O Divino Maravilhoso
(uma carta acerca do agradável desespero)
Querida Anatole,
Me ajude a entender o que está acontecendo. Sinto uma tristeza que parece não ter fim. Estou tão magoado, que nem consigo raciocinar o melhor passo a dar depois de tanta decepção... Até minha respiração agora é estertor, símbolo de vontades vascas. Ando assim há dois dias e três noites, e escrevo esta carta porque preciso desabafar todo este arfar rouco, só digno dos moribundos, que hoje se apoderou de mim, falar de mim com alguém, senão irei explodir e virar pó... A rua está cheia de gente, você vê?, cheia de faces suadas, sangue nas mãos, nos pulsos escorrendo, o sangue duro da luta, coagulado mas quente, cheia de gente ferida, gente com garra, pobre e imunda, mundo dos grandes, aquela luta de sempre... e eu aqui, diluído em minha total fraqueza de ânimo, vendo um exemplar fodido de uma nouvelle vague francesa, um Truffaut sem nome. Você bem sabe que o Free Cinema inglês nunca me encantou. Foi o Gaspar, lembra?, ele sim é amigo. Me emprestou ontem o longa. Esteve aqui e fez chá para mim, perguntou o que eu tinha, se estava precisando de alguma coisa, sabe, coisas de amigo de verdade. Cadê aquela tua amiga de verdade, que sempre fumava em roda com você quando Marx era o tom do crepúsculo? Outro dia fiquei sabendo que a Marta morreu na barricada lá na universidade. Naquele dia, por sorte ou sei lá, entrei pelos fundos da faculdade e não vi nada depois que invadiram a biblioteca, e aquela fumaça marrom sufocou todo mundo. Depois daquela agonia, o Fred chegou de viagem e foi lá na casa do meu irmão conversar comigo, ou melhor, foi brigar comigo e saber de mim o que eu queria. Eu disse que não era preciso mais um na luta, que o país inteiro já dava conta da guerra e que não era eu quem iria fazer falta. Ele dormiu lá e me disse que tinha terminado com a Marta naquele mesmo dia, que final triste pra um amor que parecia não ter final, não é?, mas que não teve como terminar antes, nem na quinta e nem na sexta, porque sexta era o aniversário de casamento dos pais dela, e ele não tinha como terminar. Me apareceu com ainda muito mais pesar o olhar sempre pesado dele, lembra?, do olhar pesado do Fred?, sempre carregado de tristeza e sempre mortiço. Ele sim era um nouvellevaguista de carteirinha, fodido como o movimento todo. Eu disse que ele sabia o que estava fazendo, que podia amenizar a tristeza dela e ser mais homem, dizer na cara que o amor havia esvaído, que o amor é coisa que acaba, assim, vai ao vento e se desfaz, sabe... dizer na cara dela, da coitada da Marta, lembra da tatuagem dela?, que ela fez com um mês de namoro?, com o nome dele nas ancas graúdas?, mulher bonita por dentro e por fora era a Marta..., que o amor é uma merda e todo mundo sai fodido depois, disse que não concordava com ele, manter uma mentira com ela, assim, a fazerela sofrer sem merecer, porque ela estava sendo sincera com ele, nunca trocou um beijo por uma arma feita em garagem ou bandeira qualquer. A Marta que sempre dizia "je t’aime, je t’aime", mulher boa demais, olhar de menina, não merecia, não!, não merecia nada disso. Tudo bem até aí, Tole... Marquei um encontro com o Gaspar na segunda, um outro na terça e combinamos que ele passaria na minha casa de noite antes de ir se encontrar com a Marie. Era uma mulher formosa, corpulenta, mentora de frases polidas e uma esquerdista de primeira linha. Gaspar me disse que Marie foi a causa da dor da Marta. É isso, Fred e Marie, aquela coisa que sempre acontece. Eu tinha comprado até um bolo e um vinho pra festejar de noite as primeiras vitórias da gente na avenida. Ele chegou um pouco tarde, o Fred, porque tinha tomado café na casa do Antônio e depois do festejo me disse que ia logo sair com a Marie porque queria voltar logo para casa, que iria só "tapear", sabe... coisas que sempre acontecem, e que depois ia cedo para casa porque o mundo estava fervendo, e não bastava mais o western spaghetti e toda aquela nóia e medo do 13 de dezembro. O Fred sempre foi assim, lembra?, dos planos do Fred?, ele nunca chegava ao fim em nada, era um merda, mas eu gostava dele, andava pelos cantos chorando sonhos que nunca davam certo. Eu então pedi a ele que levasse um livro lá na biblioteca, porque no dia entrei pelos fundos para chegar pela biblioteca. Queria devolver os livros do Marx que tinha lido no fim de semana, mas aquela fumaça toda, sabe, não dava, não dava, não deu. Acontece que no dia seguinte, Tole, eu liguei para o Gaspar e ele atendeu chorando, voz trôpega e ardida. Saí de casa em direção a casa da Marie, porque o Fred estava morto, Tole, o Fred, lembra?, aquele otário de merda, lutando por essas causas sem causa nenhuma, lutando pelo povo, era a desculpa dele, lembra?, o Fred agora não era mais nada