O FANTÁSTICO MUNDO DAS COISAS

 

 

1. A Colher

 

 

Colher é um apetrecho TALHÉRICO muito esquisito desde criança e, portanto, muito perturbado pelos coleguinhas na ESCOLA. Com a forma de um GARFO DE LUVA levemente ACONCHEADO, a colher é um ser que cresce para jamais sair do SUBALTERNO. Quando adolescente, serve para fazer todo o trabalho duro; as mais PARRUDAS designadas para SERVIR os pratos e as mais MIRRADINHAS ficam com a tarefa de CAVOCAR sobremesas e sopas. Garfos e facas, que ficam sempre com o mais NOBRE da refeição, deleitam-se com a situação e CAGAM NA CABEÇA da pobre colher.

 

Mas é no UNDERGROUND que a colher ESMIRILHA todo seu potencial. Já adulta e INVARIAVELMENTE na prisão, desde que BEM LAPIDADA, uma colher pode servir de arma MORTAL. Nas mãos de dentistas CHARLATÕES, que não tem VERBA para adquirir aquele espelhinho altamente tecnológico para ver os dentes lá do FUNDÃO, a colher pode virar um excelente COMPARSA em qualquer tipo de FRAUDE.

 

Como regra FUNDAMENTAL, uma COLHER somente teme e respeita o profissional do ILUSIONISMO, que tem essa mania irritante de DECAPITAR, AMASSOCAR e MUTILAR o pequeno utensílio com seus PASSES DE MÁGICA. Isto transforma a categoria no único INIMIGO NATURAL da colher que, se não for esperta, já está MOLDADA na forma de um CARRO do URI GELLER a essa altura do campeonato.

 

 

 

2. O Polvo

 

 

O polvo teve problemas na infância: ia mal no colégio.

 

Não era nem que fosse burro, o BICHORRO: tiravam ele afu, as outras crianças. Encrencavam, azucrinavam mesmo a MOLÚSQUICA vida do CEFALÓPODE. Bolinha de papel na sala-de-aula, carrinho no jogo-de-futebol (mesmo quando ele era o juiz) rasteira e cama-de-gato no recreio. Faziam troça PESADA da vestimenta do polvo, e a mãe do polvo, pra complicar ainda mais a vida do polvo, mandava de lanche sanduíche de bolacha Maria com margarina pro polvo.

 

E a rapaziada se FOLGAVA no polvo.

 

Ele, pubre, nem chorar CHURIA: soltava tinta nos cantinhos e espedaçava ao alho-e-óleo, os tentáculos, no fogo. Rapaz, isso fica uma DILÍÇA de comer na praia, eu dizia. O polvo se ESCANDALIZAVA. Ê povinho fresco, o OCTOPUSSO. E também de hábitos pra lá de BENTÔNICOS. Te lembra daquela vez que a gente (e quando eu digo "a gente", leia-se "eu") nem precisou coçar os bolsos pra mascar perto de VINTE ANÉIS DE LULA à milnesa ouvindo as ondas, o rosto ardendo de sal y sol y ARENA, um dia de semana, em Santa Catarina? Ficou todo bravo, o polvo! ZURROU-ME na orelha tal qual CABRITA.

 

No meu resguardo de sempre, disse-lhum "bom dia, COMENDADOR" em tom respeitoso. Houve um grande perdão. Depois, durante algum tempo, não houve mais nada. Então a gente (e quando eu digo "a gente", leia-se "eu") ouviu um CRÉQUE medonho de CRÂNEO de polvo ESTALANDO na paulada, mas isso foi só na MENTE que no QUENTE não surtiu efeito: ainda não tou TELECINÉTICO.

 

Me olhou, o polvo, SINCRÔNICO, como que respondendo ao som E/OU pesar do impacto na CUCA. Pensei "merda, pensei alto demais". Mas nein: abriu-me o CÓRNEO bico em MOTEJANTES gargalhadas, o SAFARDANA, enquanto de mim lançou-se em MIRA de furtar-me um AMPLEXO (mouco).

