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[Ou: Nos tempos do trem. Projeto de ensaio sobre a letra de Fernando Brant]

 

 

 

Mande notícias do mundo de lá

Diz quem fica

Me dê um abraço

Venha me apertar

  voltando

Coisa que gosto é poder partir

Sem ter planos

Melhor ainda é poder voltar

Quando quero

 

Quem fica diz para o que parte: "mande notícias do mundo de lá". "Mundo de lá" é o desconhecido, o abissal, o inimaginável, tudo que pode estar oculto depois do Cabo das Tormentas, muito além da Trapobana, esse mundão exterior a qualquer deus e pátria de todos os demônios. É o que excede, extrapola e se contrapõe ao "meu lugar", à aldeia da infância, ao pequeno país da memória, à terra natal. É a síntese de todos os perigos que nos espreitam fora do útero materno. O "mundo de lá" fascina e apavora.

 

Se alguém fica e se despede, é porque alguém está saindo, partindo para o inescrutável "mundo de lá". Quase que seguindo um destino atávico dos habitantes dos pequenos perdidos lugares. Porque estes sempre precisam cumprir a indeclinável sina de partir em busca de trabalho, de estudo, de uma oportunidade, de um lugar na História, ou, ao menos,   de uma abreviada nota de rodapé na esgarçada lembrança dos que os conheceram.

 

Ao mesmo tempo, um outro chega, e pede mais que um protocolar abraço: "Venha me apertar", exige. Uma dose revigorante de vida! Mas este, é o narrador, o protagonista, portanto um privilegiado: pode "partir sem ter planos", pode voltar quando quiser. É o dono de seu próprio destino.

 

         Todos os dias é um vai e vem

         A vida se repete na estação

Tem gente que chega pra ficar

         Tem gente que vai pra nunca mais

        

Nem todos têm a mesma sorte. Alguns são apenas levados pela correnteza ou tragados pela calmaria. São os que perderam o leme da própria existência. Passageiros da agonia. Para esses, partir é sinônimo de jamais. Voltar é quase morrer. Ficar é quase deixar de ser. Ou o reverso de tudo isso.

 

O lugar (o "meu lugar") é bucólico, as coisas parecem imutáveis, quase eternas, de uma solidez exasperadora e paralisante. Somente na estação é que a vida parece pulsar, num contínuo vai e vem. Um movimento de sístole e diástole entre o sonho e a realidade. Sangue arterial que vai, sangue venoso que retorna. A plataforma da estação é o coração do lugar, batendo fora do peito, quase um mundo à parte. Ali as pessoas saem das trevas da mesmice e se mostram, portanto existem, mesmo que seja por um fugaz instante.

 

Na plataforma tem "gente que chega pra ficar". Ou porque vêm de algum outro não-lugar sem nome, e fazem dali um ponto de passagem, que pode ou não ser definitivo. Uma escala, uma baldeação. Ou porque estão voltando, vencidos, cansados do "mundo de lá", que não lhes concedeu os prêmios, o lugar no pódio, as honrarias sonhadas. Ficar, para eles, pode significar morte. Ou redenção.

 

Tem, também, "gente que vai pra nunca mais". Por desimportantes variados motivos. Porque não deixaram ali, naquele lugar, nada que lhes possa um dia fazer penar de saudades. Ou porque, simplesmente, só sabem olhar pra frente, para o desejável, para o apenas sonhável, enterrando, dia após dia, em cova rasa, o que foi concreta e asperamente vivido ainda ontem.

 

         Tem gente que vem e quer voltar

         Tem gente que vai e quer ficar

         Tem gente que veio só olhar

         Tem gente a sorrir e a chorar

 

Alguns pisam na estação, porta de entrada e de saída, já pensando na hora abençoada de ir embora. A hora da partida. Nada os prende ali. "Gente que vem e quer voltar". São estrangeiros no seu próprio país.

 

"Gente que vai, mas quer ficar". Alguns estão partindo, com o coração sangrando: estes anseiam pelo luminoso dia da volta. Da chegada. Que pode ou não acontecer. Porque, na verdade, ninguém nunca tem a plena certeza de que traça soberano o seu próprio rumo.

 

"Tem gente que veio só olhar". Mais com os olhos da alma. A chegada do misto, ou do noturno, é um acontecimento sempre renovado, uma efeméride diária, uma oportunidade de ver e de se mostrar. Melhor do que o footing na praça, mais promissor do que a quermesse em frente à Matriz. Durante 10 ou 15 minutos, alguém pode ver e guardar, da plataforma da estação, pela janela do trem, um rosto, um vulto, um corpo,  imagem fugaz que povoará para sempre a sua vida sem amor. E conferirá, a seus dias iguais, uma dimensão épica jamais imaginada.

 

Ah, e "tem gente a sorrir e a chorar", apertando no peito um que acaba de chegar ou outro que insiste em partir. Porque "a hora do encontro, é também despedida".

 

         E assim, chegar e partir

         São só dois lados da mesma viagem

         O trem que chega é o mesmo trem da partida

         A hora do encontro é também despedida

         A plataforma dessa estação

         É a vida desse meu lugar

         É a vida desse meu lugar

 

O próprio trem, na sua sólida e irreal arquitetura, parece sintetizar o miúdo destino das pessoas, no seu incansável movimento para chegar e partir. O apito do trem é uma facada no coração. De quem chega, de quem vai, de quem fica. De quem nunca mais.  

 

Chegadas e partidas. São dois lados, não da mesma moeda, dito corriqueiro e banal. "Chegar e partir são só dois lados da mesma viagem". Talvez a frase mais linda já escrita em língua portuguesa. Com a licença de todas as mais lindas frases de todas as mais lindas canções já escritas.

 

A plataforma da estação é a Vida. E a vida, na plataforma, é só um inesgotável ir e vir. É começo e é fim. É nascimento, é morte. Como tudo na vida. Como toda vida. Em qualquer lugar, em qualquer estação. Em qualquer tempo.

 

         É a vida...

 

 

 

 

março, 2009

 

 
 
 
 
Danilo Fernandes Rocha (Belo Horizonte/MG). Advogado, roteirista, cineasta e escritor. Autor de Mortemática (poesia, Editora Nativa, 2004) e Viagem ao Fundo do Poço (romance). Participou da antologia Novos contistas mineiros (Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1988). Um dos vencedores do concurso literário Estímulo às Artes — Auxílio Edição — Literatura 2005, promovido por Palácio das Artes/Suplemento Literário de Minas Gerais, com o livro de contos Mea Culpa (no prelo). Escreveu, sob encomenda, o roteiro para longa-metragem intitulado Lagartas também voam. Finalista do concurso de contos da revista Bravo (2007), com o conto "Portal da Percepção". Escreveu e dirigiu os curtas Sic transit gloria mundi e Em terra de cego.
 
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