Fabio Weintraub é daqueles poetas tremendamente conscientes de seu projeto literário. E não poderia ser de outro modo, que, além de editor, membro do comitê de redação do K / Jornal de Crítica, é também psicólogo com formação em psicanálise. Isso, aliás, talvez explique um dos traços marcantes de sua poesia mais recente: a abertura para o espaço público, para a voz dos outros. Seu trabalho distingue-se ainda pela reflexão lingüística e pelo lirismo, o qual nunca está completamente ausente mesmo quando, como acontece em Baque, seu mais novo livro, privilegia temas duros como a doença e a desfiguração. Antes de Baque, Fabio Weintraub publicou os livros de poemas Sistema de Erros (1996), vencedor do prêmio Nascente em 1994; Novo Endereço (2002), que recebeu os prêmios Cidade de Juiz de Fora, em 2001, e Casa de las Américas, em 2003; e Toda Mudez Será Conquistada (1992). Nesta entrevista, ele nos fala sobre a poesia contemporânea brasileira, o debate que existe e o debate que nos falta, seu processo de criação, seu novo livro, suas influências e algo mais. Confiram a seguir. [Héber Sales]

 

 

 

 

 

Héber SalesNa poesia contemporânea, a expressão importa mais do que a comunicação? Ou não seria o caso de o seu sistema de comunicação ter se tornado extremamente especializado, acessível apenas a iniciados?

 

Fabio Weintraub — Creio que essa oposição entre comunicação e expressão deve ser relativizada, pois mesmo os movimentos de expressão subjetiva mais bruta e desarticulada têm efeitos comunicativos, isto é, não são mera descarga autista. Quanto ao uso de um sistema (conjunto de referências, vocabulário etc.) de domínio restrito, julgo que também aí é preciso temperar a crítica. Historicamente é possível recuperar momentos em que o hermetismo abriu caminhos fecundos, constituindo modos de resistência à banalização da linguagem. Assim, não julgo que o poeta tenha de se fazer entender necessariamente por todos, nem que a clareza e a acessibilidade sejam um valor artístico em si.

 

Por outro lado, à medida que, não apenas a poesia, mas a literatura de modo geral vai sendo deslocada para um lugar periférico pelos meios de comunicação de massa (curvando-se muitas vezes à sua lógica); à medida que diminui o investimento em educação (sempre aquém do mínimo orçamentário previsto pela Constituição Federal) e as políticas públicas de promoção do livro e da leitura se revelam insuficientes, é natural que o prazer proporcionado pelo texto literário se torne cada vez mais um privilégio para iniciados.

 

 

HS —  Por que e como as pessoas deveriam ler a poesia contemporânea afinal?

 

FW — Penso que, em princípio, uma das razões para ler a poesia contemporânea se prenderia ao fato de que nela se podem ver sinais da experiência histórica contemporânea organizados de uma maneira que não é puramente mimética, mas também contraditória. Na obra de arte, tal experiência é transformada, entre outras coisas, pela mediação subjetiva, resultando no que o Adorno chamava de uma "historiografia inconsciente".

 

Porém seria preciso destrinchar um pouco melhor o que se entende por "poesia contemporânea". Em verdade, nem tudo o que se escreve no momento presente é rigorosamente contemporâneo deste momento. Para uma boa parcela dos poetas em atividade hoje, tal questão nem se coloca, sendo muitos os que aspiram antes ao transtemporal, requentando estilos pretéritos no bazar pós-utópico.

 

Por fim, no que se refere à segunda parte da pergunta ("como ler a poesia contemporânea?"), penso que não há receita geral, embora a pergunta sugira uma especificidade da produção contemporânea que exigiria novos modos de ler. Acho que essa suposição deve ser verificada, isto é, cabe checar se os instrumentos críticos tradicionais caducaram mesmo diante da inovação formal da atualidade.

 

 

HS —  Em que medida a ambição civil de seus poemas reflete uma tentativa de recuperar um lugar social para a poesia?

 

FW — Antes de tudo, cumpre situar melhor o que chamei em outra ocasião de "ambição civil" dos meus versos. Julgo que o trabalho que venho realizando desde Novo endereço (2002) é movido pelo desejo de transitar entre modos de expressão oriundos de diferentes classes sociais, misturando linguagens, contrapondo perspectivas, trazendo para o registro lírico recursos narrativos e dramáticos. Sinto-me próximo, nesse sentido, dos caminhos percorridos por um Chico Alvim, sem no entanto partilhar com ele a tendência ao miniaturismo.

 

O desafio com que se deparam aqueles que tencionam seguir nessa trilha é o de não ficcionalizar autoritariamente a voz do outro em nome de qualquer voluntarismo político. Ou, dito de outra maneira, o desafio é o de mediar subjetivamente essa "captação de dizeres" sem transformar a "cessão de voz" em imposição falsificadora.

