Salada de frutas

 

Matilde sentou no meio-fio ambicionando arrancar um tufo de cabelo — o excesso de fios desgrenhados modelava sua cabeça e, no mais, o penteado não era condizente com a época, além de causar comicidade a quem a visse. Envergonhava-se por ser feia e pelo fato de se tornar ainda mais deplorável com aquela cabeleira. O julgamento assaz de um ou outro lhe suscitava a enorme coragem em mudar o comportamento, mas, para tanto, a imagem era o acessório que seguiria o principal: o corpo escultural e moreno, e, embora fosse mulher donzela, foi-se para bem distante o mandamento da pureza quando Abdias correu pelado em frente da sua casinha gritando que seu rabado queria fogo. Em baixo da calçada, à sua frente, entre suas pernas arreganhadas, havia uma porção de água por onde tentava enxergar o reflexo daquela coisa castanha e sem graça que trazia colada ao rosto, mas era noite — impossível transmitir qualquer sensação, tampouco havia fôlego em meio àquele parecedouro.

Os pés encardidos e descalços de Matilde patinaram inconscientemente no calçamento, para esquerda e direita, e vice-versa. O povoado há dias era assolado por muitos e perigosos terremotos. Em um dia apenas foram quase duas centenas. Os pequenos logradouros acabaram se transformando em abrigo seguro, onde todos permaneciam, noite após noite, dia após dias, ao relento, fumando seus cachimbos, com suas redes dependuradas em algarobeiras e seus colchões mascados estendidos junto ao esgoto, enquanto os cães ladravam fortemente na tentativa de reaver o território que acreditavam deter o mais absoluto domínio. Matilde, contudo, não se importou quando um terrível rato passou em disparada sobre os seus pés — por certo temeroso do balançado do mundo; o que mais a incomodava, naquele instante, era ter sido levada pela madrasta ao velório de um homem ancião que sequer conhecia.

É bem verdade que se tratava de alguém de importância atestada — eram muitas as pessoas de preto que se aglomeravam para a última despedida. E o féretro, por determinação da guarda municipal, estava exposto a duzentos metros de qualquer coberta, ou seja, do lado de fora, no meio da rua, debaixo de chuva e de sol. Doravante, todos os acontecimentos importantes do povoado, inclusive as cerimônias mais conservadores, passaram a ser guiadas pela garantia de que não haveria riscos à população, e, para tanto, enquanto houvesse a onda de tremores no povoado, tudo seria realizado debaixo do céu, já que este não desmontaria pelo menos nos próximos séculos. Com toda razão. E fato é que a morada do infeliz adquiriu tantas rachaduras que sua filha mais velha disse não ter certeza se voltaria a entrar na casa até que a prefeitura desse um jeito de revestir tudo com cimento e espinho-de-carneiro.

Matilde via, ao lado do morto, em uma cadeira de palha, uma senhora decrépita, aos berros, que pouco a pouco clamava por se juntar ao marido — um homem tão bom e cheio de vida —, coisa que Matilde, compenetrada com a desilusão capilar, não compreendia, pois, enfim, o velho estava morto — e normalmente morto é estar vazio de vida. A senhora, no entanto, engolia o choro todas às vezes que sentia tremer o chão, talvez por achar que sua súplica pudesse ganhar ares de verdade confessos. Aliás, a cada nova chacoalhada da terra, todos do povoado optavam pelo sequioso silêncio. Talvez fosse o final dos tempos para o povaréu, amplamente especulado nos programas de rádios locais durante vários dias. Evocaram-se ainda a segregação cultural para justificar as ameaças contra o povoado. Em vão é que não era — nada se abalaria do nada.

