Só as cidades grandes me dão prazer. Nelas o trânsito de automóveis e caminhões é intenso e posso escolher o lugar mais agradável para minha atividade preferida. Tentei em cidades menores e foi em vão. Numa delas, sem que eu percebesse e, certamente, por motivos inconscientes, fiz três tentativas com o mesmo chofer. Nunca parei para pensar se foi por causa dele, do seu carro, a coincidência dos locais escolhidos por mim e por ele, ou se houve algum detalhe crítico nesse conjunto que não percebi. Sei apenas que, na terceira vez, ele freou o carro cantando pneu adoidado e entendeu que eu havia feito de propósito. Em seguida, reconheceu-me das duas idênticas situações anteriores, desceu do carro puto da vida e me cobriu de porradas. Não reclamei nem fui socorrido por ninguém porque para esta atividade escolho lugares desertos. Quero ter certeza do meu sucesso e ainda sair como vítima. Geralmente consigo. Nessa vez apanhei calado, saí da cidade e, quando voltei pra casa e me perguntaram o que aconteceu comigo para estar tão quebrado, informei ter sido assaltado. É isso que sou e é este meu nome: um pedestre.

 

Meu prazer é ficar em avenidas movimentadas de carro, com pouca gente andando a pé e aguardar o momento e o chofer certos. Pode ser um homem ou mulher, não importa. Há um momento e uma determinada distância em que entro na frente do veículo e aguardo. Se o chofer tem a mesma sorte que eu, ele freia o carro bem em cima de mim. É nessa hora que sinto a alegria de estar vivo. É uma emoção indescritível essa do perigo corrido e do prazer que começa na ponta dos pés e percorre meu corpo inteiro. Quase desmaio. Não gosto que me encostem com os pára-choques; nem de leve. Tudo tem que ocorrer como um ritual sagrado e terminar com a freada na distância certa, como se fosse um abraço afetivo entre mim, o caminhão e o chofer. É um exercício de precisão que envolve tempo, distância, velocidade e mais uma montanha de cálculos que faço para pular na frente dele e mais o timing que ele precisa para frear.  Não imaginem que é tarefa fácil. Requer experiência e coragem para ser corajoso, de tal forma que ocorra a parada do carro no lugar certo, sem me atingir. Não posso correr o risco de ser traído pelo meu instinto de sobrevivência e, no último segundo, correr ou sair da linha de acerto dos pára-choques. Quando tudo ocorre com essa precisão, sinto um prazer imenso e saio dali com a certeza de que fiz uma obra-prima. Nesses momentos, sinto-me um artista definitivo. Sei que é difícil para o leitor comum entender do que falo. Para compreender–me é preciso nos lembrarmos de que o velho bruxo vienense nos assegurou que a satisfação não é sinônimo de orgasmo. Sei disso porque li um texto dele sobre essa diferença. Compreendo com precisão o que ele quis dizer, por isso asseguro a todos que ele estava certo. Sinto-me sua feliz figura de livro.

 

Não vivo por aí me vangloriando da forma como me satisfaço. Acho que ninguém relata o que ocorre entre dois seres humanos em determinadas horas. Mais motivos tenho eu para não contar meus feitos para um público que compreende as vantagens de um prazer diferente. Se não for dessa forma, a minha vida não tem graça. Quando sinto falta fisiológica da emoção que isso me dá, recomeço minha procura pelo lugar, momento, chofer e o carro certos; aí sinto-me vivo. Fora dessas ocasiões minha vida é como a de qualquer pessoa, a monotonia de uma linha reta. Gosto dos extra-sístoles da vida. Aprendi as vantagens delas quando ouvi o relato de um assassino e a sua emoção de ter matado alguém. Ele ficou preso nove anos e me contou que, desde o momento em que matou o cara até a sua saída da prisão, essa foi uma época paradoxal da vida dele porque se sentia feliz, e infeliz porque estava preso. Falou-me, ainda, que, apesar de preso, a cadeia tem suas vantagens. Depois, quando saiu da prisão, ele achou tudo monótono outra vez. Eu entendi o cara.

