©michael duva
 
 
 
 

 

Examinava o delicado objeto cilíndrico revestido por papel cujo interior se encontrava um punhado de coisas que eram inaladas para os seus pulmões. Entreabriu os lábios e sentiu a pele do filtro contra a língua. A mão em concha riscou o fósforo, queimou a ponta e raiou um minúsculo sol. Tragou o cigarro com prazer, um prazer de anos. Oito segundos para a nicotina agir sobre o seu sistema nervoso central e logo aumentar-lhe-ia a freqüência cardíaca e respiratória.  Saber que inalava alcatrão, monóxido de carbono e mais de 4.700 substâncias tóxicas - registrado em letras miúdas na embalagem de Hollywood American Blend - causava-lhe certo desconforto.  Porém, não o impedia de fumar uma carteira por dia.

Chovia no deserto urbano. Àquela hora da noite, a rua Uruguai se enchia de espaços vagos. O asfalto e as calçadas, as peles dos prédios e a demência da atmosfera desolados de gentes. Acima dos telhados lambidos pela água, pombos.

Enfiou as mãos no casaco preto, abaixou a cabeça e agüentou com humildade o peso da chuva sobre os cílios. Ele era um homem que suportava muitas coisas. E tinha apenas trinta e quatro. Debaixo da marquise consultou o relógio de pulso pela terceira vez. Calculou mentalmente a distância entre o ponto onde estava até o estacionamento no qual deixara o carro. Aproveitou para acender outro cigarro, a mão em concha, o risco na caixa de fósforo, o fogo, a iluminação. Tragou fundo, pensou fundo. Voltar para o apartamento no Jardim Leopoldina, meia hora de viagem, avenida Sertório ou Assis Brasil, estacionar na garagem do condomínio, abrir a porta do apartamento e.

Escorregou na calçada, corpo pra frente, corpo pra trás. Recuperou-se praguejando alto. Merda de vida, porra! Levantou a gola do casaco, um café, apenas. Se ainda tivesse bebido. Mas hoje nada. E não ingerira álcool por falta de prática em ser um alcoólatra. Emergente. Um desgraçado que esquecia de encher a cara dia sim dia não. Saco de chuva!

Cruzou a Andradas e subiu a garganta maldita da General Câmara. Pulmões ardendo, fora de forma, trinta e quatro, uma carteira de cigarro por dia, ex-dono de sebo, ghost writer com cartela de clientes, proprietário de um apartamento na periferia, separado há dois meses desde que a vagabunda flagrada pelada na cama com um...

Acelerou. Ignorou a cor vermelha nas sinaleiras. Voltaria pra casa inteiro. Mesmo que aos pedaços. Vadia. Dois anos juntos. O cheiro dela no lençol florido.. Sacana, sem vergonha. Olhos nos olhos. Sabe que tenho de ficar até tarde no hospital, Marcelo. Pra quê fazer essa cara, me diz? Se não acredita vá lá conferir, que coisa. Da sacola saem quatro cacetinhos, duzentos gramas de queijo lanche e cento e cinqüenta de presunto magro porque o presunto possuía largura suficiente pra ser cortado ao meio e era o que ela, a vagabunda da sua ex-mulher - Rita nome de batismo - fazia, cortava ao meio o presunto. Agora ele não comia mais presunto nem queijo e só comprava dois cacetinhos. Arrancava o miolo, enchia o interior de papel e tacava fogo no pão. O pão de Rita queimava sobre a mesa da sala. Marcelo olhava o espetáculo fascinado. Podia ser a cabeça dela. Ou um dos seios. Quantas vezes imaginou entrar no quarto e vê-la na cama em plena combustão espontânea. Mas a flagrou sem roupa e dançando de forma estranha para um. Que não era ele.

Marcelo tinha olhos azuis e a barba por fazer. Era um homem bonito e culto. Duas graduações guardadas no cérebro. E um coração que sofria de convulsões sentimentais.  Tencionava matar a mulher que decidira o seu destino, marcara-lhe o futuro e sentenciara que ele jamais jamais se apaixonaria outra vez e que jamais jamais seria digno de ser amado porque todas as mulheres, vacas, eram traidoras em potencial.

Depois de chorar e ter de limpar o sangue do nariz pois estourara algumas veias, foi lavar a louça da manhã. Leite na caneca coalhado. Droga de vida!, gemeu o escritor fantasma.

