POR HOJE PALAVRAS SÃO TIJOLOS, BEIJOS SÃO ARMAS

 

Estou na janela

esperando

que a boca se desgrude desse cigarro para que eu possa

saltar em direção ao porre de araque

no qual sempre me encontro.

A desistência madura que é

a morte prematura.

Saltar pelo simples prazer da despedida

ainda que seja apenas

do alto de uma construção poética.

 

 

 

 

 

PENAS

 

Injeto naftalina em meus neurônios

a sua voz se torna fraca.

Trompete das horas perdidas

seu amor é uma falácia,

fantoches que procuram a própria sombra

em um quarto escuro, sem luzes ligadas.

Contudo,

sou ainda o pardal perverso que inventa

minúcias

com os dedos íntimos em suas axilas.

 

Preciso chorar.

A fome é alta

e a angústia é única.

 

 

 

 

 

COBERTA DO INVISÍVEL

 

 

O amor e tua fome

hálito de cereja que apodrece no cesto

impossibilidades

que norteiam outros caminhos possíveis

aquilo que não vai, aquele que não volta

a coluna ereta do indizível

e a flecha frágil do improvável

 

O amor e teu nome

trajetórias irmãs, invenções complexas

enquanto a aranha secreta e corpulenta do desejo

derruba seu vaso de flores sobre mim.

A água escorre, lenta e eficaz,

e eu fico a precisar, necessitando

de um longo rio que me seque...

 

O passado, teu nome.

O futuro terá sua fome?

 

 

 

 

 

É PENA QUASE NÃO PODER CONTAR

 

Passando pela porta da frente

suspirei de saudade

pêlos e cabelos grudaram todos no meu corpo

atravessei a portaria feito um lobo

os seios soltos sob a blusa fluida

denunciavam minha aflição

a tarde tocava um jazz para mim

e finalmente pude compreender

que nada

daquilo

podia mesmo

estar existindo...

Eu engoli

o ar tóxico daquele instante

bebi da neve muda

meus lábios sangraram com o frio

você continuava jazendo imóvel sobre a mesa crua

onde também estavam mortas

minhas certezas

e memórias todas

 

frutos de um jogo esquecido

nós dois

nos perdemos

sombras felizes por entre as cinzas

 

sombras felizes por entre as cinzas.

 

 

 

 

 

BEM-VINDO O AMARGO FARDO

 

Devorando seu momento de ouro puro

bebê que engole das fontes de fantasmas

minha história será outra

pinturas descortinadas

minha nova respiração introduz-se magnética

e resoluta

não carrego todo o alívio

mas alivio um pouco as costas

o mundo agora pode girar

em outros continentes contidos

nas escovas de dentes reunidas

aquele café derramado no carpete da sala

minhas lágrimas secam

aparente moldura neutra de máscara

pura, que sorri, não menos transparente

que os olhos

quebrados por ti.

 

Amacio a lâmina.

Oh, o corte será doce.
 
 
 
 

NOVELA MEXICANA

 

A tristeza me embriaga

tal qual uma porrada,

ou uma lambida bem dada

na nuca,

aroma de lua espedaçada,

um tapa

desferido na alma lavada.

A tristeza me fortalece

para encontrar meus iguais nessa esquina

por onde sempre ando sozinha,

areais de poesias feitas com as unhas

cravadas na pele mansa.

A tristeza me emociona

tal qual uma atriz de novela mexicana,

simplesmente porque ela pode, inclusive,

não ser sincera

mas ela não esconde

que seu maior desejo

é me convencer...

 

Estou andando de lado

tenho medo de ver as pessoas e enxergar-me nelas todas,

fragmentos de um caleidoscópio perdido na infância.

É mais fácil fingir que caminho apenas acima

tal qual a atriz canastrona,

entregando de bandeja as suas falhas

mas dormindo maquiada para não correr o risco de acordar

limpa

e ver que a realidade pode desejar ser verdade

por entre as linhas deste poema

 

 

 

 

 

VELA POR MIM

 

Só eu sei

que gosto tem aquele amanhecer de mãos.

Discórdias à parte,

a semente foi lançada,

estou ao vento.

Arremessando borboletas

contra uma parede de aço.

A sonoridade daquele passo adiante

me fortalece

pés que pisam a fumaça fumegante

que escorre etérea dos braços dados

na imaginação, por conseguinte...

Cada tropeço

cada queda

sobre a neve que alivia

todas essas impurezas com seu silêncio.

Paraísos invisíveis. Indivisíveis.

Supostas razões

para o acaso virar certeza.

 

Não tenho mais olhos.

Meu corpo agora enxerga

apenas

através de batimentos cardíacos.

 

 

 

 

 

ROTEIRO DE SINESTESIA

 

Despertei agonizada.

Brotei com olhos de violeta.

Cerejas azuis caíam como lágrimas

das minhas muitas mãos abertas, implorando

por aquele sim de ontem.

Mas não,

foi miragem.

Ninguém teria razões para sorrir por aquela noite.

