O CORTEJO DOS MORTOS

 

 

CONTEMPLAÇÃO DE UM ROSTO IMÓVEL:

UMA ELEGIA EM VISITA AO TÚMULO DE MEU AVÔ,

OSÉIAS DIAS DA SILVA, O 'SEU NENÉM'.



"
Nasci de mortos...

Agora e sempre continuaremos".

    JORGE DE LIMA


[

Sonetos gêmeos]


— Contemplar estas lousas em silêncio

como um poema ilícito... perdido;

perdido neste chão envolto em lágrimas,

olhos dispersos, olhos sem consolo...


Aqui estão as pobres coisas tristes,

reencontrando a essência e a memória

das dores engolidas pela terra.

Ó doce espelho d'alma deste mundo,


venho abreviar com os olhos os dias hirtos

de minha vida inteira e ressequida,

como se este poema fosse a face


de minha angústia, aqui, recomeçada,

quando perdi teu nome em meio às lápides...

como perdi a Paz com a tua morte;



no entanto, ali estão os diversos rostos

e, hoje, meu rosto muda-se ao rever-te,

carrego-te nas sombras e nas sobras

destes mármores, deste chão vetusto.


Hoje, a leveza de teu corpo invejo;

invejo esta tua casa de silêncios,

a tua morada eterna e verdadeira,...

invejo a ausência de teus olhos.


Venho buscar teu ser por entre as brumas,

 venho sentir teu rosto sob a terra,

acariciar teus pés por sobre as ervas...


Tudo contém as máscaras amargas

da mentira, mas, hoje, é doce o rosto

da verdade que a terra te modela.

 

 

 

 

 

 

II

UM CÂNTARO JUNTO À FONTE:

UMA ELEGIA EM VISITA AO TÚMULO DE MINHA AVÓ,

ALICE CARNEIRO DA SILVA, A 'DONA LICINHA'.



"
Do suor do teu rosto comerás o teu pão,

até que voltes à terra, porque dela foste tomado..."

 GÊNESIS – 3:19

 

 


[Totentanz]

— Na concha de retalho das palavras

teu nome se alinhou às minhas lágrimas

como se alinha

ao sonho

o que se busca,

ou como nada fica do que foi

outrora

os teus passos sobre o chão da casa...

 

As lembranças daqueles que te amaram

repousam sobre o pó que te recobres

e,

um dia,

hão de ficar sobre estas minhas memórias todas.

Sinto, todavia, a tua sombra unida à minha...

viva,
qual a raiz profunda dos instantes,

como sinto [também]

este silêncio povoar-me com a mais insidiosa saudade

e esquecimento,

como me povoou a vida... a tua ausência.


Dir-se-ia que a morte é soberana

e sem igual... mas nada nos iguala mais,

nem nos torna mais

humanos; só assim

nos recordamos mutuamente:

somos matéria mesma e propósito...

Prossigo por mim mesmo

nesta distância que nos faz tão dispersos

e sem rumo

e aguardo pelo dia em que o tempo nos abandonará.


Até então,

posso apenas dizer-te o que os meus olhos

sentem ao reencontrar-te sob o manto

de espera no qual te envolves,

 como o ocaso envolve o dia

que não se sabe findo,

mas,
em tua casa,

eles ainda não são bem-vindos.

 

 

 

 

 

 

III

OS BENS DE SANGUE, HEREDITARIEDADE

E OUTROS ATAVISMOS:

UMA ELEGIA EM BUSCA DO TÚMULO DE MEU PAI,

AMARÍLIO DE SOUZA DUQUE.



"
De nossa mente lavamos o ouro como de nossa alma um dia os erros

se lavarão na pia da penitência. E filhos netos bisnetos

tataranetos despojados dos bens mais sólidos e rutilantes portanto os mais completos

irão tomando pouco a pouco desapego de toda fortuna

e concentrando seu fervor numa riqueza só, abstrata e uma".

               CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

 

[Improviso]

— Quando soube de ti,

já eras morto;

nem nunca tive em mim

palavra tua

que não me fora dada

de outra boca;

vives em mim como os

Santos sobre as abóbadas

de ouro

nestes antigos templos,

onde o amor

é demais para tão

simples lembrança

ou mera construção

de fantasia,

mas reconheço em mim

a trajetória

secular, a herança

de honra e sangue,

traçada muito antes

desta ausência

tão certa quanto frágil

e indelével...

mesmo sem nunca ter

te visitado

os ossos,

ou
o teu rosto

nos retratos.

 

 

 

 

 

 

O CACHO PERDIDO DE TEU CORPO

VARIAÇÃO SOBRE UM TEMA DE PABLO NERUDA:

SONETO XCIII – UMA PARÁFRASE MINHA.

 

 

À minha sempre, Lucifrance Castro,

por não ter outra razão para amá-la senão amá-la.


"Así establecidas mis razones de amor te entrego esta centuria:

sonetos de madera que sólo se levantaron porque tú les diste vida".