 

*

 

Moscas sobrevoando a lixeira da cozinha. À porta, ele observava o efeito singelo da decomposição. E tudo começara numa troca de sacolas debaixo do teto de vidro de um shopping center. Na praça de alimentação, sentado e domesticado após alimentar-se de carboidratos e gorduras de uma grande rede, Marcelo vasculhou os embrulhos atrás do tão esperado livro. Era-lhe a sobremesa. Ocorreu, então, que a atendente da livraria trocara as sacolas e ele carregava consigo um Bukowski, ah, mas Marcelo ex-dono de sebo e escritor-para-os-outros não tolerava muito esse pessoal de segunda linha. Torceu o nariz no melhor estilo. E temeu o destino de seu precioso Kafka.  Voltou à livraria. Uma morena impaciente, olhos insones e olheiras, cabelo preto quase azul, lábios vermelho lambidos por gloss, pernas bem mais longas que a minissaia enfiada no corpo magro, braços cruzados, pés acompanhando uma batucada imaginária, cara de poucos amigos, mulher de parar o trânsito, chave-de-cadeia, complicação, infortúnio, par de guampas, Kafka desprezado no balcão, fêmea gostosa, como seria na cama? Uma puta, por certo, Marcelo encrencado pensava numa forma de elogiar o Velho Safado sem parecer hipócrita.

- Mulheres que lêem Bukowski me intimidam. - sorriu com charme ou pensou em fazê-lo.

Ela quase arrancou o livro de suas mãos. Ponto para as meninas, ele estremeceu porém, em seguida, a arrogância típica de quem se sentia inferiorizado tomou as rédeas. Juntou Cartas Ao Pai e o folheou, dando a entender que a moça poderia ter roubado uma ou outra página. Que atitude besta, recriminou-se horas mais tarde quando a morena já adormecia após o sexo.

- Interessante. Sabia que as mulheres que lêem Bukowski amam cachorros?

- Pensei que ele preferisse gatos.

- É, ele sim.

Melhor calar a boca. E foi o que ele fez. E abaixou a cabeça. Provavelmente tal gesto foi interpretado como timidez. Na verdade era falta do que dizer, de repente as palavras lhe fugiram. Olhou ao redor. Tateou os bolsos em busca de uma bala de menta já que parara de fumar havia duas semanas. Queria fumar. E queria levar a desconhecida para um hotel e esquecer um pouco das convenções e apresentações e amolações. Podia nunca mais voltar ao sebo quase falido e virar hippie.

Mas ela não estava mais no lugar de onde nascera árvore de maçãs. E ele se sentiu perdido na cena. Assim deveriam terminar os romances, bem no início, embriões. Evitar-se-ia dor e desperdício de tempo. No entanto Marcelo a encontrou na escada rolante e ela disse que seu nome era Rita e adorava Kafka mas no momento seu espírito pedia a realidade das ruas por isso.

Foram para um hotel.

 

*

 

Abriu a tampa da lixeira do condomínio. Moscas por tudo. A cabeça de Rita aparecia entre garrafas de Coca-cola e latas de óleo de soja. Céu cretino louco de estrelas. Sangue descendo por uma das narinas. Dentro do peito uma tristeza prestes a implodir, bolha seca, tumor de angústia. Queria chorar alto e gritar a falta. Deixou dois dedos debaixo da tampa da lixeira coletiva. Uivou de dor.

- Ai, meu Deus, seu Marcelo! Será que não quebrou?

Era a vizinha de cabelo branco-amarelado. Desenho assimétrico, cinza, de supostas sobrancelhas. Tez pálida, frisos talhados nas bochechas, magricela, um metro e quarenta sobre pernas arqueadas e uma corcova no lombo. Velhinha metida num vestido preto e chinelos de pano. O tipo bem comum em condomínios predominantemente geriátricos. Caminhava devagar amparada por uma muleta. Cinco passos, parava, certificava-se de que o jardim estava no jardim, mais cinco passos, as crianças longe das bolas que estouravam vidros das janelas, três passos, nada de bicicleta ou patinete porque podiam atropelar os idosos, as gestantes, as formigas e os poodles, seis passos, ô, Leonora, quem é esse casal que está se mudando pro 208?

- Não quebrei a lixeira, dona... - nunca lembrava o nome dela.

