"Aqueles que vivem — no mundo real — querem ficção/fantasia em

suas vidas. E os que são ficção querem que suas vidas sejam reais".

De A Rosa Púrpura do Cairo — Woody Alen

 

Ir à Índia e não visitar o Taj Mahal é como não ter ido à Índia, costuma-se dizer. Eu acrescentaria que ir à Índia e não ter ido a uma sessão de cinema é como comer comida indiana sem pimenta, achando que é comida indiana de verdade.

 

Bollywood é um termo híbrido — provavelmente cunhado nos anos 1980 — bastante comum e incorporado ao vocabulário local, um misto de Bombay (atual Mumbai, a meca do cinema indiano) e Hollywood. Os filmes bollywoodianos são falados em hindi e são também conhecidos por masala (mistura) movies: com mais de três horas e meia de duração, pitadas de drama, ação, romance, musical e comédia.

 

Vindos de um país que tem instigado o pensamento do ocidente nos últimos séculos, os filmes de Bollywood são uma mistura divertida de influências que vão desde a óbvia Hollywood, passando por filmes de Kung Fu, musicais americanos das épocas áureas, videoclipes  da MTV dos anos 1990 e 2000, música arábe, pop, rock e jazz. O recheio para tudo isso são os valores morais indianos.

 

Tudo de gosto bastante duvidoso, popularesco e cansativo em muitas vezes, já que de antemão pode-se adivinhar o herói, o bandido, a mocinha e o final da história — esses filmes  continuam a atrair as massas. O público diário da produção masala é de 100 milhões de pessoas em áreas urbanas da Índia ou de indianos não residentes (os que moram no exterior) em países como Inglaterra, Canadá e Estados Unidos. Egito, Malásia, Nigéria, Turquia e Russia são grandes consumidores também.

 

Para tentar explicar essa estranha fascinação pela fantasia indiana nas telas, podemos recorrer aos primórdios do cinema mundial, como ensina o professor Arlindo Machado, no prefácio do curioso livro O Primeiro Cinema: "O cinema (...) não era ainda o que chamamos de cinema. Ele reunia, na sua base de celulóide, várias modalidades de espetáculos derivadas das formas populares de cultura, como o circo, o carnaval, a pantomima, a prestidigitação, a lanterna mágica. Como tudo que pertence a cultura popular, ele formava também um outro mundo, um mundo paralelo ao da cultura oficial".

 

Engana-se porém quem acha que a Índia vive somente de Bollywood. Esse país é o maior produtor de cinema no mundo, com cerca de 800 filmes por ano, mas somente 300 são de Bollywood. Destes, 80% são um fracasso completo, de bilheteria e crítica. 

 

 

Pão e Circo

 

D. G. Phalke foi o pai do cinema indiano. Ele já imaginava um cinema autóctone, com atos dos deuses Rama e Krishna em contraponto aos filmes ocidentais, que narravam a vida de Cristo, pensamento fruto talvez de um caráter nacionalista e indianista contra os invasores britânicos. Em 1913 ele fez o primeiro filme indiano — Raja Harishchandra — e em 1931, lançou-se o primeiro filme sonoro — Alam Ara - de Ardeshir Irani,  que já trazia 12 canções. Como na Índia há questões linguísticas importantes a se considerar — cerca de 20 idiomas oficiais, vários dialetos — as músicas imperaram como uma língua franca, além de dar um tom nacional. Mais do que uma mera frivolidade, foram as músicas que tornaram viável comercialmente o cinema indiano dentro de seu próprio — e culturalmente variado — território. As influências dessa fase são o teatro clássico indiano e persa, além de várias tradições orais, musicais e folclóricas.

 

Nos anos 1950, após a Independência, não se sabia muito o que estava por vir na nova nação. Os heróis dos filmes daquela época eram então mais ingênuos, explorados e humildes. O caráter religioso dos filmes ajudava a popularizar deuses pouco conhecidos da mitologia hindu. Já nos anos 1970, com toda a censura e mão de ferro de Indira Gandhi, cunhou-se o termo angry young man para os mocinhos dos filmes. O visual era mais rústico, do trabalhador que exige seus direitos. Nos anos 2000, com a globalização, o herói/galã ainda tem um pouco de cada dos seus antecessores, mas é mais sofisticado e bem cuidado visualmente. Hoje em dia não há mais contexto religioso, mas sim personagens que, às vezes, são religiosos.

 

Depois do primeiro sucesso, criou-se uma superstição — baseada em fatos — de que, sem canções, os filmes seriam um fracasso. Tais filmes foram taxados de artísticos e/ou anticomerciais. Há uma média de seis canções por obra e a trilha sonora é lançada dois meses antes do filme entrar em cartaz, para ajudar na publicidade, pois as trilhas podem render mais financeiramente que a própria bilheteria.

 

Muitas vezes, as músicas dos filmes acabam sendo incorporadas à vida real dos indianos, e.g., a música do casamento dos personagens acaba sendo utilizada numa cerimônia verdadeira.