    

 

HS — "Love me tender" é um poema escrito numa linguagem bastante coloquial. Onde está nele a trapaça poética contra os automatismos da linguagem? Ou sua missão é outra?

 

 

Love me tender

 

Antes de se tornar cantor

Rod Stewart foi coveiro

como todos os homens de sua família

 

Nos Estados Unidos

há mais de 53 milhões de cachorros

Cachorros adoram enterrar ossos

 

Todo ano milhões de árvores

são plantadas acidentalmente

por esquilos que esquecem

onde enterram suas nozes

 

As linhas aéreas norte-americanas

economizaram 40.000 dólares em 1987

eliminando uma azeitona de cada salada

servida durante o vôo

 

Azeitona é o nome

comumente usado

para designar os projéteis

que recheiam um cadáver

(também conhecido como presunto)

 

7% dos americanos acreditam

que Elvis Presley está vivo

 

Escovas de dente azuis

são mais usadas que as vermelhas

 

 

O poema a que você se refere, incluído em meu livro mais recente, Baque (2007) segue um pouco o modelo faits divers, alinhando informações curiosas e disparatadas. Acho que  a trapaça (ou deslocamento) reside na lógica associativa subterrânea, que cria nexos inesperados entre a canção norte-americana, hábitos animais, refeições de avião e gíria policial, coisas que em princípio nada têm a ver entre si. Repare que, apesar do aparente desconchavo, a idéia da morte atravessa todo o poema. É justamente do contraste entre essa idéia fixa e o aspecto dispersivo das imagens que decorre em grande parte o efeito cômico.

 

 

HS —  Muitos poetas reclamam da falta de espaço para a poesia escrita na mídia. Até que ponto faria bem à poesia integrar-se à indústria cultural, ao entretenimento de massa?

 

FW — Não me alinho a tal tipo de reivindicação, em parte porque acho interessante esse "alijamento" da poesia, uma espécie de salvaguarda da autonomia criativa. A exposição midiática freqüentemente nos impõe uma série de restrições em termos de tempo (brevidade ou aceleração compulsórias) ou de formato, que os escritores costumam aceitar de modo inconsciente, acrítico. Essa história de ter que escrever textos com cem palavras, por exemplo, encobre e justifica a falta de liberdade formal dos grandes veículos de comunicação, apresentada amiúde como jogo e desafio.

 

Você também se refere à falta de espaço para a "poesia escrita", dando a entender que haveria espaço para outras formas de poesia (poesia sonora, cinética, infopoesia etc.) mais afeitas à intersemiose. Ocorre que também nesse ponto sou meio cético em relação às possibilidades abertas pelas novas tecnologias — em parte porque desconfio do potencial emancipatório dessas novas tecnologias e, divergindo de Mc Luhan, não atribuo ao homo typographicus a responsabilidade total por nosso estreitamento perceptivo.

 

 

HS —  Como você relaciona o seu novo livro, Baque, aos trabalhos anteriores? Que continuidades e rupturas você observa nele? A que influências se devem as novidades aí presentes?

 

FW — Reconheço em Baque uma linha de continuidade em relação ao meu livro anterior, Novo endereço. Noto em ambos aquilo que chamei de abertura ao espaço público, à sociabilidade conflitiva própria de uma cidade como São Paulo. Não é casual, portanto, a presença de tantos poemas sobre mendigos, malandros, doidos e desempregados, enfim, poemas sobre os párias engendrados por novas formas de ordenação do espaço urbano. Formas comumente associadas a uma série de práticas violentas que, favorecendo o interesse de certos grupos, privam amplos segmentos da população do acesso a bens e serviços, do direito de se locomover ou de habitar em determinados locais.

 

O que dizer de uma metrópole em que, mesmo aqueles que perderam tudo e foram morar no olho da rua, têm de sair daí porque podem ser assassinados? Penso que a poesia pode se abrir para esse "olho da rua" que, de tão seco, não admite mais ciscos. Minha poesia nasce então de um movimento de identificação com esses ciscos, que não podem ser expelidos ao preço da cegueira.

 

Voltando porém a Baque, julgo que sua eventual novidade refere-se ao foco mais fechado em determinados personagens (a imprecadora, o idoso, o artista etc.) e a maior concentração em torno dos temas da doença (física e mental) e da desfiguração (o rosto como ralo da identidade). Novo endereço era um livro heteróclito, em que eu misturei à paisagem íntima (poemas de família) cenas de rua, poemas eróticos ("Cadelas", "Contrabando", "Laboratório", "Frescor") etc. Baque é mais monotônico e repulsivo, mais centrado nos processos de desagregação subjetiva no ambiente urbano.

