Andando por um sebo, vi um título de livro de Susan Sontag que, tenho certeza, alguém dado a esoterismos já comprou pensando tratar-se de Astrologia. Se o fez cegamente, ao abrir o livro em casa, deve ter xingado cada página do que encontrou. Sontag é bem o avesso daquilo que um "esoterete" gosta: seus prazeres são os da estética e do intelecto exercido com crítica, ela se dirige ao público que pensa, e uma das características mais contundentes do esoterismo é a servidão do intelecto a deuses e mistérios que, se o esotérico se desse ao trabalho de decifrar, iriam pelo ralo. Mas, como estamos vivendo numa época profundamente anti-intelectual, com muitos misticismos obscuros servindo a um calculismo material indisfarçavelmente claro, Sontag não é para muita gente, realmente.

Se, para não mais valesse, Sob o signo de Saturno é o livro que traz um ensaio que todo interessado por Cinema deve conhecer: é sobre Leni Riefenstahl, a cineasta favorita de Hitler, autora do documentário (considerado um dos mais belos da história do cinema) Triunfo da vontade. Esse ensaio sobre Rienfenstahl é famoso e controvertido e vem de uma época em que a cineasta era, por assim dizer, reabilitada, como se tivesse sido uma autêntica artista que só por mero acaso estava no meio da desgraça, fazendo documentários esteticamente deslumbrantes sobre celebrações ocorridas durante o nazismo. Sontag faz uma análise que vai fundo na questão da estética autoritária, kitsch e sentimentalóide que servia de base à ideologia e ao regime e prova que Riefenstahl, na ocasião dedicando-se à fotografia de uma tribo africana chamada Nuba e "despolitizada" por novas gerações que achavam possível dissociá-la de seu  passado culposo, prosseguia sendo esteticamente filiada, em espírito, aos ideais de glorificação da morte do nazismo. E mais: Sontag é capaz de descobrir veios fascistas até em filmes como 2001, de Kubrick, e Fantasia, de Walt Disney.

 

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Muitas críticas foram dirigidas à falecida Sontag, como se ela fosse uma ruminadora do óbvio, divulgadora da vanguarda artística europeia para um público americano que tratava com certo didatismo, parecendo incumbida de traduzir certas complexidades do verdadeiro mundo da Cultura para uns mal disfarçados filisteus ou esforçados diletantes. De fato, ela às vezes parecia estar fazendo um trabalho de divulgação, pelo tom adotado em alguns ensaios deste livro.

Mas isso de modo algum é um defeito. Esse aspecto aparentemente "facilitador" só pode ser criticado por quem não percebe que os ensaios trazem muita clareza (sem ser infiéis à complexidade de obras e autores, mas tampouco sendo chatos para o leitor mediano). Susan não rebaixava essa função de explicadora de fenômenos culturais. Fazia sim um trabalho de divulgação que não é jamais aviltante ou rasamente pedagógico.

O que ela escreve sobre Antonin Artaud em "Abordando Artaud", por exemplo, é verdadeiramente exemplar, sem trocadilho, e especialmente para quem queira encontrar o que a arte de vanguarda — no caso, a teatral — vem tentando fazer,  há muito tempo, com todas as suas "loucuras" (a definição fácil e imediata de quem não ama outra coisa que não entretenimento). É de fato divulgação, mas de uma espécie muito superior:

"Na visão deflagrada pela sensibilidade romântica, o que é produzido pelo artista (ou pelo filósofo) contém, como estrutura interna reguladora, uma descrição dos trabalhos da subjetividade. A obra deriva suas credenciais do seu lugar numa determinada experiência vivida; assume uma totalidade pessoal inexaurível, da qual a "obra" é um subproduto, derivado e inadequadamente expressivo daquela totalidade. A arte torna-se uma afirmação da autoconsciência — uma autoconsciência que pressupõe uma desarmonia entre a pessoa do artista e a comunidade. De fato, o esforço do artista é medido pelo tamanho de sua ruptura com a voz coletiva (da "razão"). O artista é uma consciência tentando ser. "Eu sou aquele que, para ser, deve fustigar o que me é inato", escreve Artaud — o mais didático e mais intransigente herói da auto-exacerbação na literatura moderna.

