, Jaime disse baixinho:

— Bem me parecia!

Decorridos alguns dias, algo começou a intrigar a vizinhança. Edgar colocou alguns espelhos junto de uma janela. Mas não são simples espelhos pendurados num prego, que se tirem e pendurem facilmente. São espelhos de camiões, com um suporte metálico que os permite articular. Presos à parede com parafusos, lá ficam noite e dia. Dois virados para a entrada, outro virado para o fundo do beco. Por si só, a presença dos espelhos causava alguma inquietação. Mas maior passou a ser a partir do momento em que a vizinhança se apercebeu de que, por vezes e sobretudo à hora do almoço, o Edgar mexia nos espelhos, mudando ligeiramente as suas posições.

Por que razão estavam ali aqueles espelhos? Por que razão mexia o homem neles? Porquê os três espelhos naquela janela e nenhum nas outras? O incómodo era maior quando uma vez por outra algum espelho reflectia a luz do Sol nos olhos de alguém, ou numa porta ou janela.

O Chico sapateiro e a Maria modista receavam perder clientela com aquilo. Mesmo após alguma habituação, os residentes daquele beco não deixavam de se sentir incomodados. Até o Jaime cego começava a ficar perturbado com as dúvidas dos outros. Ele não via os espelhos mas sabia que podia ser visto através deles. Clarinha sentia-se especialmente incomodada por estes estarem precisamente por cima da sua janela preferida. Não sabia o que dizer sobre o assunto mas passou a estar bem menos tempo à janela. O Alcides carpinteiro engraçara com o homem desde o início, a sua intuição dizia-lhe que estava ali uma pessoa de bom coração. Firmina, sempre cheia de certezas, de modo algum concordava com o marido. O Jacinto bêbado continuava o seu dia-a-dia de indiferença. Quem tantas vezes tem dificuldade em dar com a porta de entrada do próprio prédio onde habita, só por milagre daria pela presença de tais espelhos. Apesar de morar ao lado, nunca aparece à janela. No prédio do fundo, a viúva Idalina ficava intrigada, mas em vez de fazer disso um drama, improvisava quadras no meio dos fados.

                   — É tão forte a luz do Sol

                   que todo o mundo ilumina

                   essa luz que o espelho imita

                   nele é sempre pequenina.

                   Mais forte é a dos teus olhos

                   quando aos meus se entrega

                   quanto mais olho para eles

                   mais a minha alma se cega.

Um simples cumprimento chegava a gerar tensão, por nunca se saber que tipo de reacção surgiria do outro lado. Questioná-lo acerca dos espelhos seria entrar num território perigoso, eventualmente. Mas, mais do que a reacção, receava-se o conteúdo da resposta. O Jaime sentia-se cheio de vontade para abordar o assunto, mas o facto de ser cego inibia-o. Que iria o homem pensar se fosse ele a abordá-lo acerca dos espelhos? Logo o único que não os via é que se iria mostrar incomodado. Não achava jeito nisso.

As semanas sucediam-se e os boatos começaram a aparecer. Havia quem suspeitasse de algum problema de saúde mental daquele homem. As dúvidas davam lugar a desconfianças e a medos. Sentindo que se criava uma imagem deturpada e injusta daquele homem, o Jaime cego decidiu juntar os moradores do beco na sua casa, para falarem do assunto.

— Tenho a impressão de que vocês não estão a ver o problema como deve ser.

A frase causou uma admiração geral, mas Firmina não deu tempo a que se pensasse muito nela.

— Eu não vejo ali coisa boa!

De imediato, a Maria modista acrescentou:

— Pois… Passa-se ali qualquer coisa!

Clarinha mostrou-se também preocupada:

— Desde que os espelhos ali estão, custa-me ir à janela. Faz-me impressão ter aquilo por cima da cabeça.

Idalina também opinou:

— Ao menos se soubéssemos para que serve aquilo… sempre ficávamos mais descansados. Um dia vira um espelho mais para cima, outro mais para baixo; noutro dia vira um para a esquerda, outro para a direita. É estranho!