Sem dúvida, a primeira vez que se tinha notícia de tremores para aqueles lados. A oração não era tão-somente em favor do falecido, mas também com a finalidade de abater a endiabrada natureza que agora aprontava pânico causando mais mortes. Galhardo foi o segundo a não resistir: levou um baita susto quando sentiu uma viga despencar do telhado ao lado de sua cabeça, que — diga-se de passagem — era enorme. Não a viga, mas sua cabeça. Infelizmente, não tardou mais do que um minuto após a queda da tora de madeira: Galhardo ficou estatelado no barro frio, chegando a urinar tudo aquilo que lhe era direito. Afanaram-lhe rapidamente o relógio ganho numa rifa. O médico que tentou socorrê-lo afirmou que o coração lhe pregara uma peça trágica e fatal, não a viga nem o tremor, embora uma coisa fosse conseqüência da outra — e os doutores às vezes se tornam incompreensíveis. Assim, feito o velho, Galhardo foi velado no meio da rua por uma multidão de medrosos — alguns supersticiosos, como era o caso do Capitão, que nos meses de março se alimentava de tomates, de todas as espécies, por acreditar que a dieta lhe garantiria o corpo fechado. Ledo engano. Não foi a tremedeira dos últimos dias, mas o engasgamento com o bagaço do próprio tomate o responsável por seu fenecimento.  

Matilde, de longe, a admirar-se da madrasta coberta de luto, lamentando o velho dentro do caixão. Havia motivo, no caso, desconhecido, que a levara a estar lhe fazendo companhia em noite tão sisuda. Para ela, o problema era o cabelo, como o doce de jaca que tão bem fazia, mas que às vezes errava o ponto — o cabelo passou do ponto desde que nasceu. Seria fácil se socorrer à tesoura não fosse o pai nauseabundo que impedia veementemente a utilização de artifícios para modificar a natureza da pobre coitada. A madrasta, no entanto, não deixava de ser espevitada naquele entontecer todo. Nem quando um castiçal lhe caiu no busto com a vela acesa, incendiando a carne do peito, da cara, da barriga e, por fim, das finas pernas. Matilde nunca vira alguém correr tanto em direção ao nada.  

O Capitão, antes de bater as botas, convocara para um palavreado de emergência, no cume da Serra Mimosa, o representante da igreja, juntamente com defensor da lei e o garantidor da boa convivência entre os pares, com o intuito de que o Estado Maior do povoado chegasse ao denominador comum quanto à atitude a ser tomada diante do caótico quadro instalado. Todos estavam assustados com os tremores de terra e por isto uma hecatombe se anunciava para os dias seguintes. Mas era preciso acalmar a população antes que esta se armasse de forma descompensada para uma guerra contra um inimigo incomum e, de certa maneira, imbatível. Não poderiam também demonstrar fraqueza solicitando ajuda de qualquer ordem da capital, pois o povoado fora construído no século dezenove sob o manto de gente intrépida, varonil e corajuda. O padre tergiversou entrar no mérito do tal manto incólume e disse apenas que não havia nada que ser feito senão rezar, rezar e rezar, cada vez mais, cada dia com mais fé, a fim de que o temível mau fado carregasse seu fedor para bem longe dali. Bastou estas derradeiras palavras para haver um estrondo ensurdecedor vindo de baixo; abriu-se um buraco enorme, sugando os que ali conferenciavam, ficando apenas o Capitão por estar muito bem agarrado a uma mangueira; de repente o buraco se fechou e não se teve mais notícia dos outros três.

  Acontece que não foi apenas na serra que se deu o esgarçamento do chão, mas em todo o povoado, de modo que tudo foi engolido num passe de mágica, com exceção de Matilde, que permanecia sentada à beira da calçada se desfazendo das madeixas acastanhadas. Foi nesse momento que o Capitão se engasgou com os tomates que supostamente lhe salvariam a vida. Matilde não tinha fome, não sentia saudades, não estava cansada, não pensava em ir a lugar nenhum. Desviou o olhar da poça de água e não viu mais nada. O povoado desaparecera, restando ainda o Capitão, que se batia todo na terra escura. Ter ou não cabelo naquele deserto perdeu o sentido, murmurou Matilde desconsolada e feia.

