A CAMA

 

Com paciência viperina, Maria arquitetou.

Vida e vingança.

Machado, martelo e infelicidade.

Quebrou a cama.

Jeitosamente realizada, a vingança perfeita.

José quase inocente, deita-se e a cama cede. As farpas se encoxam onde Maria havia visto Teresa encaixar-se nele.

Hoje, Maria e José, casados, continuam. Ela, faceira, embonitou depois do acidente. Ele, entrevado, vive só.

Camas separadas.

 

 

 

 

 

MEIA BUNDA

 

O que sempre me deixava teso eram as abaixadas.

Saia justa, curtinha e as coisas, todas caindo no chão.

Neca abaixava feito boneco de madeira, pernas durinhas e caía toda pra frente. A saia subia, mostrando meia bunda, meio rego me deixando teso inteiro.

Nunca fui tomar tanto café na cozinha.

Um dia eu pensava, um dia...

Um dia ela teria que dar marcha à ré e aí...

Vivia de sonhar...

Merda! Sem sabonete.

— Mãe, pai, alguém, o sabonete!

— Aqui, me disse uma mão enfiada dentro do chuveiro. Reconheci Neca. O pudendo também.

— Esse sabonete não gosto, reclamei, sem saber o que fazer. Queria mesmo era sair e catar aquela bunda à força.

— É o meu, responde.

...

— Toma — e Neca entra no chuveiro, com a sainha justa, camisa colada, já na água, meu tesão e a água... espirrava, espirravam.

Saia sem calcinha, camisa molhada...

— Neca —  disse — é hoje.

— Hoje? Só vim dar sabonete.

E Neca saiu.

Assim. Só saiu.

Ah, aquela bunda...

 

 

 

 

MEU NOME DE MARIA

 

Meu primeiro nome foi um: — Ah! uma menina... quem sabe o próximo? Desconsolo deixado no berço, forçou-me entrar na vida. Tempo não leva em conta desejos paterno-maternais.

Meu primeiro segundo nome foi o da avó. Forte, instigante, diferente, diria. E pela herança, encrenqueiro. O nome? Determinação em ser determinada.

O primeiro primeiro nome é mais que bíblico. Da avó Madalena, dadivosa, múltipla em amores fáceis, jamais arrependida, herdei esse predicado — o de ser maria, com esse guardado madalena. A carga do nome, dizia a avó, levo eu, mas carregue consigo ser sempre neta de madalena.

O som primeiro não foi choro como é o geral das crianças. Um silêncio apenas.

E sem vagidos e nomes importantes, e porque minha madrinha não rezou em meu batizado, criei-me na vida maria somente, maria que mente.

Porque madalenas são, bolinhos, penas e falhas. Madalena é a avó e de lamentosa Maria Madalena, a avó jamais me deixaria ser.

Por isso sou Maria, por isso dou nome às coisas.

Na verdade... madalenas são... arrependidas marias.

 

 

 

ASSIM COMO

 

Como Ariadne, espero Teseu matar o minotauro e sair do labirinto.

Como Penélope, ufano as velas de Ulisses e bordo todas as noites o que o dia desfez.

Como mãe, espero que as filhas cresçam.

E como mulher, sento, crio, desconserto e choro.

Nenhum destino a mais, nenhum amor a menos.

 

 

 

ADEUS

 

E me disse adeus, tremular ligeiro nos dedos.

Aqueles que a cada beijo apertavam os braços, tatuavam a pele, desciam as costas e se perdiam abaixo.

— Vou.

Olhei, hesitei. Se chorasse, faria um desastre.

Pouco pensei, fiz de mim um instantâneo e vi seu sinal.

E como meu homem, seus olhos me chamaram.

Não fui.

Na meia volta de mim, suspirei e fitei.

Para meu colo, para baixo de mim, para longe de nós.

Dedos de aceno, prolongamento enfim, penderam do ar.

Era destino, era adeus.

Passeando a forma do aceno à boca, o sentir do cheiro e do roçar, roucos dedos da despedida final.

Somente espanto, dum imperplexo ciao...

E sem a espera de novas voltas.

Olhou-nos, olhou a mim e disse — Me vou... Talvez.

E foi-se, ocasional...