e não tinha piedade da gente. O Fred e a Marta, os dois, lembro das tardes de domingo, os dois no rio, o amor?, agora mortos, sem vida, ausências encravadas na terra, terra cheia de molho agora, aquele velho divino maravilhoso, montículos no meio do mundo de argila e barro mesmo. Os dois, Tole, por nada, idiotas!, por nada tudo isso. Essa fé desgraçada em acreditar no que não tem sentido! Merda! Merda! Merda! Idiotas! Como podem nos deixar assim?! Para a minha surpresa, Tole, sabe... eu vi o carro da Marta na porta da casa do Fred. Os pais da Marta também foram chorar, porque ele era um cara bom, merda! Essa fé cega e desgraçada em nada, povinho sem força que se engaja por nada, pensando que vão mudar o mundo, sem querer acreditar que todo mundo depois pega no sono, e agora os dois, pensei, tinham pegado no sono... sei lá... Uma desgraça, Tole, todinha, tudo. Os outros não viam problema algum. Tudo provocantemente ambíguo, tipo filme do Kubrick, todos ovacionando o guerreiro e o féretro descendo no abisso e na escuridão do momento, nadas encaixotados, nadas, Tole, nadas... Aqueles movimentos basilares que os coveiros fazem quando estão quase no fim, quase lá, hora de cobrir o corpo com a terra e esquecer-se de tudo, de que existimos um dia, hora de fechar os olhos e continuar a ilusão, de continuar vivendo sem liberdade. Mas se arrependimento matasse, não é mesmo Tole, ninguém tinha feito essa loucura, participado de tanto, com tanto fervor... porque para minha surpresa, Tole, quando eu desci a Ruas das Marquises, sustos e perplexidades ainda em mim, vi gente aos gritos, mães aos gritos, três bêbados, muita correria e quando fui abrir a porta para a Marie, Gaspar me disse para não falar alto com os militantes, que era que eu queria?, que era que ele queria?, e que eu fosse embora quando desse porque depois ele conversava comigo. Anatole, eu não tive nem palavras, só disse a ele que nunca mais me procurasse, que eu não queria mais saber de tudo isso, que eu não queria presenciar a morte de mais nenhuma merda de amigo, que todos formavam um bando de trouxas lutando sem armas contra um mal sem fim, sem pé nem cabeça, que a morte era o destino de cada um e que eu não queria ser o próximo da lista. Foi quando uma granada estourou bem do meu lado, Tole, um fogo amigo explodindo do meu lado. Minha pressão baixou na hora, a porta do carro abriu e eu caí no chão. Marie me arrastou até o outro lado da avenida, me deu um pouco d’água e disse "je t’aime, je t’aime", os seios rotundos caindo sobre mim... Me levantei chorando, quase surdo, sem sentir minha voz, devolvi um olhar desesperadamente agradável, perguntei o que estava acontecendo... a Marie disse então que não ia falar nada, que só o tempo poderia falar. Desceu as escadas que davam para a estação do metrô quase me arrastando, fiquei sentado no chão, chorando sem saber, vítima de tudo aquilo que um dia não quis e pensando que se eu começasse a entender o meu papel em tudo aquilo, no volante, naquela hora, naquela avenida fodida, podia acontecer um acidente ainda mais grave comigo. A Marie estava sendo boa comigo, Tole, e sempre dizia "je t’aime, je t’aime". Eu sem nada entender, não ouvia a palavra que saia daquela boca que era do Fred. Pedi a ela que me explicasse. Um zumbido no ouvido. Ela disse que não e eu sem ouvir nada. Os portões lá em cima sendo arrombados, o mundo todo morrendo, acabando, e a Marie se esforçando pra me dizer que ainda havia uma esperança, que ainda havia uma possibilidade, que nem tudo estava terminado, que a flor poderia vingar e o jardim ser mais belo, que o amor vencia tudo e nada podia contra ele, esse ser tão imenso, tão imenso... Marie só fazia chorar e eu chorava sem saber das explosões que se aproximavam, das gritarias cada vez mais próximas. Foi quando eu quis dizer que o que ela falasse eu iria confirmar, que eu iria aceitar, que ela mais do que ninguém sabia o que eu queria, que eu a havia procurado, que ela não se preocupasse, que do mesmo jeito que eu cheguei eu podia sair, mas que estava nascendo um sentimento muito forte aqui no meu peito, uma dor boa de quem sente o calor da lava de um vulcão tocando a pele, que não podia ser falso com ela e esconder o jogo, porque eu sentia algo por ela agora, apesar de tudo e de todos. Tole, uma bomba explodiu. Eu não ouvi nada. Eu nada ouvia. Aquela fumaça marrom, sabe, vinda como uma avalanche, e a mão da Marie segurando o meu rosto, a Marie dizendo "je t’aime, je t’aime", e a mão dela escorregando sem força sobre meu peito, todo o corpo dela sobre meu corpo, esgotada, sem força alguma, aquela fumaça marrom, sabe, o amor que eu não consegui dizer, a merda do amor que eu não consegui ouvir, Tole... o amor, Anatole! O amor...
(imagens ©irmakak cadogan / dorling kindersley)