 

 

 

 

 

        

A jabuticabeira

 

Há muito discutiam para concretizar a venda do imóvel. A enorme casa ficava isolada na área alta da serra. A cidade mais próxima distanciava-se quase vinte quilômetros, e a estrada de piçarra, a única que dava acesso ao terreno da casa, não permitia condução de menor porte — o motor do automóvel que se aventurasse por aquelas bandas carecia de ser forte feito touro por causa das muitas ladeiras que se espalhavam confusamente em meio ao matagal. Havia nas imediações uma cachoeira que banhava dia e noite o ar fresco; suas águas corriam para um riacho ao lado da casa. Além disto, Horácio foi o que restou do passado.

Denise era a voz da discordância: não corroborava com a opinião do outro irmão, que achava não valer a insistência à idéia de sustentar uma situação que ao minguado olhar deixou de esmaltar as lembranças paternas. Fora naquela casa que tudo acontecera tempos atrás. Não havia esperança de que as coisas voltassem a ser como antes. Fervorosamente lembrado por Benedito, o mais velho de todos, quando se apossou de uma carta para anunciar que seu pai havia sido infeliz naquele lugar: "Necessitamos tirar esse estorvo de nossas vidas". Mas Denise não aceitava o fato de Benedito querer compreender tão amplamente seu pai do que ela própria, tampouco cria na insinuação do irmão de que a casa representava a gordura que se amoldava diariamente em suas veias, problema este que poderia levar a estropiar o coração. Ao contrário, pensava Denise, tudo aquilo fazia parte da história deles, e não se referia à posse ou assunto que o valha, mas entendia que a raiz que os unia e os mantinha vivos pertencia àquela jabuticabeira, ou vice-versa.

De repente, ainda bem meninos, o pai decidiu deixar a cidade para ir morar na mata. Em pouquíssimo tempo pediu o afastamento do cargo que exercia na pequena cidade de Manuaba do Norte. Era um respeitado e confortável Juiz de Direito. Muitos ficaram sem saber ao certo o que o levara a tomar tal decisão, de modo que permitiu muitas especulações rondando na boca do povo, que já era experiente em fuxicar na lama alheia. A bem da verdade, o isolamento foi provocado pela certeza de que o filho, que estava há quatro meses na barriga da mãe, viria à luz com uma deformidade irreversível nos membros superiores e inferiores. A tristeza de um filho assim só seria agravada permanecendo junto aos abutres de Manuaba do Norte. Se dissesse que não tinha ainda uma pitada de vergonha, seria uma profunda mentira. Foi pedido ao médico o máximo de discrição, não havendo qualquer problema neste sentido, pois o doutor era muito amigo do pai, a quem também lhe devia favores num caso de erro médico que foi parar nos tribunais. E o segredo seguiu guardado para o cume da serra.

Logicamente, a criançada seguiu os passos dos pais, que não tardaram em arrumar tudo para a viagem, mas sem atinar por que se enfurnaria naquele lugar tão cheio de nada. O verde cobria as colinas em forma de escudo. Dos três irmãos apenas Denise não estudava, por ser muito pequena, e a sensação de liberdade absoluta foi motivo de felicidade para Benedito e Armando — o mais velho. No entanto, compreenderam que a felicidade é fogo que se apaga com a revoada do mais simples vento. Com pouco tempo entraram no marasmo de dormir e levantar sempre ao cheiro de mato. Não havia ninguém por perto com quem dividir brincadeiras, compartilhar traquinices e jogar um futebolzinho, além do que apenas o pai é quem descia até a cidade, e isto para comprar mantimentos ou concretos outros de sobrevivência. Acostumados com uma temperatura acima dos trinta graus centígrados, o frio se mostrava intenso e constante, razão pela qual começavam a enjoar o clima, bem como todo o resto.

Aquilo que mais fazia companhia aos meninos era o choro da mãe, que acabava por se escorar no venturoso canto dos pássaros. Sob a desculpa de que a falta de barulho lhe causava angústia — palavra esta que nenhum dos três tinha vil conhecimento —, justificava a sua permanência pelos cantos da casa. Porém percebiam na mãe uma fraqueza que, de forma contraditória, ganhava corpo a cada dia. Outra situação estranha era a conversa mantida entre os pais, sempre na surdina, às escondidas e praticamente por meio de gestos. Armando foi eleito pela maioria o porta-voz dos outros dois para tentar entender, junto ao pai, o porquê do lagrimoso momento que, agora, todos viviam com intensidade.