O dia nasceu antes mesmo que eu acreditasse

na languidez crua desses olhos terra escura.

Eu poderia coar um café em suas pálpebras,

permitindo que o aroma desenhasse promiscuidades;

mas renasceria chorando,

como quem tentasse conter um espirro

de prazer ou náusea.

 

Vou fumar o último cigarro.

Ainda existem pomares inteiros

para morrer em nome da minha agonia.

 

 

 

 

 

NARRATIVA DE UMA TRAGÉDIA IMINENTE NADA EMINENTE

 

Um fio de glória partida

escorre pelas minhas pernas abaixo

tudo foi experiência

e um pouco de calma

e um pouco de ânsia

 

Na hora de dispensar o fino trato

e afiar a lâmina

eu aumentei a corda

de quem gostaria tanto de se conter,

vedei as chamas, mas forrei as camas

para os olhos alheios de quem queria sentir,

feri à pluma

tudo de aparência rutilante e fria,

brilho luminoso e lúcido

de cobra que salta sobre o pescoço daqueles

que chegam a achar que nada têm

a esconder

 

um começo, por onde normalmente

todas as outras

pessoas terminam.

 

Nada vai parar essa violência

sangue puro cor de algodão-doce

que sai de mim até você

assim

tão levemente.
 
 
 

DAQUELE JEITO

 

Acordei imergida da janela daquele carro

olhando na vitrine, paisagens de vidas que nunca tive antes

e contou a experiência

na hora de dar o alarme de regresso.

Tive de banir meu exército,

bater em retirada pelos campos abertos das palavras,

meu único

e verdadeiro

refúgio

contra todas as derrotas

 

sou uma refugiada de minha própria indecência.

Acabou-se tudo.

Vamos molhar as plantas que crescem, desesperadas

pelas lembranças afora...

as ruas ainda estarão calçadas, não resta dúvida,

mas convém calçar também os tapas de luva

antes de entrar no terreno minado das minhas conquistas

há um muro atrás daquela dobra de pele, aquele perfume

ainda me perturba

 

 

 

 

 

O VAZIO NO CANTO ESQUERDO

 

Vamos evitar o silêncio imposto pelas horas

quero ignorar essa barata que sobrevoa

nosso apartamento de um quarto

muito embora eu ainda saiba

que terei de dividir a cama

com venenos, dúvidas e abelhas.

Abrir a caixa que queria contê-las

e soltar meus berros por um pouco mais de tempo

implorando

por um passado que volte

a ter a cor de veludo de uma pele ferida.

 

A noite ameniza

os erros que cometemos de dia.

Mas quem poderá esconder

a fome que sinto quando a Lua está a postos?

 

 

 

 

 

MEMORIAL

 

Vejo poses usadas

como formas antiquadas de vida

antecessoras

de um poema chulo que nunca termina

Sou a piada

presa entre os lábios da loira

a música idiota e pretensiosa

do sonho de homens sujos e covardes

Sou ridícula

feito uma fábula na qual a moral

é não contar com a própria identidade

 

O que foi que fiz?

Estou morando por alguns dias

nas latrinas esvaziadas das minhas vidas passadas,

desculpem-me se a oportunidade não é nada oportuna

para ser a intrusa que você não esperava

diante da porta segura que continha

a surpresa que hoje queima seus olhos.

Sim, somos, com orgulho,

fragmentos completos

dos ossos frágeis de nosso fracasso.

 

Respiro fundo.

Observo os gestos do passado.

Eles são mesmo

memoriais de certezas esquecidas.

 

 

 

 

 

ROUPA LAVADA

 

Meu esforço está sendo em vão

os pratos estão

caindo todos

eu não pude equilibrar

os copos todos cheios também

das minhas tempestades inteiras

as mesas quebradas

no chão estão as cadeiras

mal consigo segurar na mão

esta lapiseira

meu estômago cheio de pântanos

o sangue saturado

razão contaminada

como a água que escorre

do teu rosto

na cabeça

não cabem mais

as boas maneiras

como se faz

para se dar bom dia

ao dia inteiro

os cacos esparramados no chão

mãos que tentam conter

os morangos que apodrecem

na geladeira

meus filhos esperam tolos

presos no ventre vazio

teus poemas

esperam cálidos

que eu faça alguma coisa

o velório daquela tia

ainda é hoje

de tarde

eu voltarei

para a juventude

vou comprar uma vitrola antiga

botar nela

todos os receios

para tocar

agora

foram as roupas que se rasgaram

deus meu, os livros também

estão soltando todas as páginas

acho que vou

voltar

na padaria

comprar um novo coração para mim

quem sabe uma nova forma de bater

não espanca

a aspereza

de nunca se ter certeza.

 
 
 
(imagens ©malvinka)
 

 

Lucianne Menoli. (Belo Horizonte/MG, 1980). Atriz, professora de dança, escritora, inédita em livro. Edita os blogues Um passo para a mediocridade e Ares Exteriores. Escreve resenhas sobre filmes e música no Armadilha Poética.