Nunca me apaixonei por um professor. Meus professores é que se apaixonam por mim, desde a 6ª série, ano em que comecei a ter professores homens.

Nunca eram correspondidos, sequer incitados. Só que fatal.

Mesmo os professores-galãs, que poderiam escolher uma colegial para levar para um canto, nas festas caipiras, ou para um reservado, nas formaturas, e escolhiam e levavam, eu os tratava como a qualquer outro mortal.

São atenções mínimas mas inegáveis. Por exemplo, o professor de Geografia tinha um algoritmo de distribuição de pessoal nas provas. Ele não o divulgava, eu o intuí. Pois ele me deslocava do meu lugar geograficamente correto para me poupar do sol.

Professores apaixonados continuam a lhe ouvir depois que você terminou de falar. É um modo educado de dizer que têm a boca aberta e o olhar perdido. É ultrajante o quanto ficam feios fazendo isso.

Ninguém percebe. Só a pessoa que deu a resposta. É constrangedor.

Eles não estão simplesmente apaixonados. Estão enfeitiçados.

É constrangedor para eles também.

Depois que já ouviram a frase extra, sussurrada em vapor dentro de sua imaginação, um dedo invisível estala e o quartzo volta a ticar. Você senta.

Não sei o que pode causar essa situação, realmente. Mas possuo algumas teorias.

Eu falo e rio menos que as outras garotas, e pessoalmente acho que as pessoas ficam muito feias quando mostram os dentes, portanto falo e rio menos ainda.

Tenho uma coleção de formas irritantes de andar. Lentamente, estudando um passo por vez, balouçando ligeiramente os braços sem dobrá-los. Veloz, cortando o ar e os fluxos humanos, esticando as pernas além do recomendável a uma dama. Inflexível, estacando à frente de quem se recusa a se desviar de meu caminho. Curvilínea, a seqüência completa de movimentos, modelo na passarela (leve olhar apertado, de ódio, ao horizonte).

O mais importante é: quieta, e asseada, e séria; olhos vítreos, não fugidios, água-e-metal. Isto, conjugado à mania de não responder perguntas cretinas e manter a boca ligeiramente aberta enquanto (não) faço isso, me valeu o apelido de "débil mental".

As protuberâncias do meu rosto são bem destacadas. Nariz; maxilar; queixo; tenho os três. Outro dia, numa festa de casamento, um tio bêbado elogiou minhas "feições boleadas". Também me convidou para dançar (o imbecil. Se eu gostasse de incesto, há homens bem mais bonitos na família.)

 

Eu tinha uma amiga chamada Sofia; os pais dela faliram e ela teve que sair do colégio no meio do ano. Ela me dizia:

— Você tem dezesseis, mas parece quarenta.

Alguém precisava me dizer isso, não?

— Exagerada, eu dizia, não me dou nem trinta...

Meu problema maior não é a idade que tenho agora. Meu problema é que nunca tive treze anos. Nunca estive no ponto, e meus professores é que se apaixonam por mim, em vão.

Eu os canso. Acabam cultivando algum tipo de fantasia secreta. São atenções mínimas mas inegáveis. O professor de Geografia, por exemplo, com seu algoritmo. Ele procurava me poupar do sol. Logo, ele sabia a pele que eu tinha. Portanto, tinha observado; notado; se importado; e, com base em suas observações, tomado uma decisão parcial e protetora. É uma série de ações bastante comprometedora.

 
 
 
 
 

 

 

A que mais me interessa atualmente é a janela do 7o andar da repartição pública do outro lado da rua. Bate sol da tarde, o ar quebrou e há mais de uma semana está pra consertar; as funcionárias todas começaram a usar roupas sumárias, decotes profundos, nada de sutiã. Fecham os olhos com entrega, entreabrem os lábios e sorvem o ar morno que um leque, agitado, lhes dá na boca. Na segunda-feira, voltam da hora de almoço equipadas com mini-ventiladores de cinco reais, boa fortuna de algum camelô. Na terça-feira, uma delas leva um ventilador de mesa que lhe esvoaça os cabelos. A veterana passa um creme branco no rosto na frente do computador.

 

O calor só fez piorar. Nenhuma nuvem no céu. Espero ardentemente pela quarta-feira. Mas a quarta-feira é da paralisação por melhores salários (e condições de trabalho). Na quinta-feira, elas chegam, seminuas, às onze da manhã — e inesperadamente o reparo foi feito. É como assistir um filme mudo. Mandam a estagiária trepar numa cadeira. Ela cambaleia no salto agulha e mexe no termostato sem resultado (encolhe os ombros). Então, resignadas, se apinham num canto, se aconchegam, esfregam os braços uma da outra, os biquinhos duros.

Aponto para a rua. Uma eminente seguradora desova ternos e mais ternos na calçada. Todos bem-cortados. Os caras se dão soquinhos, se contam piadas, caminham pela calçada como gangstas: os negócios devem estar ótimos. Me entretenho um pouco em odiá-los. Quando estou prestes a mudar de canal, surge do meio do cinza uma garota criminosamente vestida em vinho. Um tailleur bordô que não lhe cai nada bem. Mas a culpa é dele.

O jeito de caminhar dela diz claramente que ela odeia tudo aquilo. Deve receber trezentas cantadas baratas por dia. Ela é delicada, mas enfurecida. Os caras têm que fingir que não vêem aquela fúria toda por baixo pra se aproximarem em primeiro lugar, e isso só aumenta o ódio renitente.

Ela se desgarra da multidão de ternos e vai trotando até entrar no restaurante vegetariano.

Vegetariana. Hmm. Um toque de desespero. Um nela, outro em mim.

 

 

[Escrito para uma antologia erótica ainda inédita]

 

 

 

 

(imagens ©foba|patrycja)

 

 

 

  

 

Simone Campos. (Rio de Janeiro-RJ, 1983). Jornalista, escritora, tradutora. Publicou No shopping (Rio de Janeiro: 7Letras, 2000) e A feia noite (Rio de Janeiro: 7Letras, 2006). Participou das antologias 21 contos pelo telefone (São Paulo, Editora DBA, 2002); Geração 90 — os transgressores (org. Nelson de Oliveira, São Paulo: Editora Boitempo, 2003); 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura (org. Luiz Ruffato, Rio de Janeiro: Editora Record, 2004); Entre nós (org. Luiz Ruffato, São Paulo: Editora Língua Geral, 2007). Ganhou a bolsa Petrobras de Criação Literária 2007 para escrever o terceiro livro, de contos, Amostragem complexa, que será concluído em 2008 e publicado em 2009, pela 7Letras. Escreve para o jornal O Globo e o Le Monde Diplomatique online. Edita o blogue Sibylla. Mais informações clicando aqui.
 
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