Horácio, o caseiro que se realizava estudando a história conturbada dos gregos e era apaixonado por cartas de azar, foi visto por Armando, através de uma fresta da janela do quarto improvisado de biblioteca, durante a madrugada, quando todos pareciam estar debaixo de grossas mantas e de olhos cerrados, abrindo um pequeno buraco no meio de uma também pequena plantação de maxixe. Voltou-se, no entanto, à leitura que fazia de Monteiro Lobato. Nem certo barulho de vozes e pisadas apressadas o fez desviar outra vez das páginas infantis. O tempo avançado, entretanto, lhe concedeu o golpe de misericórdia: adormeceu sentado em uma cadeira de espaldar de palha, enquanto o livro se quedou escangalhado no chão.

Ficaram os três sob os cuidados de Horácio. Denise se recusou a tomar o desjejum sem a presença dos pais — preferia esperar o tempo que fosse necessário. Mas o pai somente retornou ao meio-dia do outro dia e Denise, neste longo espaço, já havia se empanturrado de carambola, manga e jabuticaba. Benedito aproveitou a ausência dos pais para aprender uns truques com a espingarda de cano longo do mestre Horácio. A violência, contudo, era uma prática reprovada de forma veemente por aqueles lados. E Armando, no quarto, permanecia na companhia de Lobato.

Todos correram ao encontro do jipe quando o barulho da descarga ecoou pelo portão. Havia na entrada, ao centro, uma enorme estrela de cimento posta no calçamento; dentro, uma bonita palmeira que fazia sombra à parte dianteira do automóvel quando estacionado. Em cima das três pontas da estrela, que se direcionavam para a casa, as crianças, na ponta dos pés, recebiam abraços mui carinhosos.

"A mamãe de vocês teve de ficar um pouquinho mais na cidade" — adiantou-se à ânsia dos imberbes.

Armando, de um pulo, escapou dos braços e das palavras do pai. Correu desenfreado por linha reta. Nesse momento, uma bandada de pardais sobrevoava a jabuticabeira. Ainda não havia reparado tamanha proximidade entre a vala aberta por Horácio e a árvore. Era possível enxergar pedaços de sua raiz saltando pela terra aberta. Armando desfez o caminho e foi se alojar novamente no quarto destinado aos livros.

Muitos anos haviam se passado quando Armando resolveu visitar o pai e a irmã. Encontrou aquele de joelhos no altar de alvenaria, que ficava na sala, rezando diante de uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, de quem era devoto, agarrado a um rosário. Benedito acabara de enviar um cartão-postal da Argentina, onde se formara advogado; casou com uma brasileira de nome Perfídia e estava relativamente com a vida azeitada. No cartão, por meio de letras abomináveis, tentava se desculpar pelo esquecimento do aniversário de Denise, coincidentemente o mesmo dia em que se chorava a morte da mãe. É bem verdade que outros planos e idéias perpassavam pela cabeça de Benedito — um homem refeito pela distância da dor —, mas nem quando o pai revelou que contraíra uma enfermidade rara e grave abandonou a insensatez. Armando, no entanto, se dignou a confortar o pai no momento delicado, mas não por muito tempo, já que não houve necessidade.

Foi a primeira vez que Armando viu Horácio chorando. Nunca imaginara um homem feito aquele banhado em lágrimas, principalmente porque ele era nascido do ventre do sertão. Armando, então, se deu conta de que havia mais do que uma mera cumplicidade no relacionamento de seu pai e Horácio: a amizade incomum cantou altaneira.

Benedito não apareceria, pensou Denise. Ficaram, portanto, tão-somente os dois velando o corpo em silêncio sob o olhar de Nossa Senhora da Conceição.