- Oh, não me venha com brincadeiras... - riu-se, olhar de rapina, vaca velha - Falei dos seus dedos. E como vai a Rita? Boa garota aquela, digo sempre pras minhas netas, gente boa essa a do 208. Sentimos falta da sua esposa na última reunião do condomínio.

Bem de perto a velha parecia uma Enviada do Inferno. Se os seus dedos parassem de latejar ele apertaria o pescoço pelancudo da anciã. Meneou a cabeça, pigarreou, a mão buscou o cigarro mas a carteira jazia sobre a mesa a sete palmos da toalha. Ah, que má sorte.

- Rita morreu.

- Rita se engasgou com ossinho de galinha.

- Rita viajou.

- Pois é, seu Marcelo, nesse sábado teremos outra reunião de condomínio e esperamos a presença de todos os proprietários. É importante, sabe. Somos como uma pequena comunidade e temos de nos unir para o bem-estar de todos. Teremos a eleição para o novo síndico, é importante, sabe. O senhor Cristóvão não quer largar a teta da vaca, deve estar pondo a mão na botija, comprou carro novo... então temos de eleger a Miranda, professora do maternal, gente boa, sabe...Não me interprete mal, não estou fazendo campanha pra ela, não, mas a verdade deve ser dita, um síndico não pode passar muito tempo no poder, olha só o Fidel e o Chaves, absurdo, claro, os tempos são outros, viva a democracia, a liberdade das mulheres, sabe...

"...e a mangueira fica esguichando água enquanto se lavam carros e tapetes e o preço da água está pela hora da morte e ninguém se importa, temos de racionar o uso da água, somos uma pequena comunidade, cada um deve fazer a sua parte, eu tomo banho uma vez por semana e só ligo o chuveiro pra escorrer o sabão de glicerina grudado na minha pele e...".

- Que vença Cristóvão.

- Como...? - ajustou o aparelho auditivo, franziu o cenho, estreitou os olhos opacos.

- Como? Vou lhe dizer como: são 23 bilhões de neurônios contra 19, minha senhora. O Cristóvão tem noção espacial aguçada e o seu lobo parietal inferior lhe confere superioridade em cálculos matemáticos; e, além do mais, possui extrema facilidade em jogos com coordenação motora direcionada aliando a um impecável raciocínio lógico. É capaz de se orientar com precisão se utilizando de mapas geográficos, lida infinitamente melhor com máquinas e encontra com facilidade a saída em labirintos. Olha, eu deveria parar por aqui, vejo que a senhora está sem palavras mas devo continuar, é o meu dever, é como uma luz sobre o meu crânio. - pôs as mãos na cintura, respirou fundo, o holofote sobre o corpo esguio - Me desculpe, mas nós, o Cristóvão, digo, é mais hábil em lançar dardos e interceptar bolas que Miranda, por favor, é uma questão lógica, somos superiores, veja bem, dona... dona, é, dona: escute, um teste científico provou, não sou eu quem está dizendo, não, é a Ci-ên-cia; então um teste comprovou a habilidade dos homens, veja bem HOMENS em dizer onde os buracos feitos numa folha de papel dobrada estarão localizados quando ela for aberta! Sabe o que isso sig-ni-fi-ca, hein, hein?! - sorriu vitorioso e alçou a sobrancelha com arrogância.

 

*

 

Bukowski era um bêbado que sabia escrever e usava a própria vida como quem vende o sangue pro vampiro. Que tipo de pessoa lê esse cara mil vezes repetitivo, bebidas, jóquei, trepadas e casca de pipoca entre os dentes? E a morena, brincos de argola cor prata, mecha solta na testa, gloss na boca grossa, pegou o livro de volta e nem agradeceu. Ainda lançou um suspiro exasperado, mal educada, só porque era gostosa achava que estava com a vida ganha, é? pernóstica, arrogante, patética, ridícula. Rebola bem esse rabo e te manda!

- Mulheres que lêem Bukowski me intimidam. - disse fingindo que controlava o riso. Mas ela não se voltou e ele ficou rindo sozinho.

Encontrou-a na escada rolante, num dos primeiros degraus, e a sacola que ele carregava bateu suavemente contra a sua bunda.  Aí, sim, ela se voltou já com o rosto contraído e pichado de palavrões.