 

Além deste relato confidencial, nunca contei a ninguém o que se passa comigo. Não quero saber os motivos que me fizeram chegar a este lugar psíquico; atrapalharia minha satisfação e demoraria muito para eu descobrir e colocar outra coisa tão prazerosa no lugar. O inconsciente tem artimanhas que nos deixam em compasso de espera. Sinto que ele é um conjunto, como se fosse uma orquestra, e há sempre um momento exato para cada instrumento interno entrar no concerto da vida. Se se perde o sinal do maestro que temos dentro de nós, perder-se parte do prazer que a vida oferece e aí é preciso ficar novamente em compasso de espera. Às vezes demora muito. Se o sujeito tem uma capacidade enorme de fantasiar, é como se ele fosse um músico capaz de tocar vários instrumentos, aí se tem mais chance de viver melhor. Cordas, sopro, metais e suas variáveis nos garantem participação a todo momento. Sinto-me pobre na minha atividade de transeunte. É como se eu fosse músico de um instrumento só e que participo pouco desta sinfonia que é a vida; por isso, não perco a entrada de meu único instrumento. No dia certo, procuro meu lugar na orquestra da vida, num lugar que meu maestro determina com antecedência, e, ao sinal dele, pulo na frente do carro. Este maestro interno é meu amigo, me compreende e sabe o que sinto.

 

Houve algumas ocasiões em que tive orgasmo, com ejaculação e tudo mais. Não foram muitas porque me controlo. Acho isso de mau-gosto. Numa ocasião, o melhor chofer que já tive ficou apavorado. Todo o acontecimento lhe pareceu tão verossímil a um grave acidente potencial que, me vendo com as calças molhadas, ele julgou que eu tivesse feito pipi de medo. Como explicar e como alguém compreender que meu desejo maior tinha sido realizado? Se ele soubesse, me cobriria de pancadas como fez aquele daquela pequena cidade.

 

O leitor pode imaginar que posso calcular mal a distância, a capacidade do freio, a habilidade do chofer e seu reflexo; além disso, nem todos os carros têm ABS, your know, e posso me dar mal. Pois o imaginado já aconteceu. E é por isso que nessa altura do ano só consegui dar quatro. No início deste ano calculei mal um momento e não percebi que o idiota do chofer estava com a namorada e estava acontecendo alguma mutreta entre eles. Ele se distraiu exatamente na hora que entrei na frente do carro e não parou, nem freou. Jogou-me longe no meio do passeio com a tíbia e o antebraço quebrados. O filho da mãe ficou tão apavorado que chorava junto com a piranha. Levaram-me para o pronto-socorro, fiquei setenta e cinco dias engessado, muleta, parentes vieram me atrapalhar ainda mais a vida. Não perdi o emprego porque sou dono do meu escritório, o negócio todo foi lá embaixo. Custei a administrar as coisas pelo telefone durante os primeiros trinta dias. Tive que interromper meu prazer nesse período, é claro.

 

Se o leitor acha estranho meu modo de ser, deixo claro: não sou burro. Faço tudo isso por prazer e nunca comentei sobre essas atividades com ninguém, além do meu intocável maestro interno porque sei que ninguém me compreenderia. Deixo estas pequenas linhas registradas para que, no caso de ocorrer uma fatalidade comigo, o mundo compreenda  o que eu buscava e exima de culpa o último chofer de minha vida.

 

 

 
 
(imagem ©clarque)
 
 
 
 
 
Carlos Perktold (Belo Horizonte/MG). Graduado em Direito e Psicologia pela PUC-Minas. Especialista em História da Cultura Ocidental e da Arte pela FAFICH/UFMG. Psicanalista e crítico de artes. Integrante da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA) e do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (IHGMG).  Escreve em vários jornais, revistas e sites. Publicou Ensaios de pintura e de psicanálise (Belo Horizonte: Editora Internacional, 2003),  Caixa de ferramentas (Crônicas e contos. Belo Horizonte: Editora Internacional, 2005) e A cultura da confiança — do escambo à informática — a hi$tória do crédito no Bra$il (Belo Horizonte: Editora Arte e Cultura, 2008).