 

 

 

 

CARTA DE QUINTA

 

Meu querido

 

Hoje é quinta, dia de acordar mais cedo, dia da feira aqui na rua. Desde a madrugada os sons chegam, corriqueiros, algo indistintos. Os ônibus sobem a rua ao lado e eu a tudo ouço com preguiça de sair da cama.

Embaixo da nossa janela gritam os preços da banana e da batata.

— Porque banana e batata ficam lado a lado? Você perguntava, eu ria.

— Coisas da feira, meu bem.

Acreditar você não acreditava, mas fazia sins com a cabeça e interrogações nas mãos.

— Cidade enervante, irritante, resmungava. Feira no meio do trânsito, ruas paradas e frutas com batatas...

Mesmo que não queira, o despertador me chama pela segunda vez. Levantar nesse frio... bem que poderia deixar de trabalhar em dias gelados. Infelizmente, não encontrei até hoje chefe que pense assim, então levanto e mais cedo, porque é dia de feira.

Desço correndo.

As laranjas estão secas, as verduras murchas, por isso, trouxe papaias e abacaxi, maçãs, pepino e aipo. Queijo não, porque ainda temos alguns e bolachas, deixei para comprar no chinês ali da esquina. Não se esqueça que já desidratei a hortelã para teu suco. Estão na caixinha azul, terceira prateleira do freezer. Os morangos estão lavados, e as batatas cozidas com a mandioquinha, ainda em cima do fogão.

Adoro sopas nas quintas.

Lúcio manda avisar que seu pastel de banana veio a meio termo hoje. O vidro caiu na perua que agora está perfumada à canela, mas os pastéis, hoje, só açúcar.

Ovos vermelhos, grandes, nenhum. Aliás, acho que precisamos viajar para Minas, trazer doces e ovos de duas gemas. Como será que sabem que as galinhas duplicam as gemas nesse ou naquele ovo? Para mim isso sim que é enervante... loteria de ovos e gemas.

Mamãe fez seu bolo de fubá. Mandou uvas também. Já as meninas arrumaram a mesa e a sala. Não estranhe o excesso de flores... são todas para você.

Sua mãe e seu pai chegaram, cansados e mandaram lembranças. Marquei almoço com ele no clube. Espero que goste.

Quando acordar, me ligue. Prepare seu café, que saí um pouco corrida.

Ah sim, eu que calcei suas meias, seus pés estavam gelados, gelados.

Boa quinta, meu bem querido. O pão deve estar quase pronto quando acordar. Deixei no forno fraco, só para ele acabar de subir e dourar. Desligue antes que eu novamente queime a casa.

Beijos.

 

 

 

 

*

 

Contando a vida, contando histórias...

Não gosto de enterros, muito menos de despedidas, mas vou num e faço o outro sempre que necessário. Enterro meus mortos até o fim. Velo os que gosto e visito, formalmente, os necessários.

Me recuso a dizer meus sentimentos. São realmente meus e deles só eu sei. Por isso, se não sinto, não digo. E se sinto, não falo.

E é bem assim que gosto de levar e ser levada. Pela vida, kismet selecionado.

Não contava com os imprevistos. Ficar viúva, um deles. Cansei de dizer que não pedi para ficar viúva. Desnecessário dizer, não me ouviam. Vivem a viuvez como doença contagiosa, perigosa e epidêmica.

Sexta de quase páscoa e resolvo, porque é a época do renascimento interior, abrir seus guardados.

Seus pertences, ternos gravatas e camisas, imediatamente após sua morte, foram retirados pelo irmão que se nega a sentir dor. Morrer, para ele, significa, até hoje, nunca existiu. Em dois dias ele finalizou com qualquer você que ele encontrasse pelo caminho. As crianças ficaram com as fotos que eu tinha, e nada mais. Nenhuma peça, nenhuma relíquia, péssimas lembranças.

Sexta, madrugada de sábado, e acho que chegou a hora. Nunca disse a ninguém que todos os seus arquivos estavam aqui. Quando vi a desolação que ficou a casa, quieta, separei em pastas todos os teus papéis, que estavam aqui e ali, e juntos, guardei-os para mexer não sei quando.

Chegou o quando e sozinha, sentei para ver o que devo fazer de suas memórias.

Você guardou meus bilhetes de namorada... eu nem sabia. Separei na caixa verde. Caixa para pensar o que fazer. As contas, direto no saco preto, lixo. Rasgadas, picotadas, como era a sua vontade. Os impostos? Mesmo caminho. A jurisprudência me reservo o direito de ler mais tarde. São cansativas, para mim, até hoje.