    PABLO NERUDA

 

[Tema]

Si alguna vez tu pecho se detiene,

si algo deja de andar ardiendo por tus venas,

si tu voz en tu boca se va sin ser palabra,

si tus manos se olvidan de volar y se duermen,


Matilde, amor, deja tus labios entreabiertos

porque ese último beso debe durar conmigo,

debe quedar inmóvil para siempre en tu boca

para que así también me acompañe en mi muerte.


Me moriré besando tu loca boca fría,

abrazando el racimo perdido de tu cuerpo,

y buscando la luz de tus ojos cerrados.

 

Y así cuando la tierra reciba nuestro abrazo

iremos confundidos en una sola muerte

a vivir para siempre la eternidad de un beso.

 

 

[Sonetos gêmeos – variação em tom menor ]


Se alguma vez teu peito se detém,

se algo deixa de arder em tuas veias,

se a tua voz se esvai sem ser palavra,

se tuas mãos, no delírio, adormecem,


Amor, deixa teus lábios entreabertos,

porque este beijo durará comigo...

ficará para sempre em tua boca,

e me acompanhará também na morte.


Morrerei nesta louca boca fria,

junto ao cacho perdido de teu corpo,

buscando a luz de teus serenos olhos.

 

Assim, receba a terra o nosso abraço,

e, confundidos numa mesma morte,

viver, num beijo, a Eternidade, mas...

 

 

[Em tom maior]


...antes que esse torpor de nós se encante

busquemos, Minha Amada, a cor ausente

de nossa vida em chamas, a roubar da dor

seu território... quantas coisas puras


se farão tão longínquas e sombrias,

qual teus olhos fechados a esta luz

a eles consagrada, Alma Minha,


beija-me, antes que desabitemos

a humana parte desta terra fria,

para sermos um só entre os silêncios

do barro, dos insetos... das raízes.

 

Permita-me dizer-te: 'Eu te amo',

para que a treva que roubou teu sonho

não arranque de mim a tua essência.

 

 

[Coda]

— 'Amado Meu, há muito tempo, a terra,

ausente de cuidados, nos convoca;

Amor Meu, eu padeço de vontade

igual a erva que se sabe chão


e esparge pela terra o seu verde

dicernimento sob os pés dos homens...

a vida minha que te entrego, dê-a

de igual maneira ao vento d'outros tempos;


concede-me somente amar-te agora,

pois nada conhecemos de um instante

que não se faça em outro que nos chega.


Eu quis o teu amor mais do que tudo...

e se o tive inteiro e sem medida

é por que sempre soube ser-me tua'.

 

 

 

 

 

 

ELEGIA & ODE

ou GRANDE POLONAISE BRILHANTE

PRÉCEDÉE D' UN ANDANTE SPIANATO

IN E b MENOR PARA PIANO E CLARINETE



Para meu amigo, Cremilton Suzart, morto...

... Ao pequeno Eduardo Leão, nascido.



...e há de ser tua ciência

uma tão íntima conexão de ti mesmo e de tua existência,

que ninguém suspeitará nada. E o teu primeiro segredo

seja antes de alegria subterrânea que de soturno medo...

É preciso criar de novo... Reinventar nagôs e latinos,

e as mais severas inscrições, e quantos ensinamentos e modelos mais finos,

de tal maneira a vida nos excede e temos de enfrentá-la com poderosos recursos.

          CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

 

I

[INTRODUÇÃO]



Andante spianato


Era, talvez, a noite [e sua indizível chaga],

como a chama escondida em cada acha;


era, talvez, a dor nestes telhados mortos

a abrigar sobre si estes estranhos corpos...


Era, talvez, a ânsia de se estar a aqui

quando se desconhece o que há de vir...


Certamente não era o que nos faz sofrer,

mas esta inútil idéia do que é viver


de nada nos servirá além do assombro

de trazer a existência nossa sobre os ombros


— o véu de rubras rendas sobre os olhos puros —

e o nosso agudo olhar por entre os dias escuros.


Era tão clara a noite a alinhavar de prata

a sombra esguia que envolve a vida e se ata


ao rosto triste de alguém que volve o rosto

e simplesmente passa... mas nos fica o rosto,


como uma testemunha viva da memória:

mero esplendor da Ausência... e de sua fúria.


E sempre em nosso amor a noite irrompe mágica

como para conter a lembrança nostálgica


de um tempo onde as coisas se perdiam,... todas.

E as coisas se permitiam ser sempre outras,


Como a brisa macia que irrompe a alvorada

que outrora povoou a noite... e os seus nadas.


Era um tempo onde as coisas se perdiam — todas.

 

 

II

[INTERLÚDIO]



Allegretto affetuoso ma non troppo, quasi Andantino


Como aqueles que, em vão, trazem consigo

a foto desbotada de seus mortos,

assim, nós carregamos, sobre os ossos,

a lembrança feliz de um sonho antigo.


É assim que, em silêncio, conduzimos

um amigo ao horror dos precipícios,

para então conhecer o cruel ofício

que a terra presta aos seres vivos,

mas

quando Cremilton povoou a sua cova,

qual um machado ferindo novas achas,

era como sentir uma renova,


um sopro da existência em meio à morte:

— a certeza da dor no fim da marcha...