 

Tal resultado não foi fruto de uma decisão prévia, o livro se foi configurando desse modo a partir de alguns núcleos iniciais com que eu já vinha trabalhando. Fiz um pouco de pesquisa, vali-me de material variado, como reportagens jornalísticas, artigos médicos e falas de moradores de rua. Do ponto de vista formal, procurei operar num registro dramático, definindo personagens e supondo situações de diálogo, ainda que com interlocutores silenciosos.

 

 

HS — Muitos poetas hoje procuram as universidades em busca de formação específica em teoria da literatura e estudos literários. Em que medida o estudo acadêmico influi na natureza e na qualidade da poesia atual?

 

FW — Não creio que essa filiação dos escritores a instituições universitárias seja um fenômeno propriamente novo. Hoje os poetas freqüentam os cursos de Letras, mas basta olhar para trás e veremos uma quantidade expressiva de nossos escritores egressos dos cursos de Direito, por exemplo. Não saberia afirmar com segurança se a formação em Letras implica algum tipo de cerceamento do escritor; se o contato com a crítica literária restringe ou dirige o trabalho criativo. Até porque não há nesse meio um consenso teórico acerca do que é mais bem logrado formalmente, do que é de fato inovador.

 

Feitas tais ressalvas, arrisco dizer que o estudo acadêmico e a especialização não aumentam a qualidade da poesia local, mas podem diminuí-la, caso se tornem uma espécie de anteparo contra outras fontes de influência.

 

 

HS — Em que pé está o debate poético contemporâneo? Haveria mesmo um debate? O que falta debater?

 

FW — Olha, para falar com sinceridade, não vejo muitos sinais de debate no sentido forte do termo. O chamado jornalismo cultural é cada vez mais pautado pelos releases das editoras; a universidade, com raras e honrosas exceções, pouco se debruça sobre a produção recente e, nas revistas de poesia, é inusual ver posicionamentos críticos escorados por análises e demonstrações.

 

O caso das revistas de poesia parece-me especialmente interessante. Apesar de mais vocacionadas para a crítica de intervenção que os grandes veículos, elas freqüentemente deixam de marcar posição para advogar em favor de uma pluralidade anódina (que acolhe as mais diferentes tendências) ou entrincheiram-se em polêmicas estéreis, defendendo o interesse de pequenos grupos e sucumbindo à lógica da cordialidade. Em ambos os casos, faltam ajuizamento, reflexão.

 

 

HSComo editor da Rodapé, uma revista que se propôs a mapear sistematicamente a produção literária contemporânea, que balanço você faz da poesia brasileira de hoje? Para onde ela vai?

 

FW — Um balanço como o que você me pede exigiria um tempo de mapeamento que a Rodapé não teve, pois se extinguiu em 2004, no terceiro número.

 

Não tenho visto balanços críticos com visada ampla nos últimos anos. Creio que mesmo  balanços sérios, como os feitos por Iumna Simon em "Considerações sobre a poesia brasileira em fim de século" (Novos Estudos CEBRAP 55,  novembro de 1999) ou por Flora Sussekind em "Escalas e ventríloquos. A literatura brasileira dos anos 90" (Caderno Mais!, Folha de S. Paulo, 23 de julho de 2000) são insuficientes para descrever o que ocorre hoje. Cumpre também notar, sobretudo da parte de poetas mais jovens, um esforço de re-historicização das soluções formais contra o vale-tudo estilístico (ver a esse respeito o ensaio de Ricardo Domeneck, "De figurinos possíveis em um cenário em construção". Separata da revista Modo de Usar & Co. Rio de Janeiro, Berinjela, 2007).

 

Uma coisa, no entanto, é possível identificar: a caducidade dos diagnósticos que só se ativeram aos riscos inerentes à atitude torre-de-marfim presente no trabalho de certos poetas. Conquanto essa atitude retenha ainda algum prestígio em determinados círculos, parece-me evidente que uma parcela expressiva dos livros de poesia recentemente lançados tomaram para si o desafio de compreender a vida social contemporânea e as novas formas de segregação (exílio, pânico, invisibilidade) urbana. A qualidade estética e o mérito político desse esforço só daqui a algum tempo saberemos julgar.

 

 

 

 

março, 2008
 
 
 

 
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Héber Sales. Nasceu em Balém de Maria, Pernambuco, em 1968. Reside desde o ano 2000 na cidade de Salvador, Bahia. Além de escrever regulamente em seu blogue pessoal, tem textos publicados nas revistas Digestivo Cultural, Diversos Afins e WebInsider.
 
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