Não larguei à toa meu curso de direito... entendi melhor seu trabalho, mas por outro lado, desisti com a certeza de não estar perdendo nada de importante para mim. Meu direito era você.

Encontrei o registro do nascimento das crianças, nossos termos de adoção das meninas pequenas, a receita da sopa do nosso primeiro. Uma das muitas fraldas que amarravam as pernas do segundo, para que sozinhas fossem formando sua bacia. Os primeiros cachos loiros da filha, que hoje é morena. Com algumas mechas que, tenho certeza, você não teria autorizado. A pulseira do hospital das duas molecas e, para lerem depois, o processo de adoção das meninas.

Brigamos muito com isso. Você não admitia que eu falasse em adoção perto delas. Quero te dizer: elas estão ótimas, e sabem, não só da adoção como adoram ouvir as loucuras que fiz para tê-las rápidamente perto da gente.

E encontrei uma senha. Fui ao seu micro e escrevi. Abriu como cascata, pastas, documentos. Três novos livros que deixarei para as crianças. Elas saberão o que fazer... mais tarde.

E vi cartas, muitas cartas. Em momento algum achei que fossem para outra pessoa que não eu. Por isso, fui abrindo-as. Mas eram. Falavam de um marido que jamais imaginei. Coisas novas. Diferentes. Dolorosas.

Imprimi a primeira só para poder rasgar. Apertar a tecla delete era pouco para meu ciúme e raiva. A segunda que abri. Com três meses de diferença da primeira, marcava um encontro. Não quis saber. Pulei para o outro ano.

O nome havia mudado.

Voltei, já atordoada. A primeira era R. e a segunda, S. Oras, se sou Maria, de onde saíram tantas letras diferentes? Continuei, soluçando, com essa busca tardia. Busca besta, a bem dizer. O que posso fazer agora, dois anos depois que morreu?

Se berrar muito alto, acordo as meninas. Se sapatear, o vizinho de baixo reclama que não o deixo dormir. Mas a curiosidade, essa, me fez querer saber mais. Como se fosse possível novo sofrimento, dois anos depois.

Continuei lendo, abrindo e-mails, chorando. Para acompanhar resolvi tomar um scoth. Abri seu rótulo preto. Só para misturar com guaraná. Não nasci para whiskies, mas sim para vinhos. Abri um Udurraga. Acabei logo. Segui com aquele Côtes du Rhône que gostava de tomar quando ouvíamos zazz. Que sempre achei uma coisa só nossa. Quando leio que pretende levar a quarta letra, a letra F., para ouvir jazz no All. Ah, juro, homem, que meu sangue ferveu. Joguei da garrafa pela janela, mas arrependida, corri para ver se não tinha machucado ninguém. Às quatro da madrugada realmente ninguém se apossa daqui. Se tu queria briga era briga que teríamos.

Abri a Cristal e joguei na mesma janela por onde mandei o vinho. Peguei da viúva, a Robert não a Clicot e também deitei janela abaixo. Os moços que na rua dormem, agradeceram meu acesso raivoso. Irritada com tantos nomes femininos em seus arquivos, pachorrenta, desci, madrugada mesmo, caixas e caixas de vinhos, uísques e pingas que fizeram meus homens de rua cada vez mais felizes.

— Agradeçam a ele, e apontei o céu, e não a mim.

— É a Páscoa, disse um deles, Deus morreu e tá chorando pinga hoje.

Não tive como não rir... ri, voltei pra casa e tranquei bem a porta. Você não me sai mais daqui até me dizer o que é essa profusão de letras femininas pulando em meus dedos.

A campainha toca. Horário estranho.

Era o Márcio, da padaria, querendo saber se eu realmente tinha dado aos moços toda aquela vinhataria.

— Por enquanto, estou dando só os vinhos, respondi grosseira.

— Se for dar mais alguma coisa me avise, que atravesso a rua antes deles... ele riu, pobre Márcio.

Retruquei — Agora só dando o rabo.

É... estava brava. Não sou de responder e abomino as grosserias.

— Se for dar esse, aceito também, respondeu Márcio. Aí desci, ou foi ele quem subiu, mas estávamos rindo e tomando vinho em alguma hora que nem me dei conta.

