Pó

 

Tu és pó e ao pó voltarás. Disse isto em frente ao espelho da penteadeira, já com a esponja de pó de arroz pronta para passar no rosto. Demorou-se um pouco com a mão suspensa, resignada com o tempo que se recusava a entrar também em suspensão.

Quem disse que não se pode ver o tempo? Ela o via ali, em sua frente, refletido no espelho oval do móvel antigo. O tempo tinha a sua cara. Ali estava escrito o passar das horas, dias, anos, décadas de uma vida às vezes bem vivida. Ali também estavam os traços de outras vidas, herança confirmada pelos álbuns de fotografia.

Olhava o tempo em sua frente sem remorsos. Tentou lutar contra ele e perdeu. Gastou fortunas com cremes milagrosos. Desperdiçou safras de pepino em rodelas. Paralisou-se com litros de botox. Chegou até pegar o número do cirurgião plástico. Mas não passou daí.

Olhava agora de frente para o tempo. Até gostava um pouco do que via. Cada marca daquela era uma letra do poema que o tempo escrevera no seu rosto. Não queria apagá-lo, voltar a ser uma folha em branco.

O que não precisava era que o poema fosse exposto nos mínimos detalhes aos transeuntes. Um pouco de mistério nunca fez mal a ninguém. E para isso tinha o bom e velho pó de arroz.

 
 
 

Marcela, a morta viva

 

         Marcela já era bonita. Mas queria ser mais. Daí que vendeu o carro, tirou empréstimo, torrou o cartão de crédito e fez uma reforma geral. Fez lipo, fez peeling, mexeu no nariz, botou um tantinho de silicone, salpicou aqui e ali um pouco de botox e pronto: Marcela ficou belíssima. O resto era com seu personal training e o regime draconalfaciano.

         Aí começou a acontecer uma coisa esquisita com Marcela. Passou a ter a impressão de que ninguém mais a via. Sua empregada servia o café da manhã com o olhar perdido para além das paredes da copa. Decidiu almoçar em self-service depois que os garçons do seu restaurante favorito começaram a passar por ela sem atendê-la. Os seguranças do condomínio abriam os portões sem ao menos olhar para dentro do seu carro. As amigas,embora a tratassem bem ao telefone, deixaram de convidá-la para as festas. E os homens, meu Deus. Os olhos dos homens, para quem tinha feito todo este sacrifício, atravessavam seu corpo como se ela fosse um fantasma.

         Um fantasma, é isto. Acho que morri. Por isso as pessoas não me vêem, não me notam. É isto, morri e ainda não me dei conta. Já tinha lido alguma coisa assim numa revista esotérica.

         Era uma hipótese viável, mas algumas evidências mostravam que ainda estava viva. Mesmo sem olhar para ela, a moça da butique ainda tinha paciência suficiente para tirar e repor nas araras todos os vestidos que ela pedisse. Seu dentista, mesmo com o olhar alheio, não deixava de roçar-se no seu braço direito enquanto a imobilizava na cadeira. A fatura do cartão de crédito era uma testemunha irrecusável de sua presença encarnada neste mundo.

         Tinha que procurar ajuda, mas de quem? Estava devendo ao analista, não queria aumentar mais a conta. Claro que não era louca de entregar um prato feito destes a nenhuma amiga. Tinha que ser um homem. Um amigo de confiança que possuísse uma virtude rara entre os homens: a de entender uma mulher. André. Só podia ser André. Pela coleção de namoradas que exibe com modéstia, ele deve entender muito de mulher. Além de tudo é poeta de poesia sutil, de quem cultiva uma certa alma feminina. Só pode ser André. Foi procurar André.

         Escuta, Marcelinha, falou André, montado em sua estatura de poeta, o olhar lançado por cima da morta viva. Escuta, meu amor: você já deve ter ouvido falar de que certas pessoas, por conta das funções subalternas que exercem, se tornam invisíveis aos olhos das pessoas das classes sociais superiores às delas. Isto acontece com os faxineiros, os porteiros, os entregadores de pizza...

         Mas eu não sou porteira, nem faxineira. E nunca entreguei pizza. Eu nem gosto de pizza. Irritou-se Marcela. E não me consta que divorciada seja uma profissão subalterna. Minha pensão não é de se jogar fora. Eu toda não sou de se jogar fora.

         O problema é exatamente este, meu anjo, retomou André, ainda olhando para um certo ponto no horizonte. Você é bonita demais. E arrematou com o que Marcela não gostaria de ter ouvido: você não existe.

 

 
 
 
 

O baú do anão

                           

                                                                  - Para Paty, no seu aniversário.

                  

 

         Como todo anão, Meia-légua era esquisito. Tinha dias que não ensaiava. Passava o tempo todo de cara fechada, sentado no seu baú. Um dia em que ele estava no picadeiro levando uma carreira do palhaço, o trapezista, por absoluta falta do que fazer enquanto esperava que armassem a rede, abriu o baú de Meia-légua e se espantou. O baú vazio.  

         Terminada a função da noite, o trapezista veio se chegando para junto do baú com o seu dono em cima. Escuta, Meia-légua, você vai me desculpar, mas eu morria de curiosidade de saber o que você guardava com tanto ciúme dentro desse baú. Hoje eu não agüentei e abri. Foi ilusão minha, ou não tem nada mesmo dentro dele?

