Paradigmático é o título do mais recente livro de contos de Péricles Prade: Correspondências, 2009. Relaciona, indicial e anamórfico, escrever e ler para reunir sabedorias em um só pensamento. Ao aproximar imaginação e erudição, as alusões nesta obra logo são submetidas no que têm de histórico ao trespasse da ficção.

         Quem se der ao feliz trabalho de sistematizar as fontes ficcionais de Prade, terá em primeiro plano as relações abstratas motivadas pelo afetivo, faculdade que sobrevive graças às centelhas que as palavras emitem uma vez pronunciadas como sucedâneos em mudanças.

         O termo correspondência abrange a análage, a hipaláge, a metonímia, a catacrese e a sinedóque. As alusões, assim, são provisórias, pois da fagulha lida vem o relâmpago da escrita em giros e inversões. As palavras mais adequadas aqui são permutação, translocação e transposição.

         Não menos que os livros anteriores, Correspondências foi escrito de uma tal forma que não é mais possível dissociar pensar de alucinar, qualidades aparentemente antípodas e pouco encontradas na literatura brasileira. A tal forma, que transforma semelhanças em diferenças, sugere a vigília de escritura, a meditação ou a "varinha de condão" em "Vocação", e que o autor localizou na magia, a "vírgula divina" na história milenar de objetos que têm vida própria.

         Sem poder adestrar porcos, como desejava, o personagem deste conto sai de casa à procura de sua vocação, desconhecida. Auxilia um geólogo, pratica a tatuagem, consulta os arcanos e encontra, finalmente, a cigana que lê sua futura glória "pelas mãos do destino". Enquanto as circunstâncias levam o personagem ao que já estava nele, um encantador de serpentes, o autor vai pontuando práticas sagradas, todas lidas em livros de magia e em outros não menos mágicos. Nas peripécias de tatuador, por exemplo, sabe-se que o personagem sem nome lê um artigo que diz sobre a origem da tatuagem: "Soube, então, que sua origem se encontra nos antigos judeus, sendo prescrita por Jeová, no Êxodo (XIII, 16), como sinal de Aliança. Fascinou-me, também, a notícia de que o Apocalipse (XIV, 9) localiza a marca da Besta na mão ou na testa".

         Ao sujeito, além da substância, interpõe-se o acidente, e as finalidades são atingidas, mesmo as mais absurdas. Em "Vendedoras de ventos", no qual expressamente o autor cita um livro, História da magia, de François Ribadeau Dumas, saboreia-se o improvável mas verossímil sobre duas mulheres "possuidoras de idêntica profissão", vender ventos. Ambas têm comportamentos dementes, cuja sabedoria advém do estranho que não denota nenhuma utilidade, a não ser alimentar pequenos sinistros afetivos. Colecionam dentes podres, matam adversários, não soluçam, não fazem sexo nos domingos e memorizam "as letras de todos os alfabetos das línguas vivas e mortas". A motivação de tão insólita profissão não é revelada, o que provoca a intertextualidade sobre as ilusões: os homens correm atrás do vento, como mariposas esvoaçam na luz.

         Em "Paisagens", o incidente de uma garrafa trazida pelo mar transforma uma criança em ancião, Jeremias. Ficou "encantado" com sua forma de gema e, tocando-a, ouviu uma voz que o fez olhar pelo gargalo, ansioso. Comportando-se como quem viveu o suficiente para ver que é o movimento que faz as coisas, virou-a à direita e à esquerda, desfrutando "eventos" belos e tenebrosos, respectivamente. A garrafa é prodigiosa por conter a vontade da matéria.

         É o tempo de Jeremias, o de ouro, que faz dele a percepção de outro tempo, o do clinamen, que concentra o que foi e o que virá. Daí a sua prudência, própria de mentes avançadas: enterra a garrafa para não ser girada à esquerda, poupando a humanidade do horror, porém privando-a da "esplendente beleza".

