©image source pink
 
 
 
 
 
 

 

 

Explicação do Fato dá continuidade e consistência ao trabalho textual de Adriana Versiani. Neste, mantêm-se as especificidades detectáveis em A física dos Beatles e em Conto dos dias. A autora é fidedigna ao labor de sua ficção.

O que mais identifica esse labor ficcional é a linguagem. Não uma linguagem comum, tautológica, mas uma linguagem criativa, que se questiona no ato da criação até exaurir-se em metalinguagem.

No desdobrar-se sobre si mesma, Versiani estabelece relações de proximidade, semelhança e ruptura entre palavras. Dessa intenção advêm sentidos inusitados para textos que parecem urdir enigmas, fluxos velados a exigir acuidade de leitura.

A mudança é a marca da escrita veloz de Versiani. Explicação do fato é um conto-enigma / poema que em muito remete à Clarice Lispector, de modo especial ao conto "Amor", de Laços de Família. O texto intercala situações poéticas, realistas, metafísicas, existencialistas concomitantes e esse enovelamento é construído / desconstruído permitindo ao leitor alinhavar pistas do que se passa atrás do pensamento. O que passou se prolonga no presente sob nova situação de vivência. Mas nunca é igual em nada.

Tudo leva à impossibilidade de representação do real. Sujeito e objeto são cingidos em detrimento da individuação personificada. Não se sabe a priori se há um acidente com o homem do pregão, se com uma ciclista, ou por essa provocado, ou pela passagem de um "cego que vê" (como no conto lispectoriano), pois em qualquer dos casos das conjecturas o que ocorre é mimese de linguagem. Mais: em slow motion. Ou se tudo não passa de um reflexo do espelho da consciência-memória, o que torna o texto ainda mais intrigante.

Nas três causas apresentadas — medo da morte, incerteza em relação ao futuro e falta de equilíbrio nas relações afetivas — a explicação do fato se dá pela repercussão no indivíduo, no sujeito desmontável, se é que ele existe além de pre-texto.

A autora apresenta conclusões para justificar o acidente ocorrido — se é que houve de fato um acidente — através de fluxos de consciência. Um deles é o filtro da realidade pela consciência de solidão na pós-modernidade: O universo se sente só – Os outros, (...) aguardamos resignados cada qual com sua solidão.

Há um tempo psicológico perpassando o texto, em meio à fragmentação, sequência e descontinuidade do enredo, com a valorização do espaço exterior. Nesse sentido (do verbo sentir), Versiani faz um questionamento do ser e do estar no mundo. Decorre desse construir / desconstruir a tendência intimista assumida pela autora, o pensar por introspecção, do qual o monólogo é também decorrência.

O tempo é imanente à linguagem de Adriana Versiani. Ele parece querer exprimir o desejo de transcender a vida e ultrapassar a morte, no afã de perenidade, colando um excerto sintomático de S. Romério-Buj.

Súbito, o(a) leitor(a) depara-se com uma criativa (des)construção intervencionista no con-texto de Explicação do Fato na qual os três tempos reais da existência se anulam na medida em que as vozes da alteridade se presentificam em episódios históricos que tanto podem ter realmente existido intertextualmente, como podem apenas relatar um delírio por carência. O desdobramento temporal (de) compõe um jogo de cenas onde coabitam conflitos pessoais e de linguagem, em que afirmação/anulação deixa em suspenso e na incerteza o ser-estar da relação (im)possível pós-moderna:

 

Amo-te, homem transparente

Ama um homem transparente

Amava um homem transparente (...)

Sou para ti segredo que não queres escutar

É para ele segredo que não queria escutar

Foi para ele segredo que não queria escutar (...)

Afagas minha alma e circulas por artérias, veias e paredes úmidas

Afaga sua alma e circula por artérias, veias e paredes úmidas

Afagava sua alma e circulava por artérias, veias e paredes úmidas.

 

Há um (anti) eu-lírico latente na narrativa de Explicação do Fato afeito a memórias agregadas não só a lembranças, mas à razão de ser e de estar do relato. É através do fato da recordação, das reminiscências narradas e referidas que são expostos os transes de afetividade como "a própria possibilidade de ser do mundo, o próprio momento gerador  cujas conseqüências se vêem no mundo presente, este mundo visível em que vivemos". E, no caso de Adriana Versiani, com o dizer de Rosenbaum, a evocação lírica terá papel preponderante nessa poesia [ou proesia, ou conto, ou narrativa — intervenção minha] que acena ao passado. Vividamente presente, o sujeito lírico eleva sua matéria a assunto poético e faz da poesia [ou do conto, da narrativa] uma inusitada terapêutica. Bem a propósito, aliás, o desfecho de Explicação do Fato: Hoje em dia, disse-me ele, há remédio para quase tudo.

O procedimento da liricidade versiânica emerge da necessidade de origens sólidas, do atavismo, de memórias cristalizadas como sendo referências. Desde uma mãe, centro da terra (...) centro de tudo, à raiz de uma sequóia gigante (...), ideogramas chineses, (...) de um homem velho que me olha com ternura. Essas referências são pilares existenciais, sinapses de vivências das memórias, essências livres do ilusionismo do espelho: ...eu percebia o tempo modificando a imagem refletida no espelho — o homem transparente/incandescente/invisível visto através do espelho (...) — escravizado pela alma que habita esse espelho.

