Quando se trata de diferenciar História e Literatura, parece simples dizer que a primeira baseia-se em documentos e evidências, enquanto que a segunda nasce essencialmente da imaginação do autor. Se tal distinção surge clara quando tomada à distância, os limites tornam-se imprecisos quanto mais aproximamos deles as nossas lentes. Ora, o escritor ao criar aquilo que se convencionou chamar de "ficção histórica" compõe uma obra ficcional com sólida pesquisa realizada sobre documentos fidedignos. Por outro lado, o historiador não pode prescindir de sua imaginação ao debruçar-se sobre a letra fria do documento, já que a mera transcrição sem uma análise e interpretação dos dados nele contidos nada acrescentaria ao próprio, tornando o texto, no mínimo, desnecessário.

Diversas considerações caberiam igualmente ao se abordar as distinções entre o texto histórico e o jornalístico, o texto jornalístico e a propaganda, entre prosa e poesia. Entretanto, tais questões soariam incoerentes diante da obra multifacetada de Luiz Roberto Guedes, onde se congregam a poesia, o conto, novelas juvenis, letras de música, traduções e até o texto publicitário por profissão, o que evidencia o caráter empobrecedor da aplicação de rótulos quer sobre textos, quer sobre seus autores. 

Guedes começou a afiar seus instrumentos na efervescente cena poética de meados dos anos 70, estreando com a antologia Maus Modos do Verbo (1976), em edição conjunta com Glauco Mattoso e Osmar Reyex. A partir dali, seu texto ágil revelou-se nas letras de música que escreveu sob o pseudônimo de Paulo Flexa —, para tantos parceiros, como a dupla Luiz Guedes & Thomas Roth, em seu Calendário Lunático, obra poética na qual a sonoridade e o ritmo evidenciam a extrema musicalidade de suas criações, em saborosos livros criados para o público juvenil, como Armadilha para Lobisomem, Treze Noites de Terror e Meu Mestre de História Sobrenatural, entre outros, e, enfim, nesta inusitada novela histórica O Mamaluco Voador (Travessa dos Editores, 2006).

 

 

Noviço voador da Terra Brasilis

 

Crônica epistolar, escrita em português quinhentista, recheada de citações latinas, o texto recria parte da correspondência enviada do território que viria a se tornar o Brasil pelo padre jesuíta Manoel da Nóbrega1 a outro jesuíta em Goa, no ano de 1569. Nessa correspondência, além de traçar um rico painel das dificuldades da vida na colônia, Nóbrega narra a história do noviço Anrrique Braz, filho de ex-frade e indígena cristianizada, e da luta interior deste para equilibrar o rigor dos votos com os apelos de seu sangue nativo.

As tentativas de Nóbrega de impor a moderação de costumes ao noviço questionador fazem surgir o conflito central da história. Anrrique Braz demonstra grande capacidade de fazer-se admirado e amado pelos indígenas, o que o transforma em eficiente arma no processo de catequização desenvolvido pelos jesuítas. Entretanto, a necessidade de justificar a escravização dos nativos, seja pela cruz ou pela espada, coloca os religiosos em campos opostos, ainda que o discípulo deseje tão somente servir ao deus cristão e lutar contra as atrocidades praticadas pelos colonizadores.

Após a batalha travada entre franceses e portugueses pela retomada do Rio de Janeiro, o noviço encontra anotações e um certo projeto de “máquina voadora” deixados para trás por um soldado francês. As experiências levadas a cabo pelo noviço a partir desses achados serão o ápice das desavenças com o superior jesuíta, enquanto Anrrique Braz vai se transformando numa figura lendária, espécie de proto-herói nativista que sintetiza as contradições entre civilização e barbárie, entre os dogmas católicos e animismo, entre Velho e Novo Mundo.

Se as discussões que o texto apresenta parecem concentrar-se na luta do Pe. Nóbrega pela salvação de seu noviço preferido, múltiplas outras surgem entre as frases de sonoridade ímpar. Por exemplo, o uso da correspondência como coluna vertebral da Companhia de Jesus2, eficiente e rápido sistema de troca de informações entre as missões espalhadas pela África, Ásia e América e a sede, em Roma. Ou a complexidade das relações estabelecidas nos primeiros momentos da colonização, quando a escravização do indígena para servir aos interesses econômicos de Portugal justificava-se sob o discurso de salvação de sua alma. E tantas outras.

Assim, O Mamaluco Voador, alinhando-se a outras propostas de utilização radical da linguagem levadas a efeito na literatura brasileira e reverberando a temática de grandes épicos, como O Uraguai3, e das crônicas sobre a colonização das Américas, é leitura original e fascinante, retrato dos instigantes e diversificados talentos de seu autor.

 

 

Notas

 

 

___________________________________

 

O livro: Luiz Roberto Guedes. O Mamaluco Voador. Curitiba:

Travessa dos Editores, 2006, 144 p.

___________________________________

 

 

 

 

 

março, 2009

 

 

 

 

 

Edmar Monteiro Filho é poeta e escritor. Publicou em poesia Este lado para cimaHalma húmida, os livros de contos Às vésperas do incêndio (Prêmio Cidade de Belo Horizonte), Aquários (Prêmio Cruz e Souza de Literatura), e a novela Azande.