O Alcides carpinteiro fazia questão de mostrar a sua despreocupação:

— Eu também acho estranho que estejam ali aqueles espelhos, mas tenho para mim que o homem é pessoa de bem. Lá terá as suas razões para ter ali os espelhos. Se calhar o melhor é não nos metermos na vida dele enquanto não houver motivos para nos preocuparmos a sério.

 Ainda o Alcides não tinha colocado o ponto final na sua intervenção, a sua mulher aproveitava para mostrar desacordo:

— Ele deve ter as suas razões! Isso é verdade, senão não os punha lá. Mas os espelhos estão na rua e virados para a rua e para quem cá mora. Temos o direito de saber o que é que eles ali fazem.

O Chico sapateiro, ouviu todos atentamente e deu também a sua opinião:

— Eu, como estou sempre encafuado na minha pocilga, não me incomoda que ali estejam os espelhos. Claro que também gostava de saber por que razão lá estão. Uma coisa que podíamos fazer era perguntar-lhe.

— Mas quem faria isso?

A pergunta de Firmina foi respondida pelo seu marido:

— Podias ser tu, já que a ideia foi tua e és tão corajosa a falar?

— Eu?! Nem pensar! Aquele homem mete-me medo.

O Jaime cego interveio num silêncio propício.

— Acho que é importante que se saiba primeiro quem é aquele homem.

Firmina não desistia:

— Só sabemos que mora ali e que trabalha na fábrica da cortiça. Não sabemos donde veio nem que nome é o dele.

Revelando alguma ansiedade, o Jaime queria partilhar o seu segredo:

— Eu sei o nome dele.

Esta curta intervenção criou uma agitação diferente entre todos:

— Chama-se Edgar.

— Ficar a saber o nome pouco ou nada adianta.

— Pois! Um nome é só um nome.

Mas, o Jaime parecia ter algo mais a revelar.

— Ninguém se lembra de nenhum Edgar que já aqui morou em tempos?

Todos rebuscaram aquele nome na memória mas ninguém o encontrava. Clarinha lembrou-se. Ficou rosada e começou a desfigurar o seu rosto com tamanha admiração que lhe ia na alma.

— O Edgarzinho que viveu por cima de mim há mais de trinta anos?! O filho da Catarina e do Crispim?

— Esse mesmo!

— Os pais foram daqui com o moço bem pequeno, com dois anos, e nunca mais ninguém soube deles.

— Talvez tenham morrido.

— E o moço decidiu voltar.

— Trinta anos depois.

— Mais!

O Jaime acrescentou:

— Não sei se se lembram que o Crispim é primo do dono da fábrica da cortiça. Talvez por isso tenha conseguido aquele trabalho.

Após aclarada a memória de cada um, Firmina atacou de novo:

— Seja o Edgar ou não… o que interessa é saber por que raio pôs ele aqueles espelhos na janela!

Clarinha acrescentou:

— Gosto muito dos pombos mas não gosto que estejam ali poisados. Agora até passo menos tempo à janela. É que já aconteceu largarem excrementos para cima de mim!

O Jaime cego sorriu:

— Pois, isso não tem jeito.

Maria, a sua mulher, interveio de imediato:

— Tu, como não o vês, brincas com isto. Mas olha que a cara dele até assusta!

Perspicaz como sempre, o Chico sapateiro observou:

— Bem… De facto, o homem tem o seu feitio estranho e sempre mostrou a mesma cara carrancuda. Mas enquanto não apareceram ali os espelhos ninguém viu nada de assustador na cara dele. Por que havemos de ver agora?

Firmina explicava porquê:

— Porque agora olho para a cara dele e já lá vejo coisas que me preocupam.

— Por causa dos espelhos?

— Pois, por causa dos espelhos!

Firmina, virando-se para o marido, propôs:

— Devias ser tu a perguntar-lhe. Já estás habituado a falar com ele.

— Eu? Habituado? Aquilo não é bem falar. Ele fica às vezes uns minutos à janela a ouvir as minhas leituras, mas é raro arrancar-lhe uma palavra.

O Chico sapateiro ofereceu-se:

— Falo eu! Passo ali o dia inteiro a martelar, vejo-o sempre entrar e sair. É só chamar por ele.

Mas o Jaime achou que não era essa a opção mais correcta.