         O clinamen que irrompe na escrita pradeana, de fonte epicurista, também permeia o nome e a identidade. Um ornitólogo, em "Passaromorfose", quer ser uma criatura de asas e imagina "que tipo melhor se afeiçoaria ao seu temperamento". Enquanto pensa nos possíveis pássaros que poderiam resgatá-lo do peso humano, vai descrevendo suas atribuições anímicas e míticas. O engole-vento, o corvo, a coruja, o milhafre, o pelicano, o simorgh, o rouxinol e a andorinha transportam-no a continentes e a culturas. O ornitólogo contenta-se com as três últimas aves, que representam o humano, o platônico e o fecundante. Enfim, decepcionado, viu "que se transformara em um pavão bizantino".

         De desvio em desvio, a narrativa do ornitólogo diz que o sentido de uma palavra, ao nomear um objeto, está no sentido de outra e assim por diante. Ao valer-se de figuras, na realidade são as palavras que vão dizendo umas às outras na deriva da linguagem. Deleuze: "Para cada um de seus nomes, a linguagem deve conter um nome para o sentido deste nome". Essa proposição é conhecida como paradoxo de Frege, e é também, para Deleuze, o de Lewis Carroll. Veja-se "Olhos esbugalhados", o título da canção do cavaleiro no encontro com Alice. — "Oh, é o nome da canção ?" diz Alice. — "Não, você não compreendeu, diz o cavaleiro. É como o nome é chamado. O verdadeiro nome é: o Velho, o velho homem". — "Então eu deveria ter dito: é assim que a canção é chamada ?" corrigiu Alice. — "Não, não deveria: trata-se de coisa bem diferente. A canção é chamada Vias e meios; mas isso é somente como ela é chamada, compreendeu ?" — "Mas então, o que é que ela é ?" — "Já chego aí, diz o cavaleiro, a canção é na realidade Sentado sobre uma barreira".

         Outros contos — "Engrenagem", "Hipnotizador", "Bicicletas", "Correspondência", "Arapongas" e "Sonhos" — dão continuidade objetual e mental aos paradoxos da linguagem. Correspondem a um sistema mutacional de tempo, espaço e suas representações.

         O conto "Engrenagem" emblematiza estas subversões ilógicas que aspiram a grande lógica, a correspondência das declinações. O mecanismo exato de um relógio, que somente poderia ser suíço, é questionado pela imponderabilidade humana. Mergulhado no interior da máquina repetitiva, o personagem quer saber sobre a sua "estrutura", que pode agonizar na "matemática nitidez de sons emitidos". Mas não agoniza. Vacuidade: ele apenas constata a "sensação de fazer parte desta extraordinária engrenagem musical".

         O fascínio exercido pelo relógio continua em "Hipnotizador", este um relógio renascentista e maléfico na coleção de alguém que abriu uma loja sem despertar o interesse dos compradores, até ouvir batidas na porta, de um homem no meio da vida. Apesar da aparência maltratada, ele tem posses suficientes, diamantes, para adquirir um certo relógio do século 15, que tem o dom de hipnotizar, do qual quer se vingar por ter induzido seu filho a matar "o assasssino de seu primeiro proprietário". O cliente, que espatifou o precioso objeto com um martelo, desfila seus conhecimentos sobre coleciadores, relojoeiros e inventores de relógios, que são mais enigmáticos quando parados. Comenta sobre Rodolfo II, que abrigou em sua corte os mais famosos relojoeiros, "entre os quais se destacavam Georges Schneeberger e Jobst Burgi, inventor do pêndulo, o melhor amigo de Kepler". Esclarece o equívoco sobre o artista Pontormo, que teria construído o relógio de bolso, na realidade façanha de um serralheiro, "Peter Henlein, nascido em 1480 e falecido em 1542".