Armando abandonou a xícara de café e pediu licença para visitar os livros do pai, deixando Denise ao lado do homem de quem nunca se separou. Estavam lá todos os seus autores preferidos, inclusive Monteiro Lobato. Para ele tudo se restringia àquele quarto. Ali aprendera o necessário para sobreviver. No dia em que partiu jurou nunca pôr os pés novamente naquela casa, por alguma razão que desconhecia. Mas estava errado, murmurou. Aliás, percebeu, depois de anos, que jamais saíra de dentro daquele quarto: a visão de Horácio cavando o buraco perto da jabuticabeira lhe perseguia os pesadelos, tal como agora.

Voltou à sala; convidou Denise para um passeio até a cachoeira. Olharam para o pai pela última vez. Foi piedoso o instante em que passaram por Horácio, que esperava à porta.

          

 

 

 

 

 

A Baleia e o Caju

 

Lembro-me bem de que nos meus tempos de menino eram comuns os apelidos, principalmente no colégio; chamávamos de alcunha, mas não significavam que fossem mais ou menos nobres, eram tão ruins quanto. Não sei o porquê da cabeça ficar tão gasta com a idade — daqui a dois dias faço parte dos famigerados septuagenários. Velho é um tipo que ninguém quer por perto. Só servimos para enfastiar os nossos — que no meu caso não existem —, pedindo e caindo, caindo e pedindo, ou os dois juntos. Parece que temos prazer em escorregar, topar e se estatelar no chão do banheiro — volta e meia gritamos por socorro. Uso dentadura, não pela velhice, que em si justificaria, mas por ter batido a boca no bidê numa das vezes em que sucumbi diante da trabalheira que dá levantar e abotoar as calças depois das necessidades. Perdi praticamente a arcada dentária: sobrou-me um pivô. Fui obrigado a fazer o tratamento de modo particular, já que nunca possui um plano de saúde. Talvez para que eu morra mais cedo. Mas esta não é a questão. O fato é que sou sabedor do quanto representamos um estorvo — já vivi de um lado e agora me encontro do outro, e na reta final. Costumo, no entanto, me gabar aos jovens de que rezem para chegar à minha idade, pois da deles passei há muitos e muitos anos — é a única prosa que me resta. Anuncio ainda às imaturas criaturas: quanto mais velho estivermos, mais somos tidos por abobalhados, mais somos tratados como fantoches: não temos direitos e vontades e, mais, somos culpados por toda e qualquer bagunça espalhada pela casa, que jamais será a nossa — moraremos sempre de favor.

Hoje, pela manhã, encontrei na Livraria da Travessa a Baleia e o Caju. Casaram. Têm três filhos e moram num pequeno apartamento ao lado da lagoa da Pampulha. "Pequeno para tanta gente", disseram-me rindo. Há anos não tinha notícias dos meus colegas de ginásio e, agora, encontro logo de cara dois deles. Convidei-os para um café, afinal uma coincidência como aquela não se dava todos os dias. Nem ao menos tinha conhecimento de que moravam em Belo Horizonte. Preferimos uma mesa do lado de fora, pois o clima estava agradável, o que dizer: propício para um café bem quente e um cigarro. Nenhum dos dois fumava. Perguntei se era incômodo. "Não! Claro que não!", respondeu o Caju de forma cortês. Acendi meu cigarro e então me dei conta de que estava envolvido numa situação pra lá de complicada: não recordava os verdadeiros nomes da Baleia nem do Caju.        