- Oh, desculpa. - novamente a vontade de rir. Dela.

- Tudo bem. Os homens têm problemas com a noção de espaço mesmo, e olha que boa parte deles são espaçosos. - tentou brincar, parecia fora de forma.

- Bom, acho que a senhorita está enganada, provavelmente não é motorista. Já viu uma mulher estacionando entre dois carros? - quase gargalhou.

- Na verdade, eu não dirijo nem a minha vida quanto menos um automóvel. Boa tarde, moço. Aproveite bem o seu choramingas, "ó, paizinho por que não me ama"? - bancou a atriz afetada, levou a mão ao peito e fez cara de choro.

Marcelo achou-a insuportável e canastrona. Até era bonita e apetecível para os seus instintos mais baixos. Ô, se era! Mas dado ao fato que ela se agigantava a cada inflexão de voz e o tratava como um fedelho, ora bolas! Vá pro Inferno, vadia. No entanto, antes de chegar ao piso escorregadio do shopping e pular do último degrau da escada rolante, ela novamente se virou, meteu seus olhos negros nos dele e disparou à queima-roupa:

- Moro com um cachorro. E ele está com câncer. Dois tumores do tamanho de uma laranja. Preciso de companhia. Está livre pra tomar um chá?

Acordou com um gosto amargo e a saliva seca no canto da boca. Abriu os olhos porque era de costume fazê-lo mas sabia que assim que o fizesse o dia nasceria outra vez. E ele não queria viver o dia.  Espichou o braço e o vazio ainda estava lá. Rita merecia a pena de morte por ser uma vaca. Então lembrou que deveria tê-la deixado na escada rolante com sua carinha de coitada, o seu chá sem açúcar, o seu cão moribundo, a sua oferta de sexo gratuito que o levaria direto pra toca da leoa faminta e traidora. O instante em que os romances se iniciam. Para quem desejava uma vida de paz e flores do campo, abortá-los, sempre. Nem vacilou nem bocejou nem precisou fechar os olhos.

- É uma pena que seu cão morrerá de uma forma tão dolorida e longa. A senhorita sofrerá com ele até o último minuto e depois também pois sentirá a sua falta. Infelizmente, não posso acompanhá-la, tenho compromisso inadiável, uma palestra sobre... sobre cromoterapia. E, bem, quanto ao chá, tenha dó, não sou veado.

Isso, assim seria feito. Nada aconteceu. Essa mulherzinha nunca existiu. Levantou-se ligeiramente alegre, quase sorriu ao encher a chaleira pra feitura da infusão de erva cidreira.  Sentia-se revigorado, a mente limpa e sem lembranças. Um homem livre e jovem. Pronto pra recomeçar. Nunca. Jamais. Neeem pensar.

Quando o celular tocou, ele erguia a quarta colher de açúcar acima da caneca de chá. E após desligar-se do evento e da ligação, olhou ao redor à procura do texto encomendado pela coordenadora de uma central de telemarketing. Há duas semanas haviam contratado seus serviços de ghost writer. O trabalho era simples, a elaboração de um script de venda para os teleoperadores da venda-ativa de um cartão de crédito. Texto enxuto. Palavras certeiras e acessíveis. Informação rasa. Persuasão e hipnose verbal. Cuidado com cacofonia e ciladas lexicais. O importante era que cada construção frasal atingisse o cliente como uma bamba de gás orgástico e o fizesse fechar os olhos e abrir a boca pra dizer: sim, eu quero esse cartão de crédito fantástico, fabuloso, sim, não me importa que o limite seja de trezentos paus ou que a anuidade seja o dobro dos outros, sim, eu mereço esse cartão dourado cinco estrelas aceito em todos os cinco estabelecimentos conveniados, me dá que é meu.

Saiu do elevador no décimo primeiro andar e já podia ver as cabines dos teleoperadores e ouvir vozes baixas e timbres nasalados recitando um rosário de frases ditas cerca de trezentas vezes por turno.