 

Cedi aos apelos do PANDILHA pensando exclusivamente na saúde de Olívia, a URSA.

 

Era CARAMÊLO, Olívia, uma cor-de-caramelo escuro, um acobreado-quase-café, quase-chocolate. Cheirava à CINAMOMO no inverno e CANELA no verão. Apesar de URSA, era do verão, Olívia, no que DIVERGIA, por completo, do BISBÓRRIA do polvo. Com ele não tinha essa: era um cara sofisticado, gostava do frio e de usar chapéus e grandes CASACOS, queria que houvesse uma MALHA FERROVIÁRIA ativa no Brasil para alimentar-se de lagosta enquanto aprecia a paisagem RUPESTRE e mais clubes de jazz na sua cidade para degustar Cohibas, Montecristos e Quai D'Orsays a qualquer hora da noite.

 

Sofria de FEBRE dos ANOS TRINTA, o polvo. Talvez fosse MALEITA, vai saber. Não cheguei a saber porque escondeu as respostas a todas as perguntas numa MUCUTA, o polvo. MUCUTA, manja? Hmmm. Como é que eu vou te explicar? É uma espécie de PICUÁ. Sabe o que é PICUÁ? Hmmmm.

 

Quase como uma CAPANGA.

 

Isso.

 

©marg 

 

EGOTRIPE

 

 

Eu tava com uma puta saudade de mim mesmo, aí na semana passada resolvi dar uma passada lá em casa e me fazer uma visitinha. Quando me vi quase não acreditei que era mesmo eu. Foi complicado me abraçar. Os vizinhos ficaram olhando. Ouvi comentários sobre BOLETA e FUMINHO DO CAPETA mas fiz de conta que não era comigo. Conversamos por algumas horas, tomamos uma caixa de ceva, fumamos uns cigarrinhos amistosos e outros FAVOLITOS. Nos despedimos perto da meia-noite. Semana que vem eu vou lá de novo. Eu me prometi uma foto de CABELO COMPRIDO, algo que até poucos dias atrás eu jurava que não existia. Isso pode ser divertido.

 

 

 

 

EU TENHO MEDO DE MARTE

 

 

Esses dias me disseram que eu vou morrer em uma terça-feira, o que faz bastante sentido. Terça é o dia de MARTE, que é o Deus da Guerra. Ainda que carregue os genes da barbárie do meu povo, não sou, por definição, FORJADO no calor do combate. Dessa forma, perante o EMBATE FÍSICO, me ACOVARDO. Além do mais, marte e morte estão muito mais perto do que a gente supõe, e todo mundo sabe que a morte é ESPANHOLA.

 

Desde que descobri tudo isso, não vivo mais nas terças-feiras. Vou dormir bem tarde na segunda e só faço isso no meu pátio, sem camisa, deitado de costas no FRIO DA LAGE e DA MADRUGA. Com sorte acordo sem voz, ligo para a EMPRESA e me digo incapaz de sair da cama. Funciona sempre.

 

Nas terças não saio de casa: passo o dia assistindo aos programas da tevê aberta e da tevê a cabo — devidamente intercalados. Alimento-me muito pouco com medo de intoxicação, indigestão ou até ENGASGO, ainda mais que ninguém sabe HEIMLICH lá em casa. Aliás, na terça-feira não fica NINGUÉM lá em casa. Mando todo mundo embora e fico batendo punheta de cabeça pra baixo pendurado na escada pelas pernas, me olhando no espelho da sala. Precisa de muita técnica pra não acertar o fio de VIDA na CARA ou, pior ainda, fraquejar na PERNOCA e mergulhar de CABEÇA no produto que goteja feliz e grosso no PISO.

