RESGATE

como posso resgatar
o que não existe em mim?
ao beijar a solidão
eu me dispo por inteiro
da escória que é o homem
na inútil tentativa
de ser Deus por um minuto

 

 

 

 

 

 

TERRITÓRIO


"O que não sei fazer desmancho em frases"
Manoel de Barros


 

brota em mim o verbo
com suas pessoas

desconjugá-las não posso

em mim
a palavra
se faz morada

 

 

 

 

 

 

HERANÇA

não deixo bens
aos que ficam

de mim
restará a palavra
(antes cinzel)
agora verso
a burilar os homens

 

 

 

 

 

 

DESCOBERTA

nada detém a vida

esvai-se o tempo
o tempo em mim

caramujo do imo
guardo porta-retratos

aqueço a memória:
a infância me foi roubada

 

 

 

 

 

 

PARTILHA

a mão estendida
abençoa o trigo

à procura do ponto
ágeis dedos
manipulam a massa
do mundo

mas a vida só faz sentido
quando se reparte o pão

 

 

 

 

 

 

LABUTA


         

A João de Abreu Borges

 

em sua própria vida
o homem finca raízes

atravessa árvores
mata fungos

sem olhar para trás
e perceber: os frutos

não mera consequência

 

 

 

 

 

 

BOEMIA

hoje a lua é verso
de loucos, de putas
e de poetas

hoje a lua é verso
prazer bêbado
regaço

 

 

 

 

 

 

COTIDIANO

há vísceras
em todos os lugares

quem se indigna
diante de quem sangra?

 

[Poemas do livro Fora de órbita. Rio de Janeiro: Editora da Palavra, 2007]

 

 

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

MÃOS DESUNIDAS

 

não serei o poeta do passado

embora dele me alimente

 

canto o presente

que Drummond não vê

 

nada de serafins

cartas de suicida

— os homens aterraram

a palavra amor

num canteiro de obras

 

as mãos desunidas

traduzem: os espinhos

inda sufocam as flores

 

 

 

 

 

 

CASA

 

faço do silêncio

a morada do ser

 

não lhe digo

palavras duras

nem amorteço quedas

 

apenas guardo

a concha

em que abrigo

a solidão dos homens

 

 

 

 

 

 

FOME

 

ao roçar a boca da solidão

entre auroras e estrelas

mastigo minha dor

 

em que língua nos falamos?

 

 

 

 

 

 

RABO-DE-ARRAIA

 

       

A Igor Fagundes

 

 

ao som do berimbau

batuque ginga cadência

 

o poeta luta

capoeira

com a palavra

 

 

 

 

 

 

NÁUTICA

 

 

A Olga Savary

 

 

navego

em tua essência

 

mergulho nos seixos

que te habitam

mas não naufrago

 

o mar nos pertence

 

 

 

 

 

 

TRANSFORMAÇÃO

 

           

A Antonio Carlos Secchin

 

 

toda linguagem

é selva

a ser devastada

 

toda linguagem

é terra

a ser adubada

 

toda linguagem

é pedra

a ser limada

 

 

 

 

 

 

REINADO

 

     

A Lêdo Ivo

 

 

enterra palavras

em alto-mar

 

como tesouro

às escondidas

qual pirata

faze das águas

a cidade de teus versos

 

 

 

 

 

 

FAXINA

 

a menina varre os dias

tenta limpar

a própria escória

 

como espanar o pó,

livrar-se do fardo?

 

longe daquela casa

passa o amor

 

 

 

 

 

 

ALTO- MAR

 

teias de solidão

no oceano

 

o navio não mais atraca

 

de nada servem

a âncora enferrujada

o mastro sem bandeira

a quilha

o radar

 

todos se foram

 

só o mar permanece

cúmplice dos desamores do mundo

 

 

 

 

 

 

LIÇÃO DE PORTUGUÊS

 

       

A Patrícia Blower

 

 

amar, verbo transitivo?
amar é verbo de ligação

entre dois sujeitos

 

 

 

[Poemas do livro Espiral. Rio de Janeiro: Editora da Palavra, 2009]

 

 
 
 
 
 
 
Luiz Otávio Oliani cursou Letras e Direito. Consta em mais de quarenta antologias de literatura., com participação intensa em eventos literários, jornais, revistas do País e do exterior. Recebeu mais de 50 prêmios. Publicou Fora de órbita (Rio de janeiro: Editora da Palavra, 2007), com orelhas de Teresa Drummond e prefácio de Igor Fagundes; livro recomendado pelo Jornal de Letras, editoria dos acadêmicos Arnaldo Niskier e Antonio Olinto, em outubro de 2007. Em 2008, teve o poema "Teresa" musicado por Maury Santana no CD Música em Poesia, volume 1. Espiral (Rio de Janeiro: Editora da Palavra, 2007), com prefácio de Reynaldo Valinho Alvarez, orelhas de Astrid Cabral e foto do autor por Eloísa Batelli, é o segundo livro de poemas do escritor. Tem poemas traduzidos para o inglês, francês, italiano e espanhol na Revista Ponto Doc número 7, edição de 2009.