         Ao contrário do que o trapezista esperava, Meia-légua não ficou com raiva. Continuou olhando para o nada e disse com a voz rouca de tanto gritar no picadeiro: este baú é para me enterrarem, quando eu morrer. Só o dono do circo sabia disso. Agora que você também sabe, acho que também deve cuidar do meu enterro.

         Mas eu nunca vi enterro de anão. O que eu sei é que nunca ninguém viu um anão morrer. Dizem que eles se encantam, somem no meio da mata ou dentro do mar.

         Eu também nunca vi um enterro de anão. Na minha família só eu sou assim. E os anões dos outros circos nunca morrem quando estou por perto. Só sei de uma coisa. Estou perto de morrer. E quando eu morrer, quero ser enterrado neste baú.

         Outro dia, outra noite. O respeitável público dobra-se de rir vendo o anão com as calças caídas correndo do palhaço. De repente, Meia-légua cai e o palhaço quase tropeça nele. Com o bico largo do sapato, o palhaço dá uma cutucada no pé da barriga de Meia-légua e diz sem que a platéia possa ouvir: levanta, anão filho da puta. A bandinha ataca uma marcha ligeira e o palhaço sai arrastando pelas pernas o corpo de Meia-légua para detrás da cortina, sob as risadas e as palmas dos pagantes.

         Isso é hora desse anão morrer, resmunga o dono do circo. A gente tem que levantar a lona agora de noite. Amanhã já tem estréia na cidade vizinha. O trapezista então teve uma idéia. Depois do circo desarmado, a gente dá um dinheiro a esses dois ajudantes para eles cuidarem do enterro do Meia-légua.

         Dito e feito. Com a tralha arrumada nos dois caminhões, a trupe do Gran Circo Gitano faz uma oração em volta do corpo de Meia-légua ainda deitado no chão com quatro velas em volta. Amém. Era a hora do trapezista e do dono do circo botarem Meia-légua no baú.

         Como se previa, mesmo para um anão, o baú era pequeno. Tiveram que botar Meia-légua meio de lado, com as pernas encolhidas, mais ou menos na posição em que vivia na barriga da sua mãe. Entregaram aos ajudantes o dinheiro que achavam suficiente para o enterro e treparam nos caminhões para comer poeira.

         O dia já tinha amanhecido. O cemitério deve estar aberto. Os ajudantes saíram carregando o baú, cada um segurando uma alça, trocando de mão de vez em quando. Nunca imaginaram que um anão fosse tão pesado.

         Quando os homens chegaram no pé do morro onde ficava o cemitério, decidiram parar para descansar. Descansar e tomar umas lapadas para recobrar as forças. Para isto já existia uma barraca às ordens. Botaram o baú em cima de uma mesa e se sentaram na outra. Pediram duas doses de cana. Que duas doses que nada. O dinheiro do dono do circo dava para bem mais. Desce logo um tubo, pra não dar muito trabalho.

         E assim foi um tubo, depois outro e mais outro, até que perderam a conta. Perderam a conta dos tubos e perderam a lembrança do que estavam fazendo ali. Até que veio o dono da barraca e disse que ia fechar. Eles não discutiram. Ainda sobrava dinheiro, podiam muito bem beber num lugar mais decente, onde tivesse mulher. Passar bem.

         O homem fechou a barraca e já ia apagar a luz quando viu o baú em cima da mesa. Agora pronto. Daqui a pouco esses cachaceiros vão voltar pra buscar essa merda. É melhor eu ver o que tem dentro. Pode ser alguma coisa que possa se estragar.

         Soltou a trava, levantou a tampa, apurou a vista. O baú vazio.

 

(13/12/2005)

 

 

 

 

(imagem ©patrycja)

 

 

 

  

 

RONALDO MONTE de Almeida (Maceió-AL, 1947). Com 11 anos de idade, foi viver no Recife, onde mais tarde trabalhou como redator de propaganda e se formou em Psicologia pela Universidade Católica de Pernambuco. Mora em João Pessoa há trinta anos. Poeta, contista, cronista e romancista, publicou, em 1983, Pelo canto dos olhos, seu primeiro livro de poemas. Em 1996, publicou Memória curta, de crônicas e contos curtos. Em 2000, publicou o livro de poemas Tecelagem noturna. Em 2003, Pequeno caos, crônicas e contos. Em 2004, publicou World Trade Center, poema escrito com Pedro Osmar. Em 2006, publicou o romance Memória do fogo, pela Editora Objetiva, do Rio de Janeiro. Em 2007, publicou O lugar da cura — construção da situação psicanalítica, pela Editora Universitária da UFPB. Assinou, por dois anos, uma coluna de crônicas no jornal Correio da Paraíba. Algumas de suas crônica são publicadas pelo Jornal O Norte, de João Pessoa. É membro do Clube do Conto da Paraíba. Psicanalista, com doutoramento em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor aposentado pelo Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba, coordena o Laboratório de Psicopatologia fundamental do Espaço Psicanalítico — EPSI, em João Pessoa — PB. Edita o Blog do Rona e Memória do Fogo.