 

A música têm também outras funções práticas nos filmes:

 

·          serve como descanso nas longas narrativas de mais de três horas;

·          ajuda a fazer a transição entre as cenas;

·          acelera a passagem do tempo, pois se utiliza do formato de videoclipes, sem muito comprometimento com o tempo real;

·          ajuda a desenvolver o estilo e as características dos personagens;

·          apresenta falas que não poderiam ser ditas ao natural pelo contexto — uma declaração de amor, um pedido de casamento, etc.;

·          as paisagens dos videoclipes (muitos deles filmados no exterior, com locações sem nenhuma conexão com a história — já foram filmados clips até no Rio de Janeiro, num enredo puramente indiano) ajudam a mostrar o mundo a uma população curiosa e que certamente não tem condições de viajar.

 

Os atores e atrizes  não cantam e sim dublam as vozes dos cantores. Vozes masculinas famosas foram as de Mohammed Rafi, Mukesh e Kishore Kumar. As vozes femininas das irmãs Lata Mangeshkar e Asha Bhosle monopolizaram os filmes por mais de 40 anos consecutivos (por isso, temos a sensação de estar ouvindo sempre a mesma cantora). Lata gravou mais de 30.000 canções em aproximadamente 20 línguas diferentes e entrou para o livro dos recordes. Fez também a voz do clássico Mother India (1957), imortalizando-se assim como a voz pura, da mocinha. Sua irmã Asha fazia, por sua vez, a moça má, sexy, vamp e a loira anglo-indiana. Hoje em dia essa divisão não tem mais sentido, pois a heroína é sexy e glamurosa, fruto de globalização e da imagem ambígua de cantoras famosas ocidentais.

 

Como já foi dito, há uma linha mais artística de filmes (principalmente em bengali) que nada tem a ver com os musicais de Bollywood, sendo Satyajit Ray seu grande mestre — não só indiano, mas universal.

 

Quando se viaja a outros estados indianos (Mumbai fica em Maharashtra) nota-se que, além da língua, o padrão dos filmes é também outro. Bem mais ao Sul de Mumbai, os heróis dos filmes são mais corpulentos (às vezes, gordos mesmo), bigodudos e com mais idade do que os jovens galãs de Bollywood. Usam também uma espécie de saia local e que faz toda a diferença na composição do personagem. As filiais não oficiais de Bollywood tem nomes tão curiosos quanto: Sandalwood, Dhallywood, Tollywood, Kollywood, estabelecidos em Karnataka, Dhaka (em Bangladesh), Kolkata (antiga Calcutá) e Chennai (antiga Madras). A indústria cinematográfica falada em telegu é a segunda maior da Índia. Muitos atores e atrizes fazem fama primeiro em seus estados e línguas maternas, para depois alcançarem o sucesso do padrão bollywoodiano.

 

Normalmente, não há cenas de sexo nos filmes de Bollywood, nem mesmo beijos, embora, neste último quesito, as coisas possam encaminhar-se para uma mudança em breve. Não é comum na vida cotidiana indiana que casais troquem carícias/beijos em público, mas em alguns restaurantes ou mesmo em cadeias de fast food de Mumbai já é possível ver jovens de classe média namorando dentro de um padrão, digamos,  mais ocidentalizado. Nos filmes, espere sempre pelas cenas em que há um quase beijo, interrompido por algum parente, por algum acontecimento brusco, ou por se tratar de um sonho. Há também as clássicas coreografias do sari (vestimenta feminina indiana) molhado, nas quais, por algum motivo óbvio — chuva, banho de cachoeira, queda na piscina — se pode ver as formas femininas mais delineadas, por baixo da roupa molhada. Todos os filmes passam por censura e o Central Board of Film Certification é o órgão encarregado.

 

 

Fazendo as malas

 

Há variados cinemas na Índia, desde salas charmosas e decadentes dos anos 50 aos modernos multiplex. Há casos em que há preços diferentes para os assentos, sendo que normalmente as primeiras fileiras são mais baratas e os balcões os mais caros. Filmes considerados de interesse público e/ou educativos têm isenção de impostos e, consequentemente, ingressos mais baratos.

 

Exceto em casos de estrangeiros, famílias e/ou casais, homens e mulheres indianos se sentam em áreas separadas. O som é alto para os padrões ocidentais e alguns espectadores fazem verdadeiros banquetes dentro das salas (há, inclusiv,e garçons  que trazem seu pedido mesmo após o início do filme). Se antes do filme começar, aparecer a bandeira nacional na tela, não hesite: pare de comer, fique em pé e brade  jaya hai - estão entoando o hino nacional e, nesse momento, é falta de educação não fazer o que fazem os indianos.

 

Na maioria das salas é proibido entrar com mochilas e há detector de metais. Algumas poucas contam com o serviço de guarda-volumes, então é melhor deixar sua mochila no hotel.

 

Os filmes não têm legendas em inglês, mas você conseguirá entender o que se passa. O enredo é óbvio e fala-se também uma espécie de hinglish: muitas frases em inglês no contexto hindi.

 

Observe as reações da platéia, relaxe e divirta-se! Lembre-se sempre de que há um intervalo, durante o qual você pode fugir tranquilamente, sem ter de dar satisfações a ninguém. E seguir tranqüilo sua viagem, com comida indiana com pimenta — ou sem, se você tiver muita sorte.

 

 

Nota: Alguns dos dados mencionados no texto foram obtidos na conferência sobre Bollywood que a indiana Pavitra Sundar proferiu na Cinemateca Brasileira de São Paulo em 2008.

 

 

 

 

março, 2009