Foi recebido pela coordenadora do telemarketing-ativo. Aparência de Vencedora, mais de seis salários mínimos por mês, carro zero na garagem preferencial, apartamento na Independência, dois ou três orgasmos quinzenais, cheque especial, sem filhos, sem ilusões quanto ao amor, macho na coleira, vou embora e largar essa merda de trabalho, não, não, a Rita pensa que vai se dar melhor que eu, que o seu empreguinho no hospital, não darei esse gostinho a ela, não me porei de joelhos e é o seguinte Mulher de Carreira, toma aqui pros teus operadores-escravos:

- O cartão American Plus abrirá as portas dos lugares que você só imaginava poder freqüentar. Lugares que o seu tipo de gente fica admirando em frente a uma vitrine como um cachorro olhando pro frango girando no espeto. Dê o presente dos sonhos dos seus filhos e leve sua esposa pra viajar afinal ela vai lhe trair mesmo e se você não esfregar as cédulas na fuça da vaca...

- O senhor está brincando?

Cabelo puxado num coque baixo. Rosto sem maquiagem, impassível. Roupa discreta quase masculina. Voz controlada. Vaca adestrada.

- Eu me perdi. Esse texto está ruim. Volto amanhã com algo melhor.

- Vamos fazer mais que isso. Aqui está o script que eu redigi, quero que o corrija, faça alguns retoques gramaticais e ortográficos. Amanhã o traga pronto. Manteremos o mesmo valor de antes. Assim está bom para o senhor?

- Posso criar outro texto.

- Claro que pode. Mas quero o que eu escrevi; pode ser?

- MAS ISSO AQUI TÁ UMA MERDA. Deus do céu! Depois os cientistas dizem que as mulheres são melhores com a linguagem que os homens, por favor, é hilário! A senhora escreveu "asterístico", é incrível!, e ainda temos, deixa eu ver: o "senhor ganhará gratuitamente", ops!, ele não vai ganhar pagando, não é? me poupa, dona executiva. E o que temos mais adiante: a "utilisação, com 's', desse cartão é uma mão em toda ocasião", uma poesia, que lindo. Podre. Lixo. Nego-me corrigir esse troço. É como escavar ouro na barriga de um elefante.

Braços cruzados sobre o tampo de vidro da mesa. Ambiente refrigerado. Feição serena e Botox nos músculos da testa. Sorriso brando quase maternal.

- O seu serviço está sendo dispensado.

Marcelo gargalhou.

- Está sendo...? Ah, então, eu estou saindo do seu escritório... Consegue me ver lá na porta... ? VA - VA - CA! - a língua parecia enrolar-se dentro da boca, mal conseguiu pronunciar o xingamento.

Saiu da sala ainda confuso com o rumo da conversa. Eram falsas, todas. Imaginava se Rita fosse uma executiva ou cientista ou médica no hospital onde trabalhava. Se ela de fato tivesse poder. Como ele se sentiria sendo a sombra de alguém que o rejeitou?

A partir do momento que o contrato com a empresa de call center foi rompido, quase como uma espécie de efeito dominó, os demais clientes se afastaram cautelosamente. Talvez a talzinha de tailleur bege-impessoal tivesse fofocado ou posto um anúncio no jornal, ou fosse aquele tipo de má sorte que acometia as pessoas de tempos em tempos. O cara ficava desempregado e a resistência do chuveiro queimava, enquanto a borracha da porta da geladeira não vedava e o gás terminava antes de cozinhar o arroz. Coincidências?  Uma série de malditos acasos enfiados na brecha mais crítica de sua existência, no interstício em que tentava esquecer a adúltera ou traçar um plano racional para matá-la sem deixar evidências no local do crime. Assim, antes de elaborar o futuro crime passional, foi à farmácia e comprou o terceiro frasco de paracetamol 750 mg. Nas últimas semanas sofria de dor de cabeça. Têmporas latejantes. Visão turva. Insônia. Deveria vomitar na privada as recordações. Enfiar o dedo fundo na garganta e liberar o passado. No esgoto. Puxar a descarga sem examinar os detritos boiando no redemoinho aquoso do tempo. Dar as costas e fechar a porta do banheiro em vez de evitar as lágrimas diante da televisão ligada na MTV, programa de auditório e gurizada feliz da vida porque beijava. Marcelo perdia a energia e se deixava levar por uma corrente que o anestesiava um lado do corpo. Só queria uma almofada macia debaixo da cabeça que borbulhava feijões carioquinhas.

Dois depois foi informado que sofrera um acidente vascular isquêmico.