— Não! A ideia foi minha, falo eu. Já meti conversa com ele para lhe saber o nome. Não me custa perguntar-lhe pelos espelhos. Além disso, a cara dele não me incomoda.

O tempo foi passando e o fim da tarde aproximou-se. Ouviram-se passos e alguém observou:

— Deve ser ele!

O Jaime cego logo corrige:

— Não é não. É o Jacinto.

Nisto, o Jacinto sobe os degraus e entra cambaleante. Diz com a voz enrolada:

— Ena, uma festa! Devem estar a beber uns copos e não me convidaram.

O Jaime explicou:

— Nada disso! Estamos só a conversar.

— Se é só conversar, vou andando.

E saiu, deixando um bafo a vinho tinto no ar. Quando o ar voltou a ser respirável, o Jaime rematou:

— Fiquem descansados. Amanhã cedo trato do caso.

No dia seguinte o Jaime sentou-se na escada esperando que o Edgar saísse. O Chico retardou a ida para o seu local de trabalho, não fosse inibir mais ainda o homem, com a sua presença ali tão perto. Todos olhavam por estreitas frestas das janelas abertas. Até o prédio abandonado parecia ter mais gatos nas janelas do que era habitual. O Jaime ouviu os passos decididos e firmes do Edgar aproximarem-se e preparou uma voz simpática para o momento certo.

— Bom dia!

— Bom dia.

— Deve estranhar eu estar aqui tão cedo.

O homem ia retomar a sua marcha, entretanto abrandada, mas o Jaime colocou tal astúcia na voz, ao dizer a segunda frase, que parecia puxá-lo com a bengala por uma perna.

— Não é costume.

— Hoje vim para aqui mais cedo com o propósito de lhe fazer uma pergunta.

O homem percebeu de antemão que pergunta era, mas, estranhamente, não se mostrou inquietado. Pelo tom da sua voz se percebia que estava à espera dela desde o primeiro dia em que colocara os espelhos junto da janela. Ele próprio fez a pergunta:

— O que é que fazem ali os espelhos?

— Isso mesmo!

O Jaime fez um sorriso de vitória. Sem hesitar, Edgar respondeu:

— Em breve vão ficar a saber.

Retomou a sua marcha habitual e despediu-se:

— Até logo!

— Até logo…

Na retribuição da despedida, a voz do Jaime revelou desalento.

Mal o Edgar se afastou todos saíram das suas casas para saber novidades. Assim que se juntaram, a Firmina perguntou, resoluta:

— O que é que o homem disse?

O Jaime cego virou o rosto algures para o meio daquela meia dúzia de pessoas e respondeu, com ar de derrota:

— Disse que em breve ficaremos a saber.

Olharam uns para os outros, e depois para os espelhos. Firmina não se conformava:

— Isto é muito estranho! O melhor é fazer queixa à polícia! Pôr ali aquelas coisas é proibido, com certeza. Ninguém pode andar a pendurar nas paredes da rua aquilo que lhe passar pela cabeça.

A Maria modista questionou:

— Mas se o homem vai à janela quando quer, para que raio precisa ele dos espelhos? E por que será que mexe tantas vezes neles?

O Jaime cego achou que tinha encontrado a resposta certa:

— O homem vive sozinho. Deve ter a mesa junto à janela e usa os espelhos certamente para olhar para a rua enquanto está a comer.

O Chico sapateiro achou jeito naquele reparo:

— É bem capaz de ser isso!

Mas a Firmina não se dava por satisfeita:

— Deve haver ali mais qualquer coisa. Se assim fosse, o homem teria contado isso ao Jaime.

— Ah, pois deve haver! E com certeza que há!

Após este reparo, Maria abanou a cabeça, encolheu os ombros e virou-se para dentro, como que dizendo que tinha mais que fazer. Todos se afastaram pensativos. À entrada do seu prédio, Firmina virou-se e disse em voz alta:

— Só lhe dou mais uma semana!

Os dias foram passando iguais. Edgar continuou a entrar e a sair e nem uma palavra mais, além de um ou outro esporádico "Bom dia" ou "Boa tarde". Na véspera de se cumprir a semana dada, Firmina lembrou várias vezes a quem a quisesse ouvir:

— Amanhã é o último dia. Vou à polícia falar disto, e vou mesmo!

