adel aouki |  mil moradas e uma (detalhe da instalação) | cerâmica | foto de miguel aun, 2009

 
 
 
 


 

O poema

 

 

"Qual será o lugar da poesia nos tempos que vêm pela frente?"

— Octavio Paz

 

 

Que a poesia retrace a linha imaginária

a separar suas imagens, sons, ícones e (in)significâncias

das formas dominantes da circulação de bens

e dos ismos istmos.

Que a poesia redescubra e reexplore

seus próprios poderes de poesia.

Que não dê trégua à resistência desejável

para mudar as velocidades, as dimensões, as direções,

o culturicídio, a "indústria da consciência",

o "asneirol filológico", o "colonialismo estilístico"

para desviar as trajetórias e as esperas.

Que sem atraso nem fieri chegue junto de si mesma,

linguagem par excellence, boca do mundo,

vozes de "imensas minorias"

a surpreender e a "chocar os ovos da experiência".

 

Que a poesia seja uma gramática dos sentidos,

pluralista e única, sujeito da escritura sem sujeição.

Que seja o desfecho mágico de Alphaville,

a memória resguardada de Farenheit 451,

ou a rebeldia vivificante da Sociedade dos Poetas Mortos,

mas que mantenha a existência digna do "horror de viver"

e que seu canto universal revolucione os "despachos da hipocrisia",

desestabilize com a diferença o valor-mercadoria,

e seja "capital intelectual novo para revigorar os escassos recursos"

da sociedade crisenta,

ainda que a utopia seja a herança do escrevente público anônimo.

 

Que lese o léxico e se alimente de "esqueletos luminares",

do "fantasma do belo" e de une saison en enfer.

Que sobreponha, sem ufanismo, à perplexidade fatalista

com o delírio de Nietzsche e que seja eleidade

enquanto rastro do outro.

Que tenha "com esse único ser de que o Nada se honora"

e no seu indizível presentificado

a "certeza do acaso" e o sentido irênico

de quem se defronta na guerra do prazer

por raridades de sua sobrevivência.

 

Que a poesia construa no "interior da maturidade do mundo"

com sua "transformação racional",

e que, a pelo e virtualmente poesia, privilégio da vida,

aja contra a mutual assured destruction.

Que desperte do pesadelo mítico e arranque o homem

do "fascismo fascinante" e responda a Homi Bhabha

quando questiona o "nós que define a prerrogativa do presente".

Que preencha o espaço vazio do futuro

com "práticas e significados que não são buscados".

Que ponha em jogo — sempre —

"a natureza performativa das identidades",

as "migrações multidirecionais", os "nódulos brancos"

do "lápis impuro" em "metamorfose incessante".

 

Que não seja a rima, nem a solução, mas poesia.

Que, órfã de eu, ainda seja Orfeu do "operário das ruínas"

e contradição,

a "outra margem do tempo como oficina fecundante",

o zoom lúcido do "longínquo país" de Artaud.

Que se condene a dizer com Bosi "aqueles resíduos de paisagem,

de memória e de sonho, a metáfora do desejo,

o texto do inconsciente, a grafia do sonho, o gemido da criatura opressa, demiurga da própria impotência".

 

Que se exile "na baunilha essencial da angústia",

mas que núncaras se bananalize

no "paraíso automatizado da redundância aos rápidos roteiros"

como o "bando de artistas contemporâneos vaidosos

seguindo os elefantes do circo do modernismo com pás de neve".

 

Que a poesia ajude a tomar uma artitude:

"o máximo pela primeira vez",

mesmo que "cerimônia subterrânea" e "crítica do céu",

e que o poeta seja "um estrangeiro de si mesmo".

Que a poesia inaugure em inferências a "história de subversões,

inversões, abstrações, heresia e desvios"

e uma "homeostase provisória",

que seja uma "relação quase", diálogo da alteridade,

pois o poeta agencia a instabilidade do "provisório perpétuo",

insta o eterno que já passou.

 

Que a poesia seja pancronotopia, rastro em eco,

make it new, montagem transfiguradora,

anarquismo construtivo, pantomima de incríveis interdisciplinas,

Camus kaze,

porque "tudo especula o entrelugar da poeticidade",

porque "não há amor à vida sem desespero de viver".

 

Que seja o "olhar em abismos" e alicie com "ferraduras de talco".