Em princípio, o projeto não pode ter sucesso. A consciência, enquanto dada, não pode jamais constituir-se totalmente a si própria na arte, mas deve esforçar-se para transformar suas próprias fronteiras e alterar as fronteiras da arte. Portanto, qualquer obra "singular" possui um duplo estatuto. É tanto um gesto literário único, específico e já estabelecido, quanto uma declaração metaliterária (geralmente aguda, às vezes irônica) sobre a insuficiência da literatura em relação a uma condição ideal da consciência e da arte. A consciência concebida como um projeto cria um padrão que inevitavelmente condena a "obra" a ser incompleta. Baseada no modelo da consciência heróica que objetiva nada menos que a total auto-apropriação, a literatura aspirará ao "livro total". Comparada à idéia do "livro total", toda escrita, na prática, consiste de fragmentos. O padrão de início, meio e fim não mais se aplica. A incompletude torna-se a modalidade dominante da arte e do pensamento, dando origem a antigêneros — obra que é deliberadamente fragmentária e auto-anulatória, pensamento que desfaz a si mesmo. Porém, o destronamento vitorioso de velhos padrões não requer que se negue o fracasso de tal arte. Como diz Cocteau, "a única obra bem-sucedida é aquela que falha".

A citação foi longa, mas o trecho é tão denso e revelador que dá uma ideia de para onde Sontag nos pode levar: torna muito clara a questão da arte contemporânea  não só aclarando os escritos de Artaud — cuja irracionalidade os torna às vezes de uma beleza alucinante, capaz de induzir a transes, como se vê no seu texto "O suicidado pela sociedade", sobre Van Gogh — mas um monte de obscuridades que parecem tornar toda arte feita com compromisso criador mais elevado, longe dos ditames do mercado, uma verdadeira maldição para a compreensão mediana. Isso não foi escrito para filisteus. Isso é uma decifração de alto nível de um fenômeno verdadeiramente complexo.

 

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Este livro acrescentou muito à outra leitura (e releitura, pois é fascinante) que eu já havia feito de Sontag — a de Contra a interpretação, coletânea também já clássica que traz, entre outras coisas, seu famoso ensaio sobre o "camp". Contra a interpretação é praticamente essencial para quem queira entender os passos contemporâneos do teatro, do cinema, da literatura, ainda que alguns daqueles ensaios tenham um espírito muito afim ao dos anos 60 e devam parecer datados, para alguns. Mas Sontag, com sua volúpia de explicar, consegue atravessar décadas sem perder o interesse e vai fundo em muitas questões e diz palavras decisivas sobre coisas que até hoje parecem herméticas demais para alguns.

Através de Contra a interpretação fica-se conhecendo, por exemplo, um escritor italiano pouco lido no Brasil, Cesare Pavese, que parece um homem particularmente problemático e fascinante. Ou lê-se uma profunda, divertida e irresistível análise da catástrofe no gênero cinematográfico da ficção científica, quando não há como discordar da perfeita compreensão irônica que Sontag teve daqueles filmes B (alguns japoneses) que mostravam calamidades, ataques de alienígenas ou monstros ao planeta Terra, todos banhados por clichês ridículos, mas sociologicamente reveladores.

 

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Ah, em tempo: o livro Sob o signo de Saturno, com este título involuntariamente enganador, é chamado assim por causa de um ensaio (que chega a ser comovente) sobre Walter Benjamin... A razão por que o planeta entra nisso poderá ser melhor conhecida para quem decidir conhecer o volume.

 

 

 

 

outubro, 2009