O Jaime cego, entregue à sua guitarra, fazia que não ouvia. Mas o Chico sapateiro reagiu:

— Oh mulher, tem lá calma! Deixa passar algum tempo que isto logo se compõe.

— Já passou tempo demais.

Firmina não dormiu essa noite, nem deixou o marido dormir. Assaltaram-na mais dúvidas do que certezas. Muitas perguntas ficavam-lhe sem resposta e as poucas respostas não a satisfaziam. E algumas certezas logo passavam a dúvidas. Levantou-se com uma dor de cabeça fortíssima, que não mais abrandou ao longo do dia. Ao final da tarde, já depois do Edgar voltar do trabalho, o Alcides carpinteiro apareceu à porta do Chico sapateiro, que observou:

— Não vi a tua mulher passar.

— Não viste porque ela ainda não saiu de casa. Ficou doente de tanto pensar. Não dormiu nem me deixou dormir.

O Chico sorriu e deixou cair o prego que tinha na boca.

Certo dia, em que não tinha planeado coisa nenhuma, calhou passar em frente da esquadra da polícia e, decidida, Firmina apresentou a queixa. No Sábado seguinte, a meio duma agradável tarde estranhamente solarenga para um final de Outono, entraram três polícias beco dentro. Dois subiram escadas acima, o outro ficou à porta do prédio. Os vizinhos olhavam atentos das suas portas e janelas. Clarinha apertava o ouvido contra a sua porta de entrada, na esperança de ouvir algo através do vão da escada.

Lá em cima ouviu-se bater à porta. Uma, duas, três vezes espaçadas e cada vez com mais intensidade. Algum tempo após, o Edgar apareceu, abrindo a porta apenas um palmo.

— Temos um mandado para uma rusga.

— Porquê?

O outro polícia desdobrou várias vezes um papel amarelo que trazia na carteira e virou-o para o Edgar, que olhou os polícias nos olhos, desprezando o papel.

— A vizinhança queixa-se dos espelhos que pôs à janela. Não sabe para que servem e sente-se incomodada. Além disso, trata-se de objectos colocados em espaço exterior, público, portanto, e sem qualquer autorização.

— Isso é verdade, mas não é minha intenção perturbar.

Os polícias não estavam com disposição para alimentar conversa.

— Vai ter de nos dizer para que quer ali os espelhos.

O Edgar mostrou-se nervoso, o polícia continuou:

— Pedimos desculpa pelo incómodo, mas temos mesmo de entrar.

Edgar recuou, perplexo, até meio da sala. O polícia que com ele falava empurrou a porta e entrou. O outro permaneceu onde estava. Edgar estendeu as mãos abertas na direcção do polícia. Este aproximou a mão da pistola.

— Se as pessoas se sentem incomodadas, venham todas cá acima. Quero que saibam da minha boca e dos seus olhos para que servem os espelhos.

O polícia afastou a mão da pistola. De seguida, percorreu minuciosamente, com os olhos, aquela sala. Estava repleta de dezenas de pequenas telas, encostadas às paredes e sobre cadeiras e móveis. Perto da janela da discórdia estava um cavalete de pintura com uma tela, junto dele um banco com várias bisnagas de tinta e um frasco cheio de pincéis. Num pequeno móvel próximo do cavalete estava um livro aberto com imagens. Outros livros enchiam por completo duas estantes. Edgar virou costas e foi até à janela.

— Subam! Subam todos! O que é que estão aí a fazer!

A vizinhança saiu das suas casas mas o polícia barrou-lhes a entrada do prédio.

— Ninguém vai subir! Aqui as ordens são dadas pela autoridade.

Lá em cima, entretanto, o polícia que estava no meio da sala decidiu quebrar o plano traçado.

— Olhe que o que vou fazer é contra as regras do nosso procedimento.

Edgar sorriu. O polícia virou-se para o colega:

— Diz lá para baixo que deixe subir.

Este franziu o sobrolho e acatou a ordem. Estupefacto, o polícia que barrava a entrada no prédio deixou as pessoas entrar, um minuto depois de as ter proibido. Atabalhoadamente, todos subiram. Na frente ia o Jaime cego conduzido pelo Chico sapateiro, no fim vinha o polícia. Bateram à porta da Clarinha, que saiu a esfregar o ouvido e aos outros se juntou. O Jaime chamou:

— Venha, venha! Vamos ver o que se passa.

