arquivo da pasta "constatações"

 

músculos tem memória

 

guardam envelopadas 

        lembranças

 

  (dores elásticas

           são faltas

                atrofiadas)

 

 

 

 

 

 

arrancando rótulos

 

Daquilo que somente

rabiscos

vazios poderão expressar

        (Umberto Eco

         não sabe, não...)

Traço aberto

Porta pesada

desenho inconsistente

sabor de inédito

               perdido

     por repetidas

         últimas

          vezes

 

 

 

 

 

 

borderline

 

Travesseiro

esponja salgada

a cama convida

ativa entrega

das águas

 

Em limpo copo

    mergulho

a espera

 

do bilhete azul

para trilhar

a faixa preta

 

(divisa cósmica

         entre caos e carma)

 

Amarelo óbvio

escarro de dor

 vermelha

     nem tão

       ancestral assim

 

Desusada trégua

de tendões

   entranha entubada

      por sólida

        certeza

 

 

 

 

 

 

coisa inteira

 

Em navalhadas se dissolve

 um  pedaço

              morto

 brilhante

 do corpo

 

 

resolve-se tirar as pontas

   e

  gotas douradas

 pinicam

         corpo abaixo

   

o corte vira coisa

  inteira

de tocar o chão

 

     até desenxergar

no espelho

a sépia moldura

 

um olhar comprido

faz caretas

             delicadezas cansativas

 

enrola-se

nos dedos distraídos

 

ainda procuram raízes.

 

 

 

 

 

 

desenfeitiço

 

Hei de

  tirar

     todo este 

     enfeite

que te enfeia

 

desembelezar

 

     teu cabelo

  num beijo

 de  barba

            bem

                feita 

 

          com gosto

       de bala

     de menta

 

 

 

 

 

 

da dor de doer ao escrever

 

Se é pra doer

que doa

até arrebentar

até não sobrar

músculo são

osso inteiro

história qualquer

para contar

 

Se é para destruir

que se dissipem no ar

         as letras

em poluição dolorosa

que venham

colorir as brechas

borrifar no vento

a sonora agonia

das fibras

 

Já que é dor

que seja

assim

das tripas pra fora mesmo

De arrastar

os sentidos pela calçada

 

Que se jogue

a dor

colocada ali

pra existir aqui

dilacerar

furar a carne

Até se cansar

de dor

gargalhar de dor

jurar de morte a dor

crucificar pelos

punhos

ressuscitar

voltar do pó

     em palavras.

 

 

 

 

 

 

eu comi a Ana

 

Eu comi

A Ana Cristina.

 

Só uma migalha

Uma célula, uma cadeia de carbono

Um quase nada

De Ana C. Cesar

 

Engoli sem mastigar

Não deu pra gozar

Me engasguei

 

Num engasgo

de tossir pelos olhos

Perder o fôlego

agradecer

o respirar.

 

Tenho medo de lambê-la

meter a mão

Espreitar-lhe a carne

 

Eu tão crua

Ela verde em mim

 

Mas eu comi Ana C.

só um pouquinho

Umas míseras letras

De A.C.C.

 

Não digiro

 mas

    vi

     cio.

 

 

 

[29 de outubro de 2008, 25 anos da morte de Ana Cristina Cesar. Uma das minhas homenagens à poeta carioca, que roubou quase todas as minhas ideias antes de eu nascer]

 

 

 

 

 

 

 

na semente, uma definição

 

Palavra de

        fruta madeirada

voz folheada por  tocos

e bicos de

           tez  rouca

            

  descabelada

                quase

     eunuca de

                        cores

 

busca secular

    nudez

na base escura

 

sem passos

         estanque à sina

  de ser

filha do sol

   e  amásia da lua.

 

 

 

 

 

 

perto do cais

 

Tão pequena

singela

o que há de cinza

           em ti

não se presta

a assustar

 

É mesmo longe

És mesmo fria

 bem

        ao sul

o teu olhar

 

 

 

 

 

 

por aí

 

Sinto a cidade

         correr sob os pés

Estou na tangente

é noite na ponte

eu semicirculo

       parada

por instantes alheios

às buzinas

e outras tantas coisas

        gritantes

 

A uma hora dessas

a violência me abraça

Carrego silêncio

descanso e fumaça

entre dedos

       que passam

pelo dia fiando

ruídos quadrados

projetos finados

 

A rua me conta

histórias

       de sobra

Me cobra amores baldios

          descompromissos

lembretes enfiados

entre as fibras

        de horas tensas

no descaso dos

                  tendões

 

E a dor ?

Ah, sim...

É grande

e mora bem

       por

           

    nos centros

            de mim.