 

Chega a noite de terça e eu durmo feliz por ter sobrevivido a ela mais uma vez, ainda que ninguém me veja, me ouça ou me saiba ao longo do dia. Ontem me ligou uma mulher da Veja, e eu nem lembro o que ela queria.

 

 

 

 

PROSOPOPÉIA ESTIVAL

 

 

Aquilo que eu considerara loucura no mais-que-perfeito passado em que nos conhecemos empenhou-se, de algum modo, em fazer sentido ao longo dos anos e, depois de algum tempo, amornou-se numa constância tão confortável que passou a ser também minha loucura, de modo que já não me parecia nada estranho que num dia escaldante de semana em pleno janeiro estivéssemos descalços e em trajes de banho, mascando, aos bocados, saborosas porções de crustáceos decapitados y frigidos à moda dos mais faustosos balneários da costa, sentados no meio de um pasto seco de tanto sol distante um sexto de légua da Belina preta que

piscava, em toda sua glória, a maior parte do seu conjunto luminoso, em vias de alertar os demais companheiros de estrada sobre a sua incapacidade de seguir viagem.

 

Era sempre no verão que Luísa vinha nos visitar, mas dessa vez — a primeira em dezoito anos —, resolvemos, eu e Olívia, irmos nós, afinal de contas, a Belina preta vinha nos olhando de lastimoso revesgueio desde maio, quando tomamos táxi e avião, nem dissemos tchau e ficamos uma semana na Serra esculpindo bezoares como quem come carneiros no café da manhã — e de fato, comíamos carneiros no café da manhã: leite-e-queijos de carneiro, geléia de carneiro, pão-de-lã, tudo crespinho, sedoso e morno como o bom carneiro sabe ser — enquanto em casa, absorta em pensamentos maus e coberta de orvalho, a Belina lutava para manter aceso o dínamo que, parado, esfriava pouco a pouco seu coração-de-lata.

 

Nesse mesmo verão em que fomos visitar nossa filha, uma ursa parda y peluda pulou na piscina do quintal de casa — Luísa não gostava de chamá-los pátios — e ficou lá, semicerrando as vistas enquanto apreciava o horizonte, bracinho esquerdo apoiado na borda, um robusto botão de gardênia adornando uma das orelhas e muitos rubros ramos de fotínias cravados às unhas pelos talos.

 

Nós fomos à praia.

 

À sombra, os lábios lambidos de mar e manteiga-de-cacau e cobertas de sardas e de areia, Luísa e Olívia liam, uma para a outra, notícias em velhos jornais sobre homens que suaram toda a água do corpo, ou que beberam toda a água do mundo, e riam ruidosamente quando encontravam qualquer coisa sobre as prisões de gelo e as formidáveis algazarras que os internos promoviam sempre que a primavera ia chegando às suas últimas quinzenas.

 

Esse verão foi sete horas mais curto.

 

Mesmo assim afundamos gôndolas, mordiscamos vôngoles e devoramos polvos crocantes como rubicundos gringos. Cozidos do sol, acalmamos as peles em rios de calamina e cânfora. Alimentamos os quatis com caramelos de framboesa, iscas de peixe e batata-frita, além de algumas outras variedades de piriris que, dizem, casavam perfeitamente com os frisantes de maior prestígio da temporada.

 

No último dia presenteei Luísa com uma canga, mas ela, completamente tomada pela raiva, mordeu-me um ombro e cavou um buraco bem fundo na areia para me enterrar.

 

Luísa nasceu tão Luís que até chamamos de Afonso pra não confundir.

 

Mas mesmo assim eu confundo.

 

Droga.

