©pete
 
 
 
 
 
 
 
[em homenagem a Rodrigo de Souza Leão]
 


 

O conto

 

 

Quando você morreu, delicadamente você me matou. Hoje, as folhas que caem, o frio, o escuro da noite, a solidão, a aspereza das ruas, o degredo dos corpos nos bares, a indiferença dos que prometeram e não cumpriram, o ganido dos cães, o arrepio crispando meus pêlos, os dentes trincando e ferindo o lábio já sem sangue, a extensão do meu passo, a vertigem violenta e incessante, serão insuficientes para me conter.

 

 

 

Razão

 

 

Este conto, aqui brevemente apresentado em seu começo, surgiu como uma resposta. Imagine você amar uma pessoa e ouvi-la dizer, quase como que por acaso, que quer morrer? Sim, a morte como algo banal, dita entre copos de cerveja e nenhuma trilha sonora. Estávamos no bar e não balbuciei nenhuma palavra. A cerveja não me ajudou a engolir. Fui embora com aquilo preso. Não lhe bastava o meu amor como garantia plena? O amor como passaporte pra vida? Que raios eu estava fazendo, então? Passou uma noite, seguiu-se outra e mais outra e não voltamos a tocar no assunto. Mas eu não engolia, compreende? E no meio de minha solidão, diante do meu velho computador, surgiu a primeira frase. Eu escutava "Mariane", música póstuma da Legião, trancado no quarto. Apertei a tecla repeat e a música se repetiu como um mantra. Não pulsava nada fora dali. Estávamos eu e minha dor. Inconsoláveis. Ninguém jamais deveria dizer aquilo para a pessoa que ama. E se era isso o que meu amor desejava, eu faria. Resolvi matá-lo. Naquela primeira frase. E doeu de uma forma tão louca e intensa que meu corpo se dobrou inteiramente de encontro ao teclado. Comecei a chorar e as frases foram despencando. "Mariane" martelava minha cabeça. Quando estava no meio do conto, senti-me tão absurdamente esgotado que necessitei parar, desligar o som, escancarar as janelas e descansar. Sem forças, a vontade era de correr. Deixei o cursor piscando na tela e fugi para rua. Vaguei desesperado por uns vinte minutos até que senti a angústia se amainar. A respiração normalizava. Era madrugada e eu deixara a janela do quarto aberta.  Recomposto, li o que havia escrito antes e, lentamente, retornei àquele estado de transe. Renato voltou a cantar.  Ao lado do meu amor figuravam silenciosos os fantasmas de W. H. Auden, Caio F. e Federico Garcia Lorca. No outro dia, encontramo-nos num café. Estendi as duas folhas em sua direção. Após ler, chorou. Eu me senti vingado.

 

 

outubro, 2009
 
 
 
 

Lima Trindade (Brasília/ DF). Vive em Salvador, BA, desde 2002. É autor de Supermercado da solidão (LGE, 2005), Todo sol mais o Espírito Santo (Ateliê Editorial, 2005) e Corações blues e serpentinas (Arte Pau Brasil, 2007). Participou das antologias Todas as gerações (LGE, 2006, org. por Ronaldo Cagiano), Portal Neuromancer (LGE, 2008, org. por Nelson de Oliveira), e O melhor da festa (Nova Roma, 2009, org. Fernando Ramos). Sua literatura transita num diálogo permanente entre tradição e contemporaneidade, sendo fortemente marcada pela influência da música, quadrinhos, cinema e a literatura marginal. Ferdinando Martins, numa resenha publicada na internet em 2008, disse que "o autor é apaixonado por cidades. Seus textos deveriam ser lidos por estudantes de urbanismo. Com eles, vivemos o mundo caótico dos prédios novos e velhos, das ruas, do comércio, com um lirismo inigualável...". Já a jornalista e poeta Kátia Borges o denominou "um escritor com alma de cidade".  Mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e editor da revista eletrônica Verbo21.

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