Um a um, hesitantes, todos entraram. Com idêntica admiração, olharam em redor. Sem descolarem os pés do sítio onde os haviam colado podiam ver o que os quadros representavam. Telhados, portas, janelas, pessoas à porta e à janela. Numa das telas maiores via-se a torre da igreja, noutra viam-se as copas dos choupos mais altos do jardim, noutra via-se a serra ao longe. Eram essencialmente vistas ou aspectos daquilo que se podia observar daquela janela. Meia dúzia de telas embrulhadas em papéis coloridos e com laço estavam encostadas a um canto. Admirado com o silêncio, o Jaime quis saber o que se passava. O Chico explicou-lhe, baixinho. O rosto do Edgar tornou-se descontraído. Falou com naturalidade.

— Já sabia que todos se sentiam incomodados e cheios de dúvidas devido à presença dos espelhos. Mas nunca pensei que as coisas chegassem a este ponto. Pois bem, vão ficar a saber a razão de ser daqueles espelhos.

O Edgar desapareceu para outra divisão. Segundos depois, regressou empurrando uma cadeira de rodas. Maravilhosamente bem vestida e penteada, uma mulher de cerca de trinta anos apresentou-se com um sorriso de perplexidade.

Perante aquele cenário, apenas o Jaime cego conservou a boca fechada. Paradas, como que hipnotizadas, as pessoas faziam um grupo compacto, como um conjunto escultórico. Em frente, o Edgar e aquela mulher na cadeira de rodas faziam outro. O rosto moreno e o cabelo negro dele contrastavam com a pele clara e o cabelo loiro dela. Ele permanecia de pé, direito, atrás dela. Ela tinha o tronco inclinado para o lado esquerdo; a cabeça, perfeita, inclinava-se ligeiramente para o lado direito. Desenharam sorrisos iguais, rasgados e sinceros. O Chico encostou os lábios à orelha do Jaime, que fez um sorriso de contentamento.

— Sejam bem-vindos! Chamo-me Lúcia.

Com um ar de felicidade que nunca ninguém tinha achado possível ver no Edgar, este acrescentou, orgulhoso:

— É a minha mulher.

Por segundos, fez-se um silêncio gélido. Entretanto, na escada ouviram-se passos lentos, irregulares. Sala dentro entra o Jacinto, maltrapilho e bêbado como sempre, com a inseparável garrafa de vinho na mão.

— Ora venham daí uns copos! Vamos todos comemorar o regresso do menino Edgar ao Beco Escondido, acompanhado pela sua maravilhosa mulher.

Todos riram. Riram pela surpresa, pelo conteúdo admirável do breve discurso, mas também porque precisavam desfazer aquelas caras duras e mexer os músculos presos. O polícia que chefiava a operação logo esclareceu:

— Pois bebam à vontade! Nós não podemos, estamos de serviço.

E soltou-se uma gargalhada geral.

 

 

 

março, 2009

 

 
 
 
 
António Galrinho nasceu em 1964, em Portugal. É bacharel do curso de Pintura e professor de Artes Visuais. Dedica-se à Pintura e à Escrita paralelamente à actividade profissional. Realizou as primeiras obras literárias entre os onze e os dezanove anos, após as quais se seguiu uma longa pausa sem escrever. A partir de 2000, voltou a dedicar-se à Escrita com regularidade, tendo desde então concluído sete obras, entre romances, contos e poesia. Apenas editou, e em edição de autor, o livro de poesia Erótica Pornográfica, com o pseudónimo J. J. Sobral. Na poesia, além do género pornoerótico, explora também a poesia visual e a minimalista. No romance e no conto, explora, sobretudo, as relações humanas. Neles intercala pinceladas de realidade e surreal, humor e drama, inesperado e improvável. Da sua escrita diz: "Uso a realidade como barro fresco, que moldo livremente no acto de criar. E como uma peça de barro, também a obra escrita tem de se manter de pé".
 
Mais António Galrinho em Germina