 

 

 

 

SEMPRE AO NORTE

 

 

Senhores de todas as minhas dores dêem-me teimosia para suportar todas as pílulas de sossego, as fatias de caju em brasa, a cachaça, as chinesas, as princesas dos meus olhos, dois por dia, um por vez. Coxas, joelhos, canelas: duas minhas, duas delas. Todas rijas, muito belas. Minhas costas tão pesadas não agüentam mais minhas asas. Não preciso mais voar. Lembro do teu nome por acidente, trago junto à minha história como a faca presa aos dentes, nadando à noite no denso mar. Dormir para sonhar, sorrir pra não chorar: clichês são distração de fim-de-semana, batatas fritas e outros tabus. Até logo, cangurus do inferno. Vou-me embora para casa e vocês que se fodam aí na Austrália.

 

Cinco anos, talvez mais. Na mesma agenda velha, tantos nomes que eu deixei pra trás. Não tem mais capa. A folha de rosto pede a Deus que conceda serenidade para aceitar as coisas que não se pode mudar, coragem para mudar as que podem ser mudadas e sabedoria para reconhecer a diferença. Cinco anos na minha cara, talvez mais. Eu só fui perceber o que estava escrito depois que esse sol gordo e quente escapou por trás das nuvens.

 

Veteranos, uni-vos. Dai-vos as mãos e vades para o Hades, para o raio que os parta e para a puta que os pariu. Sumam-nos daqui vocês, vis funcionários, perdulários e demais analgésicos comunitários. Quem de vós é capaz de demitir? De permitir que isso aconteça com tantas Tanyas e outras mães de família sem ipsilones e meias de nylon? Cheiros salgados nos teus casacos não vão ser facilmente explicados: lavai. Lavai os teus pecados, casai com a tua única amiga e acreditai em tudo, em tudo que ela te diz. Corra para o campo, escolha o litoral como segunda opção. Fuja-te, afasta-te de tudo que te causa a visita da dor.

 

Oito minutos de noite na tua filmadora, não me diz quem está contigo senão não sei mais quem sou. A lua tremendo nas poças da chuva, os postes de luz vermelhos, a cidade sem brilho, a cidade sem gosto. É mês de agosto, as crianças não param de morrer e o sol esquenta muito pouco, muito pouco. No topo dos prédios eles continuam a rir de nós, e você tão seguro de tudo que tem. Tudo acaba, tudo passa e nada sobra para quem não abriu uma conta no banco. Sua pouca fé, seu pó, café, tudo meio esparramado no chão da sala. Os tapetes mofados da chuva, cicatrizes nos braços e no tornozelo. Não dormes mais com o meu zelo. Não, não é uma pena: um cigarro caindo da janela do teu quarto.

 

E que se façam todos os pratos de porcelana para os meus jantares da semana. E que se façam todos os gritos de silêncio, e todos os instintos de sobrevivência estejam atentos. Nossas vidas não valem um carro, um catarro, um esporro na esquina. Nossas vidas não valem uma vida. O mundo moderno é tão doente. Descartável sois vós, es tu e sou eu: não quero. Não quero mais ficar de lado, ganhar o dois na certidão, fugir das coisas em que acredito, desistir, acatar. Um dia é sempre o mesmo dia, é sempre agora e ninguém nunca está feliz. Luzes fracas, olhos duros, não sei que horas são. Apartamentos no terceiro andar ao mesmo tempo ligam seus rádios e eu ensurdeço, emudeço e desapareço. Mas não vou embora jamais.

 

 

 

 

Cardoso. Ficcionista y não-ficcionista, gongorista, jornalista, roteirista, consultor criativo, webshaman extraordinaire, webdesigner autodidata, desenhista, preparador de original, tradutor, intérprete, produtor musical, DJ, MC, demonstrador e vendedor de aparelhos de monitorização vital, pior fotógrafo do mundo, bon-vivant e modelo, André Felipe Pontes Czarnobai nasceu no dia 27 de maio de 1979, em Porto Alegre/RS. Autor de Cavernas & concubinas (São Paulo: DBA Editora, Coleção Risco:Ruído, 2005). Publicado em várias antologias e revistas. Co-fundador do CardosOnline (1998-2001). Mais informações aqui.