 

 

 

 

 

 

texto

 

Leitura da alma

O salmo da tua tez

a palma em concha

em pernas, penugem

abertas

páginas

— líquida letra —

 

 

 

 

 

 

refeição

 

lambe a palavra

 

pelo canto

  da boca

escorre

um verbo líquido

 

o papel não absorve  mais

 a tinta

   das veias

  

saliva impaciente

 por uma página vazia

 

 

 

 

 

 

sobre todas as coisas

 

Quero escrever sobre tábuas

as tábuas de salvação

nas tábuas de carne

sobre a mesa que dança

e sobre copos  plásticos

que intimidam a cerveja

e queimam com pressa

aquela polpa macia

dos dedos

 

Quero escrever

sobre peles salgadas

com unhas contaminadas

de virilhas por fazer

e dores a espremer

 

Quero escrever

ler e riscar

o que se cutuca

cavoucar cores nas sobras

nas dobras do corpo

 

Quero escrever sobre

papéis embolados

guardanapos engordurados

Rasgar de verdade

o que sai da impressora

e vai para a lixeira

 

Quero arrancar

sorrisos dos muros

despedaçar apólices

sob os olhos das coisas

Quero escrever

sobre todas as coisas

 

Quero arrancar a porta

sapatear sobre ela

gritar da janela

esmolar pelo aroma do café

borrar o amarronzado

nas frestas das porcelanas

 

Quero riscar pelas paredes

contar  o que há

dentro do nariz

 

Quero escrever sobre o corpo nu

com beijos sem explicações

com o que der pra acrescentar

filtrar das evacuações

 

 

eu quero escarafunchar

os buracos dos dentes

criar barreiras coloridas

enfiar mãos no meio da argila

e carimbar tudo que der vontade

 

Quero escrever

com a sujeira

dos esfregões de pia

 

Quero desenumerar as mágoas

desenhar um sol

sobre cimento fresco

entortar as colunas retas

cravar uma caneta no olho

                     da rua

 

Quero vazar a tinta das canetas

ouvir as pretas vozes

dos rabiscos desconexos

 

Quero escrever

com ponta de cigarro

sobre cédulas que enrolam

para aspirar letras

                   tóxicas

e tossir palavras pontiagudas

 

Quero fazer contas

nos  lenços

encatarrados

Rabiscar sobre as etiquetas

de preços arrancados

sobre os extratos de banco

 

Quero me escrever

sobre as páginas brancas

que ainda não li.

 

 

 

 

 

 

super poderes

 

Nada controlo

   fora da minha pele

 

E eis que

de dentro de

mim

        (para fora —

    na minha pele)

vêm a furo

      

        feridas

 

       que      

       às vezes arranho

       espremo

 

Exprimo

com unhas

      poder

sobre meus espinhos.

 

 

 

 

 

 

woman sapiens sapiens

 

Eu tenho

        um absurdo

                  dentro de mim

 

Me vejo abusada

pelos meus absurdos

 

        Odeio essas invasões

e me sei

      descendente de invasores

        

                          europeus

 

Eu sou

            woman sapiens sapiens

 

              (mulher que sabe

                       e sabe)

 

                       eu?

         não sei mais nada

 

meu café

aqui e agora

é uma piada

     amarga

 e expressa

 

(— Eu tô presa)

 

 com pressa

 dentro deste absurdo

 

           vendo livros

 

estou à venda

por um punhado

          de misérias

 

           Escrevo

 

— Sou escrava da atenção.

 

Me desgorverno

            e só quero

governar o sossego

         dentro de mim

 

Me quero só

           sem

 esta respiração

de angústia

     de absurdo

         de pressa

de presa

 

— Tenho pressa de prisoneira

                

              deste olho meu

            que

    nada pede

   nada perde

 

(— que vontade

               de furá-lo).

 

 

 
 
 
 
 

 

Andréia Laimer (Porto Alegre/RS, 1980). Escritora, formada em publicidade pela PUC-RS. Já foi vocalista e compositora de banda de rock. Cursa Letras pela UFRGS. Foi ncluída na antologia Poemas no ônibus, em 2003. Premiada no Concurso Histórias de Trabalho, em 2008 e 2009, integrou as duas antologias. Publicou no jornal Folha da Tarde, de São Paulo, cidade onde fez algumas incursões. Suas predileções literárias vão de Eduardo Galeano a Manoel de Barros, passando, com muitas escalas, por Coleridge e Ana C. Traça uma aproximação artística entre a culinária e literatura. Tem textos publicados no Recanto das Letras e edita o blogue Carbona.

 

 

 

[imagem ©willian de paula | fonte "paperfont",

desenhada por ipsum planet para a revista Neo2]