 

*

 

A auxiliar de enfermagem entrou no quarto e encaminhou-se à janela a fim de abrir as cortinas. A luz da manhã envolveu o ambiente com sua frouxidão dourada. Era um dia de céu azul sem nuvem. Ouvia-se ao longe a tagarelice pelos corredores do hospital e vez por outra a sirene de uma ambulância. Aquele lugar não era o mais calmo do mundo.

Quando Marcelo acordou não sabia onde estava e esperou que a realidade perdesse a forma de esboço e agisse efetivamente na sua concretude. Pela primeira vez ele quisera vivê-la, viver inédito dia. Mas nesse novo gesto ou na retomada desse antigo gesto não havia aquele famigerado frescor de vida que as pessoas frente a frente com a morte sentiam. Após a comunicação do médico sobre o seu acidente vascular no cérebro, sem muita gravidade, a sensação que o escritor se permitia suportar era a de esquecimento. De fato a memória fora-lhe afetada; no entanto, o jovem neurologista dissera-lhe que aos poucos a mesma voltaria ao normal e o passado ser-lhe-ia de todo restituído.

- Como vim parar no hospital?

- Salvo pelo acaso. A síndica de seu prédio bateu à sua janela e através do vidro o viu caído no chão. Ela e o marido estiveram aqui à noite passada pra saber sobre o seu estado.

- Eu não votei nela porque tem quatro bilhões de neurônios a menos que eu, digo, que o Cristóvão. - disse com certo arrependimento.

O médico sorriu com a compreensão de quem vivera muito em apenas trinta anos.

- Esse tipo de desorientação logo passará e o senhor retomará sua vida normalmente. Espero, apenas, que evite o cigarro.

Somente quando o médico saiu, o paciente percebeu a presença da auxiliar de enfermagem; esta ajeitava flores num vaso horroroso, de cerâmica barata. Então ele ouviu uma voz que não se revelava a ele há mais de dois meses:

- Se temos chance de recomeçarmos conosco mesmo todos os dias da vida; por que não o fazemos? Cercear-se de dúvidas e dilemas sentimentais... pra quê? Fingir que as cenas do passado nada significaram e arrancar do coração a verdade pra implantar no seu lugar a amargura; por quê? Um dia conheci um homem e ele era a versão mais próxima de mim mesma e eu o amei de cara, sem hesitar ou temer o futuro e a impossibilidade de nossa união. Amei a idéia do amor. Amei o momento e a atmosfera que nos unia em algo em comum, no caso, a literatura. E ficamos dias e dias, meses e meses, conversando sobre autores, livros, teorias filosóficas e científicas e banalidades em geral. Cada encontro me transpunha da rotina diária do meu trabalho e vida de mulher moderna para a magia do amor e da ilusão, mas era uma ilusão boa, uma ilusão criada para transcender a realidade e torná-la refúgio de amantes. Eu corria para casa, queria encontrá-lo e ver-me nele. E era bom acreditar que essa sensação de plenitude amorosa, essa grandeza, essa felicidade que me tirava os pés do chão jamais terminaria. O destino nos unira sem que tivéssemos responsabilidade sobre. Magia, eu havia dito. Mas o tempo passou e a gente ficou próximo demais, tão perto que vimos a radiografia de nossos seres e o vazio entre os ossos. Fui atacada e ataquei, Amélia pra baixo, tu me causa náusea, ele me dizia, convencional e previsível, tu é patética, também. E eu só queria magoá-lo pra que ele sentisse a minha mágoa. Quando a gente se mistura a outra pessoa, se perde. O amor transformou-se em desprezo e a única vontade que tínhamos era manter intactos nossos egos, combalidos diante de tanta selvageria verbal. É sempre o mesmo movimento, o mesmo padrão convencional, o das relações afetivas. Primeiro o encantamento, a dança dos pavões, as máscaras e a elevação do outro a um pedestal nas nuvens. Por fim, a mediocridade total. Vergonha, arrependimento, estranhamento de nossas próprias atitudes e a descoberta de quem realmente era aquele que fora erguido às alturas.  Será que vale a pena viver a experiência sabendo de antemão todas as suas manobras e, principalmente, o desfecho? - espetou a agulha na ampola, puxou o êmbolo e o líquido espalhou-se no interior da seringa. Completou sem emoção: - As coisas são como são, e eu aprendi a suspirar resignada em vez de sofrer um AVC. Sacou, Marcelo?