Contei a ele da traição pós-túmulo.

— Dona Maria, o falecido já faleceu mesmo, liga pra isso não.

— Você nunca teve marido, Márcio. Não sabe o que é isso.

— Ah, dona Maria, marido não tive não, mas esposa já tive algumas.

— Algumas, Márcio? Mas não quis saber. Hoje só me interessavam aquelas letras femininas. Em outra hora que também não sei predizer, ele estava mexendo no computador. Me chamou, sentou-me com cuidado e foi lendo uma enorme carta.

Uma despedida. Querendo morrer e não sabendo como, querendo deixar a pensão e sabendo que não poderia se matar, o falecido começou uma jornada à cata de doenças. Com tantas mulheres, conseguiu nenhuma doença, nenhum problema. Diabético que era. deixou escrito que começava ali o final do seu destino. Seu Beshér, destino, judaico-cristão. Aumentando a bebida, açúcares e outros proibidos. Realmente. Um ano após seu kismet literário, faleceu.

Suicídio voluntário sem arma e sem sangue.

Márcio pode até se consolar. Eu não.

Enterrei definitivamente o falecido quando cheguei na letra Z. Mulheres meio honestas não têm nomes começados pela letra zê.

Márcio desceu, deixei a porta destrancada. Não quero nunca mais que fiques aqui por perto. Saia que a porta está sempre aberta. Não tranco mais viva alma comigo.

E sua memória, deletei pela tecla FODA-SE.

Amanhã volto ao luto, que não curti. Ao preto que adoro usar. E à condição de viúva. Que atrai mais moços que mel e perfume.

E tenho dito... tenho...

 

 

 

 

*

 

Algumas vezes.

Às vezes encrenco, outras emburro. Mas em todas às vezes, pego a tela, separo novas linhas e começo mais um bordado.

Nunca trago bordados lá para fora.

Se vai ficar pronto, se ficará bom, se o avesso será perfeito são razões sobre as quais jamais divago.

Tenho por obrigação, única, o bordado.

Outros os tempos e sentaria na porta do quintal para pensar, tomando sorvete direto do pote. Cheguei a gostar dessas subversões não muito graves.

Sento, sim... sentava. Sentava encostada no batente esquerdo, para deixar a porta sempre aberta e com as pernas esticadas, segurar o outro lado. E assim, do jardim, perceber só as laterais.

Jardim pouco cuidado, vezes desfeito em tantas mudas, outras, infestado de pragas.

Nos finais de tarde, quase acolhedor. No começo da noite, aterrador.

O sol amanhece como morte para a grama já esturricadamente estéril. Deixei de cuidar desde... desde que resolvi não cuidar mais do jardim.

Entretanto, gosto de ver que nem meu desgostar devastou esses poucos verdes.

Aqui venho maquiar meu tédio. Disfarço-o de jardim. Um estranho jardim plantado em cirílico para que eu jamais possa lê-lo. Guardo as tardes para decidir. O sol vai, o sol vem e nunca chego a nada.

Penso nas razões adequadas. Penso.

Penso que gostaria de ser Anna K. forte, mas quem sabe entregue a poucos desmaios. Lembro do conde, do trem da história, mas fiquei com a imagem, docemente juvenil, que desmaios devem resolver quase tudo

Acontece que se desmaiar aqui, aqui ficarei desmaiada até acordar, sozinha

Pedi dias para decidir. E decidir, não sei se ainda sei.

Passei noites bordando. A dama de azul, a moça da saia vermelha, o céu desbotado e as terras claras. As linhas sobraram. Alcancei meu aquário de linhas e coloquei as novas sobras. E só assim percebi que meu vidro, no batente de todas as cozinhas que sou, reúne cores que o sol traz e leva.

Segurei firme meu arco-íris envidraçado, entrei e decidi.

Amanhã, começo a te amar.

 

 

 

(imagens @kasius)

 

 

 

Maria Odila (São Paulo/SP). Passada dos 50, criando filhas, cães e letras. Tricota todo dia, enquanto lê ou vê filmes. Relê quem gosta como mantra diário e toda semana, passeia em livrarias. Viciada em livros e música. "Sem escrever, não sou eu e nem vivo bem. Minhas filhas que o digam. São meu suporte em todas as horas, em todas as escritas". Edita o blogue Digressiva Maria.