Que os poemas sejam a benjaminiana tropa de shock,

Vikings wirking,

Lógica subversiva da representação de Aristóteles a Hegel,

"fugaz constelação" insurgente contra

a "entropia dos processos físicos",

paixão pelo marginal,

contato intersígnico contra o vezo humano de se ver

por "procuração televisiva",

estranhamento como surpresa amarela

e "resposta que não imobilize o ser"

para todo aquel que ante el relâmpago no dice: la vida huye,

subjetivação do caos, complexo de épico,

a provocação da "solenidade teórica da crítica".

 

Que construa seu locus em "espaço sem lugares,

tempo sem duração"

"onde o enunciado terá sempre margens povoadas

de outros enunciados, procedimento performático

em constante permutação, dissenções, dissonância em canto,

frágeis rastros de sentidos, pegadas para uma peregrinação discursiva

fazendo interface entre interior e exterior, antes e depois".

Porque, diz Deleuze, "escrever nada tem a ver com significar

mas agrimensar, cartografar,

mesmo que sejam regiões ainda por vir".

E que seja ut pictura poesis, didEYEtica, multiplicidade de técnicas,

rede, reificação, chips em software alienígena

em busca de redenção do silêncio, intersemiose,

"floresta de símbolos",

"tradição da ruptura", alegoria, "instantaneísmo plurissignificante",

infografia, paraestética, paralogia, imago mundi, autopoiese,

consiliência, quântica, strange music, "onirismo desperto",

recepção de Hans Jauss, "absurdo heróico",

"poderoso sentimento vital"

a predicar o inusitado, a centelha de cinzas — reconciliação.

 

 

 

Rastros

Hans Magnus Enzenberger – Paulo Francis – Francisco de Assis Barbosa – Juan Ramón Jiménez – Walter Benjamin – Geraldo Dalton – Olavo de Carvalho – Susan Sontag – Augusto dos Anjos – Jomard Muniz de Brito – Moacyr Scliar – Marcelo Dolabela – Julia Kristeva – Marli Scarpelli – Mallarmé – Paul Virillo – Vera Casa Nova – Althusser – Fernando Pessoa – Horácio – Eduardo de Assis Duarte – Octavio Paz – Immanuel Wallerstein - David Carrol – Canclini – Luís Alberto Brandão Santos – Jean-François Lyotard – Terry Eagleton – James Joyce – Charles Newman – Bashô – Ihab Hassan. 

 

 

Razão 

Este poema abre o livro Foolturo (disponibilizado pela Germina na seção "Books Online" — clique aqui e leia), prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 2000, de cujo certame participaram 1.300 poetas do país e teve Sebastião Nunes como presidente da comissão julgadora.

O poema é representativo de uma trajetória de luterária que se inicia em 1963, com o Grupo VIX, na cidade de Oliveira/MG, passa pelas linhas de produção e tendências das vanguardas históricas, inclui um longo e profícuo aprendizado feito em cursos de Letras, Especialização e mestrado, pelo exercício da crítica e o máximo possível de leitura de poesia em pelo menos três línguas, ao longo de uma vida.

"Empós do pós" expõe, portanto, a formação, as influências, a consciência crítica, a imprescindível revisão produtiva e as alternativas de saída da aporia de um poeta visceralmente comprometido com a linguagem, a criatividade, a dialógica, a crítica e a recepção da poesia.

O poema questiona a si mesmo no tempo e no espaço como sendo a poesia a própria razão de ser da vida. Desde sua origem oral e mítica, dos estilos de época, das revoluções verbivocovisuais, ao vislumbre de perspectivas no futuro, expõe experiências exemplares, vai de encontro aos desafios poéticos numa sociedade que repudia a poesia, em busca de impor-se exclusivamente como linguagem capaz de influir nos sentidos.

E, diante de tudo e de todos, contribuir para averbar a proposição de Vico de a poesia "imprimir sentido e paixão às coisas insensatas".

"Empós do pós" intenciona passar ao leitor que pós-tudo a poesia convive com sua origem, sua evolução, seu paideuma, seus exemplos, suas questões estéticas, poéticas e críticas, com o objetivo axial de manter-se viva e de ajudar a fazer com que os homens permaneçam humanos.

 

 

dezembro, 2009
 
 
 
 
Márcio Almeida (Oliveira/MG). Professor universitário, poeta, crítico de raridades e jornalista.
 
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