Nunca fui bom com nomes e datas. Acho que algum trauma me deixou assim. Talvez um defeito de fabricação proveniente de um parto muito complicado. Sou aquariano: nasci em pleno sábado de carnaval. Meu pai nunca me perdoou por tê-lo feito passar aquele carnaval enfurnado num quarto de hospital fazendo companhia a minha mãe. Sem contar que seu desejo era o de ver uma menininha sendo arrancada do ventre da esposa, jamais um homem. E eu era este homem. Para piorar seu estado colérico, as marchinhas carnavalescas entravam pela janela, tão perfeitas como se tocadas no próprio quarto, trazidas pelo vento do final de tarde. Minha mãe certa vez me disse que foram os piores dias de sua vida ao lado do meu pai. Era impossível conter sua raiva e dissesse qualquer coisa ele tinha pronta uma frase grosseira na ponta da língua. Fui amaldiçoado abertamente por quem deveria ter me concedido o mínimo de carinho. Fazer o quê? Não escolhi o dia para despontar no mundo. Mesmo diante da insistência de minha mãe, depois de três dias é que meu pai se dignou a me pôr no colo, e apenas de forma breve. Era a tal da cervejinha que ele adorava que barrei. Segundo minha mãe, ele chegava a passar horas e horas, de braços cruzados, escorado à janela, bufando e, certamente, imaginando a esbórnia que tomava conta das ruas de Fortaleza. Ele mesmo achou por bem sequer tomar um ar fresco na porta do hospital com medo de não querer voltar. Ou melhor: querer voltar somente na quarta-feira de cinzas banhado de confete e serpentina. O acontecimento foi tão marcante que ele decidiu não ter mais filhos.

Isto tudo pode parecer uma grande bobagem. Sei que não há razão para associar a falta dos nomes dos dois colegas com o meu parto, mas, puxando pela memória, não consigo pensar em algo que tenha me causado mais sofrimento quanto no dia em que tomei conhecimento da razão pela qual cedo meu pai se encarregou de me despachar para estudar fora: o carnaval perdido. E não era coisa de gente normal esquecer pessoas que passaram por sua vida. Mas é importante dizer que ele não me queria em casa; não agüentava a minha presença; não sorvia a minha voz, portanto, com quatorze anos e meio fui parar na República Verdes Mares, na cidade de Ouro Preto.

Enquanto fazia um retrospecto, meus colegas estavam ali na minha frente esperando que lhes dissesse algo. Não sei por quanto tempo fiquei em silêncio, mas acho que o suficiente para acharem que eu havia ficado perturbado do juízo.

Foi então que tive uma grande idéia: perguntar quais os nomes dos filhos. Talvez tivessem feito uma homenagem a si próprios, coisa comum em gente cafona, como era o caso.

"O mais velho se chama Antônio. Tem treze anos. O do meio é o Francisco. Sem dúvida, o mais danado da família. Uma peste! E, por fim, Hilário. Todos são nomes de santo. Somos muito religiosos".

Pronto! A resposta foi um caminhão de água fria. Fiquei sem saber o que dizer. Tinha medo de que descobrissem que os conhecia tão-somente pelo apelido da época do colégio.

"Bonitos nomes", foi o que me restou falar antes de acender um novo cigarro para ganhar tempo.

"E você, Epaminondas, tem filhos?".

Piorou! O Caju gravara meu nome. O sem-pescoço, filho-da-mãe, depois de anos sabia como eu me chamava. Estava passando por um pesadelo. Maldita hora em que os encontrei.

"Não. Nada de filhos. Nada de casamentos" — respondi. "Infelizmente, o destino não seguiu o curso que eu esperava".

Notei uma expressão de pena no rosto da Baleia. Devia estar imaginando como era possível que ela, uma gorda deformada, tivesse arranjado um casamento e eu, que sempre fui pintoso e de bom papo, não. Aliás, não sei o quê o Caju viu nesse trambolho. Ela já era imensa no colégio e todos tiravam sarro da Baleia. Vestia-se como homem, pois não havia vestido que a deixasse apresentável, ou seja, tinha de recorrer à calça e à camiseta para fora por causa da massa adiposa. O sorriso dela, que me parecia pra lá de insosso, começava a me incomodar. Já não tinha mais idade para ficar dando satisfações da minha vida para ninguém e para aceitar que sentissem piedade de mim, ainda mais em se tratando de quase estranhos.

"O que estão fazendo profissionalmente?", perguntei para encerrar o mal-estar, no entanto notei que o Caju ficou esperando algo, como se para minha pergunta eu não tivesse empregado o ponto final. Queria seu nome. O Caju esperava que eu dissesse o seu nome.

"Epaminondas, fazemos parte de um grupo de teatro. Somos atores de peças cômicas".