         Todas estas informações são verdadeiras, inquestionáveis, e por isso mesmo beiram a ficção, ainda mais quando o "erudito cliente" demonstra familiaridade com a iconografia simbólica: "Assim como o pentágono é o símbolo dos pitagóricos, e o terceiro olho é o símbolo dos budistas, o relógio é o símbolo dos maneiristas". E ele menciona sua ascendência memorável, dizendo-se "descendente de Athanasius Kircher, criador do orologium phantasticum, combinação feliz de clepsidra e de relógio solar", quem sabe a comunhão de elementos vitais, a água e o fogo, que desde sempre são a mesma coisa.

         As correspondências, além dos relógios, reavivam bicicletas, "obsessão" ou "coisa mental", "paranoia" no discurso da razão sobre a loucura, para o personagem batismo "sem razão".

         O conto, "Bicicletas", é uma breve aula sobre artes plásticas, especificamente sobre três obras do século passado, das quais atribuiu-se os transtornos psíquicos do personagem-paciente: "Roda de bicicleta", de Marcel Duchamp em 1913, "Cabeça de touro", de Pablo Picasso em 1942, e "Bicicleta e lousas com inscrições", de Joseph Beuys em 1984. Ao refutar estas procedências, não é a clareza com que lê as obras que o tornam menos obtuso, negando-se ao papel de coautor por osmose com a arte feita como crítica da arte. Mesmo assim, ele não deixa de ser crítico: a Duchamp imputa o desejo de utilizar uma roda "como se fosse uma obra de arte"; a Picasso satisfazer "apenas aos amantes da tauromaquia"; e Beuys a "pedagógica, lendária e messiânica pretensão". Nada disso ele queria aceitar, apaixonado pela "própria bicicleta, inteira, de uso diário, objeto útil e estético". Como poderiam, artistas iconoclastas, satisfazer a sua fantasia que sacrificava a existência moral, não a estética na fisicalidade do objeto em si?

         "Bicicletas", nesta passagem, coloca o mais controvertido da história cultural e familiar. O roubo em arte, que na apropriação de objetos expropria as suas funções, é substituído pelo roubo executado pelo personagem por não ter sido, no costume familiar, presenteado com uma bicicleta ao completar 25 anos. Decepcionado com o lapso, foi tomado pelo furor de Marcel – a criança proustiana que somente dormia com o boa-noite da mãe e a leitura que a ele fazia de George Sand. A decisão de furtar uma bicicleta amenizou o impasse, "pois, se não a furtasse, além de choroso ficaria violento, causando problemas aos vizinhos". Nas artimanhas do roubo, ao preparar o ato, o ladrão passa à descrição de uma foto de Harlingue-Viollet, do mestre patafísico Jarry pedalando, com notável economia e precisão: "Ele andava, o olhar fixo no provável horizonte, sem revelar distração, movimentando os pés com segurança, o esquerdo embaixo e o direito em cima, cuja cabeça heráldica, enfeitada por um bigode ralo, cobria a metade do portão da casa antiga, que exibia a janela maior de asas abertas".

         No final de "Bicicletas" constata-se que um problema, a decepção do personagem, foi substituído por outro, o roubo, porém como solução  imaginária que levou-o à catarse mistificada com a bicicleta: "Ela, a mais amada, está comigo nesta Catedral de muros fechados, e a giro, giro, giro enquanto as imagens das rodas, guidão e selim embaçam o que ainda resta da memória, até eu cair exausto". Jarry, por outro lado, obteve a bicicleta da foto como se fosse um sub-roubo, não pagando-a. Aqui também um problema foi suplantado por outro, algo semelhante nas obras de Duchamp, Picasso e Beuys. A arte, em poucas palavras, é um ato problemático que ao abolir o passado, inaugura o futuro.

         A abolição em arte, geralmente vincada em apagogias dialéticas e utópicas, tem equivalentes no processo científico. Um problema pode e deve ser resolvido com outro com a relativização de propriedades mentais e físicas mais afastadas entre si. Isso já é uma problemática que nunca acaba de ser pensada. Assim encontra-se o "físico" em "Correspondência". Precisa resolver um problema científico que, na física moderna, não pode se valer da experiência, somente da especulação. Este foi o método de Einstein, no qual o dado teórico constitui-se antes de assumir o fato experimental, não o contrário. Há mais suposições nos campos da relatividade e da probabilidade, que, além de físicas, são filosóficas.