— a crença firme em uma outra sorte...

 

 

 

III

[POLONAISE]



Allegro con fuoco – Vivace


Acorda, Eduardo, infante, porque tudo passa...

e é preciso aceitar a vida e tudo o mais

que o tempo e a morte reduzirão à fumaça.


Acorda, Eduardo, infante, e deixa para traz

o teu início e o teu refúgio — não lamente,

no entanto, à porta da saída, a luz fugaz


que te acompanhará por toda a vida; sente

o sopro do Divino te preencher e levas,

pelos caminhos do existir, estas sementes


do porvir que trazemos ao nascer; te atrevas

contra as pequenas coisas desta vida e faz

de teus dias uma lição de luz e trevas,


para aprender que a mais pura beleza jaz

em meio às sombras da incerteza e da agonia.

Acorda, Eduardo, infante, e, vai mais e mais


preenchendo, em cor a tela nua de teus dias

com o chiaroscuro que levou Vermeer ao olhar

que se confunde à pérola e à luz esguia

 

que vai preenchendo a sala e percorrendo o ar

e revelando a face de uma mulher tão

bela quanto o mistério que sustém o seu olhar.


Acorda, Eduardo, infante, para a solidão

que, silenciosamente, invade as auroras,

levando para cada homem sua porção


de existência que, pouco a pouco, e sem demora,

há de se consumir em tempo e em esperança,

porque assim aprendemos o valor das horas


que resumem os nossos dias, pobre criança,

onde a vida começa e sempre recomeça

sendo outra vez a mesma coisa; e nesta andança


na qual tu te dedicas com fervor [mas essa

não é o maior valor da vida], levas

uma certeza: para a vida não há pressa,


e sim, vivência; entre os musgos, ou nas ervas,

ou nos frutos maduros dos pomares, nas

encantações do dia ou no fulgor das trevas,


há de saber o quão simplória é a vida e as

estradas que se fundem dentro dela, mas,

cuidado, não há nada em suas formas tão raras


[quanto simples] que não tragam boas e más

verdades, como o espelho a devolver teu rosto

antecipado pelo tempo e pelas chagas


que a vida te abrirá um dia de sol-posto

em sol-posto, porque a vida é assim:

algo que de si mesmo recomeça outro.


Acorda, Eduardo, infante, e aprendas, enfim,

e o quanto antes, a suar no corpo a alma

sofrida de tua terra e de teu sangue; sim,


deves aprender logo, porém, muita calma,

para que o exercício de tua caminhada não seja

um fardo sobre os teus ombros; calma


pequenino Eduardo, ainda é madrugada,

e antes que o longo entardecer do existir

enegreça esta vida que nasceu calada,

 

grite, Eduardo, grite para que o porvir

não te amedronte com a operação da vida,

grite pra que, no final, tu possas rir.


Ah, pequeno Eduardo, a existência é lida,

trabalho que se multiplica de passagem

em passagem de cada dia de tua vida;


de tua vida que agora me serve de imagem

para compor este poema tão contrário

ao que sinto, mas verdadeiro em sua linguagem,


em seu sentido... e, mesmo assim, desnecessário

para ti, pequenino coração tão belo,

qual o sino que não ouvirei no campanário


quando este para mim tocar como um martelo

ao fim do veredicto, à hora da amargura,

ou do delírio... e, diante deste anelo,


do mistério maior da vida, da mais pura

verdade, naquele momento revelada,

hei de sentir [em mim] a alma tão segura


quanto fria, qual o corpo onde, a alma, embriagada

outrora, povoava com seu próprio ar

e, agora, se nutre de seu próprio nada.


Acorda, Eduardo, pois já é hora de lutar;

é preciso vencer a luz agonizante

da chegada, e, enfim, tomar o teu lugar


entre os palcos do mundo, para que o instante

em que nascestes permaneça vivo e puro;

para que, com fulgor, tu sigas adiante...


Vai, meu menino, vai vencendo estrada e muro

e encontrando, em meio às coisas, o teu valor;

é assim que se extrai a luz de um dia escuro;


é assim que um sorriso surge em meio à dor...

Acorda, Eduardo, pois a vida em si se imbrica,

tal João Cabral versificou sem nenhum horror:


é uma fábrica que a si mesma se fabrica.

 

  

 

(imagens ©domi)

 

 

  

 

Silvério Duque: sou poeta, nasci em Feira de Santana, aos 31 de março do ano cristão de 1978. Sou licenciado em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Além da poesia, assumo as atividades de músico, clarinetista, já coordenei a Escola de Música da Sociedade Filarmônica Euterpe Feirense, aliás, as bases de minha formação musical advém das Filarmônicas; sou professor, crítico literário, escrevi e escrevo para vários jornais e para a revista Poesia & Afins e autor de dois livros de poesia, O crânio dos peixes (Ed. MAC, 2002) e Baladas e outros aportes de viagem (Edições Pirapuama, 2006).