Agora foi a vez de a Baleia me chamar pelo nome. Era um verdadeiro complô contra um sujeito que teve uma infância terrível. Não lembrar do nome não era pecado. Conheci-lhes o rosto e sei dos apelidos, era mais do que suficiente. Mas esta argumentação era a tal com a qual eu tentava justificar uma grave indelicadeza. O problema é que não me ocorria nada na memória que os fizessem surgir mesmo que vagamente com a graça de batismo.

"Vamos pedir outro café?", quis saber o Caju, já se virando para chamar o garçom. Teve de usar todo o corpo, pois lhe faltava o pescoço, daí o apelido. Só tinha a cabeça e o corpo.

A bem da verdade, não queria outro café nem coisa alguma, senão ir embora. Pensei em ensaiar uma despedida, mas o garçom veio rápido com os três cafés.

"E você, Epaminondas, está trabalhando com o quê?", perguntou-me o Caju.

"Estou aposentado. Agora me ocupo escrevendo umas besteirinhas e publicando num jornaleco de periferia. Dá apenas uns trocados para dois livros por mês".

Não sei por que tenho a mania de falar demais. Talvez isto ajudasse nas reclamações de meu pai em ouvir minha voz. Poderia ter-lhes dito uma mentira, a fim de que achassem que eu estava bem de vida. Ajudaria a apagar a má impressão por não ter constituído uma família. Mas não, o tolo aqui praticamente falou que recebia uma aposentadoria merreca e que trabalhava praticamente de favor para um pobre jornal. Ou seja, denegriu a própria imagem, por mais que não tenha tido grande esforço para construí-la.

Olhei para os dois e cheguei à conclusão de que há no mundo alguém destinado a você. É inimaginável pensar a vida como um completo vazio, sem ter com quem repartir as dores e as alegrias. Deus é testemunha de tudo aquilo que passei para chegar aos setenta anos. Não fui uma pessoa ruim, tampouco fui lisonjeiro com as mulheres as quais me deitei. Sempre considerei a mulher como um objeto na prateleira exposto à venda. Nunca me apaixonei, por isso não compreendo o sentimento do Caju, que não é um homem feio, para com a Baleia, que é mais horrorosa do que bater em mãe. Sinceramente — não omito —, o errado sou eu por não ter amado, mas não faria diferente caso tivesse uma chance hoje mesmo. É a natureza da gente — uma página do livro que não sofre alterações a cada nova edição. Só gostaria de lembrar o nome desse casal nojento. Fico pensando os dois deitados numa cama de motel. É de embrulhar o estômago.

Não tinha mais o que dizer. Meu pai surge novamente nas minhas lembranças. Agora de quando estava perto de morrer. Foi surpreendido com um princípio de infarto e imediatamente sedado e encaminhado ao hospital. Peguei o primeiro avião e voltei, depois de todos os anos, a Fortaleza. Não pretendia me demorar. O táxi me deixou na porta do hospital. Desta vez, era eu quem perdia o carnaval. Meu pai faleceu dois dias depois, na segunda-feira de carnaval. As últimas palavras conscientes que ele pronunciou, ao acordar e perceber que estava completamente nu, foram: "Não sou nem jumento para andar nu!", e aquilo me fez rir na frente do Caju e da Baleia, que nada entenderam. Mais uma vez percebi suas expressões indicativas de me acharem um verdadeiro louco. Mesmo contra a minha vontade, disse:

"Depois de amanhã faço setenta anos. Vou comemorar num restaurante japonês perto da minha casa. Seria uma honra contar com a presença de vocês".

"Mas que maravilha! O grande Epaminondas fará setentão! Não perderíamos por nada!", falou extasiado o Caju.

Pedi licença. Aleguei ir ao banheiro, mas acabei saindo pela outra entrada da Livraria Travessa, na condição de fugitivo, sem sequer ter dito o endereço do restaurante.

 

 

 

 

Mendes Júnior (Sobral-CE). Advogado, contista e cronista. Autor de O engraxate e outros suicidas (contos, Expressão Gráfica, 2007). Selecionado em concursos literários nacionais e internacionais. Publicações em jornais e revistas especializadas. Edita o blogue Literatura e Cultura.