         O físico do conto de Prade, "nuclear", especula em torno de um problema não revelado, e chega à conclusão que somente poderia solucioná-lo com a declinação de todos os verbos latinos. Orietur, originar-se, originar. E assim ele procede durante longos anos na expectativa de "estabelecer alguma correspondência entre a declinação verbal e o problema, na certeza de solucioná-lo". Sem encontrar a solução, retoma a tarefa linguística por outra via, pois ele é físico, e "um físico nuclear jamais perde a esperança".

         Não perde, no sentido que o narrador dá à esperança, o contato com o desconhecido, que tem somente uma idade: a dos eventos, que se correspondem em suas singularidades. Há pontos aleatórios ou o acaso exemplificado por Borges em Ficções ao descrever o jogo babilônico: "Se a loteria é uma intensificação do acaso, uma infusão periódica de caos no cosmos, não seria conveniente que o acaso interviesse em todas as etapas da tiragem e não em uma só apenas?" As tiragens são infinitas e as decisões se ramificam, continua Borges. "Os ignorantes supõem que infinitas tiragens necessitam de tempo infinito; basta, na realidade, que o tempo seja infinitamente subdivisível, como o mostra a famosa parábola do Conflito com a Tartaruga". Um evento ocorre porque outros ocorreram e assim todos os eventos são possíveis. O mesmo Borges ilustra com o segredo de Fang e o desconhecido que surge: "Fang pode matar o intruso, o intruso pode matar Fang, ambos podem escapar, ambos podem morrer etc. Todos os desfechos se produzem, cada um é o ponto de partida de outras bifurcações".

         "Arapongas" e "Sonhos", entre outros relatos, apresentam esta quarta dimensão. Ao ser perturbado por arapongas que pousam em seu enorme nariz, o personagem perfila "soluções" para exterminá-las. Chega a apelar a São Francisco de Assis, que poderia telepático "chegar a um acordo" com as aves. Nenhuma das soluções foi executada, prevalecendo outra "escolha", esta de "origem mística" conforme ouviu da vidente que consultou. Da superfície, conclui-se, o relato foi à profundidade em graduais declinações que acabam, ou começam, esferas limítrofes em regressões na escrita. Chega-se, então, ao vazio, de onde poderão surgir outros sentidos. Estes, em "Sonhos", multiplicam-se com o hábito de um casal, relatar suas vidas noturnas exemplificadas em dois sonhos: o homem sonha com a mão decepada de São Damasceno, e a mulher com o sol escurecido. O hábito foi quebrado, pois resolveram não compartilhar mais os sonhos, porém escrevendo-os e guardando-os. O silêncio entre ambos levou-os a mudanças fisiológicas que afetaram a sincronia afetiva. Escrever os sonhos, é provável, foi uma defesa inconsciente contra estes ataques, os mesmos que ocorrem no sono paradoxal quando o sistema nervoso simpático defende o sonhador, que se decompõe, com exceção dos músculos oculares, descrito, em 1899, por Sante de Sanctis: o fenômeno onírico é provocado pelos

movimentos oculares de quem dorme.

O final de "Sonhos" enseja todos os sonhos. No dia em que a mulher faleceu, o homem, ao resgatar os papéis segredados, descobriu que haviam "sonhado os mesmos sonhos". Sem que se saiba quais as imagens, imagina-se tantos sonhos, começando com um dos mais raros: eles sonharam que estavam sonhando.

 

 

 

 

___________________________________

 

O livro: Péricles Prade. Correspondências — Narrativas mínimas. Porto Alegre: Editora Movimento, 2009.

___________________________________

 

 

 

 

dezembro, 2009

 

 

 

 

 

Jayro Schmidt é artista plástico, escritor, professor de pintura e história da arte.