 

*

 

Naquela tarde em especial, ele estava com vontade de se presentear.  Acabava de vender o sebo na Jerônimo Coelho. O novo proprietário era um judeu dono de outros quatro caga-sebos na cidade. O homem era alto e largo, fumava charuto e usava chapéu panamá. Sujeito balofo, bom de conversa, viajado e habilidoso em lidar com negócios falidos. À saída de seu antigo estabelecimento, apertaram-se as mãos e sorriram certos de que cada um cumpria parte do seu destino, fossem quais fossem as conseqüências de suas decisões. O judeu enfiou-se entre as prateleiras abarrotadas de livros e escondeu-se nas leituras. O ex-livreiro procurou um modo de premiar-se após fechado a transação. Trocados na carteira, um bom dinheiro no banco, café no shopping e a aquisição de um belo exemplar de Kafka, assim, sem muito compromisso, como um leitor entediado ou simplesmente alguém que deseja gastar dinheiro com cultura.

Zanzou pelo shopping por meia hora e logo se cansou das vitrines e das pessoas que o freqüentavam. Sentia-se inquieto e impaciente. Tinha fome mas não se decidia sobre o que comer. Tinha sede mas nada lhe agradava. Então entrou numa livraria para se acalmar. Escolheu Cartas ao Pai, pois os dois exemplares que possuía foram vendidos com o sebo. Ainda passeou por uns minutos entre as estantes como quem brinca de passar o tempo e finge que cada segundo não é precioso coisa nenhuma.  Pagou o livro, pegou a sacola e saiu rumo à praça de alimentação. Ainda não sabia o que comer ou beber. Sentou-se à mesa.  A atenção voltada para a sacola da livraria. Retirou o exemplar e descobriu a façanha da atendente: ela trocara as sacolas e ele estava com Cartas na Rua, de Charles Bukowski. Irritou-se com a distração da moça. Hoje em dia a seleção de tais vendedores era pouco rigorosa, refletiu com azedume, bastava que soubessem ler... Guardou o livro novamente. Deveria voltar e exigir a troca.

Atravessou em largas passadas a praça de alimentação, alcançou a escada rolante, passou em frente à livraria e viu uma morena, gloss nos lábios, Kafka pendurado por dois dedos como se o mesmo fosse um peixe fedorento, bonita, o livro trocado, o exemplar do seu escritor, gostosa, a atendente fez-lhe um sinal e gritou: senhor! senhor! O seu livro foi trocado, senhor!

Aqui. Parou.

"Começou como um erro".

O efeito da primeira frase de Cartas na Rua rachou Marcelo ao meio. De repente foi tomado por uma espetacular surdez e um autismo profundo que o separou dos demais humanos.  Entrou no seu carro ainda hipnotizado pelo texto do autor alemão. Nem piscava. Não abriu as janelas e tampouco atendeu o celular. Acelerou o automóvel até se sentir seguro.

 

*

 

Quatro dias depois estava fora do hospital. Parcialmente recuperado. O neurologista indicou-lhe um psicólogo haja vista o problema com a sua memória. Marcelo não se lembrava de ter sido casado com Rita. Choque pós-traumático ou qualquer outro mecanismo cerebral apagara-lhe alguns dados sobre sua vida. E quem o visse diria que agora era um novo homem, alegre, jovial e cheio de planos para seu futuro profissional. Entretanto, um dia o carteiro trouxe-lhe um documento que pedia a sua assinatura: o divórcio.  As lembranças voltaram como uma tsunami voraz e vingativa. E como ele não tinha dinheiro para encerrar-se numa ilha deserta e viver como eremita barbudo, seu poderoso cérebro masculino com 23 bilhões de neurônios encontrou um jeito de livrar-se do trauma: entupiu as próprias veias com coágulos de sangue.

 

 

 

 

julho, 2008

 

 
 
 
 

Janice Diniz (Porto Alegre, 1968). Escritora, revisora e professora de português, redação e literatura. Participou de antologias de contos fantásticos. Colabora com textos em vários sites literários. Recebeu prêmio da editora Abril por seleção nacional de breve narrativas de histórias de amor, 2000. Publicou artigos em jornal de Sorriso-MT. Edita o blogue de ficção e não-ficção Teofilina Bermácia. E sai do forno sua primeira publicação solo: Ligações da Rua.

 
 
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