São também essas referências primazes "fósseis imaginários do jardim edênico de nosso psiquismo" (Raiff Magno). Por isso, "trabalhar com nossa memória é problematizar fatos e experiências individuais e coletivas que nos produziram enquanto seres sociais e culturais".

A problematização experencial no texto de Adriana Versiani neste livro se dá em três instâncias epistêmico-poéticas e/ou ficcionais: através de um pensar a dor, de um olhar líber(t)ador e de um idílio hedonista-erótico. As estratégias narrativas da autora, de incorporação e de deslocamento de realidades/ficções, convergem para um mesmo foco — o corpo, problema da dor e do prazer que legitima a linguagem.

À dor agregam o medo, o chiaroscuro, a incerteza, o sentimento "escravo" da memória trieb, a razão de um embate existencial, o espelho da alteridade:

 

Sua letra tocaia no beco escuro (...)

Buscou-me a escuridão do espaço e extirpou-se toda razão(...)

...ira do corpo contra a criatura...(...)

Placebo quando não há morfina e o coração vacila e o corpo flutua e a

         nostalgia da dor inicia a cura (...)

Triste é quando dói no osso (...)

Dói tudo quando se desloca, mas ninguém sabe o que é

Os outros, não nos importamos mais com o amor,

Os outros, sentimos medo enquanto o sangue dos eleitos seca e amarela o

chão (...)

...escura a sua falta.

        

Essa leitura do tempo imobilizado bate de conforme à análise de Simic em Ensaios e memórias: "Como uma estrutura híbrida, inacabada, impura, aberta para o enigmático Outro, bem como agonizante na sua ligação necessária com o contexto sócio-histórico" pós-moderno.

Há um devaneio erótico pulsante nessa écriture derridariana incorporada pela liricidade, cujo valor está em saborear a inventiva poética da autora:

 

...tomou-me pela cintura e manteve-me suspensa (...)

Nossas pálpebras tremeram em suave sintonia e seu olhar pousou sobre os

          meus lábios que formigavam.

Essa noite você, calor do vento, entrou pela janela e soprou seu hálito

quente em mim. Umedeci.

Corpo continente esparramado no tapete.

Mordo a carne da sua boca. Seu sexo pêndulo.

Mergulho. (...) Sinto falta de você que não existe. (...)

Mordo a boca, molho os lábios, tremo, enquanto sonho com você que não

existe. (...)

Teus grandes olhos enxergam-me por dentro (...).

 

Tudo se passa (nos três tempos da narrativa ou da (des)construção do poema/conto, como se se pudesse perquirir com Stephan Baumgärtel: "Transferida para o interesse erótico, a tentativa de fazer o tempo parar aparece como a antiga problemática de como descrever uma experiência erótica desestabilizadora com palavras socialmente estabelecidas. A problemática estética remete a um problema ético: como descrever, e portanto fixar e controlar um objeto ou uma pessoa que mostrou a sua capacidade de subjugar o eu lírico e deslocá-lo(a) para um campo fora de si? Como pode um eu lírico inventar e fixar uma retórica erótica que subverte o eu observador, bem como o colocar num estado liminal entre discurso e a linguagem como experiência inteligível e tradicional, convenção mecanizada e êxtase (experiência única e enigmática, não contornável pela linguagem)? Que forma retórica poderia oferecer tal prazer num contexto contemporâneo?"

Com certeza: a de Adriana Versiani, e a de Adalgisa Botelho de Mendonça, se tivesse insistido para além do seu pioneiramente pós-moderno Imagem do Impossível.

Adriana Versiani tem empatia confessa por Ana Cristina César no que tange a um "intimismo confessional", a uma "construção de cenários para uma pluralidade de eus" nos quais são acionados "o fingir de uma intimidade e uma confissão cúmplices do eu poético como uma ficção, distanciando-se da visão do eu lírico, sugestivo de emoção e proximidade, propondo, na leitura, a atividade do pensar como se esta precedesse a atividade do sentir", analisa Iza Quelhas na autora de A Teus Pés.

É então que entra em cena o "olho que pensa" como elemento visceral na estrutura da linguagem versiânica, como rasura do vler — o ato da nomeação com interpretação que se re renova a cada novo olhar:

 

Olha o amoladooooorrrrr (...)

Disparo o olhar para todos os lados (...)

...seu olhar pousou sobre meus lábios (...)

A princípio enxerguei apenas um cavalheiro...(...)

Vejo estes morcegos e peixes albinos (...)

Com que cor fere os olhos das potestades e move os corpo dos que sonham

(...)

E da minha janela eu enxergava a janela da casa no outro lado da rua (...) Nos dias de chuva, eu olhava a janela por onde ele olhava a chuva e sentia esquentar meu corpo (...)

Posso vê-lo através do espelho (...)

Palavra coisa, derrame nos olhos cegos (...)

Penso você enquanto olhos (...)

Teu olhar tem encantos como essa pedra (...)

O vento sopra por trás e eu sou o vento através do teu olhar (...)

Alma do espelho, portal do teu olhar (...)

Esse teu olhar (...)

O cego vê (...)

Eles recebem as bênçãos e o espinho com o qual furam os olhos para alcançarem a luz (...).

        

Decorrente dessa semiótica visual, o desdobramento luzidio da nomeação que desvela imagens, alusões, coisas, outros, intimidades, contrastes em oposição ao opaco da subjetivação:

 

É um cacto gorducho com flores cor-de-rosa (...)

...sobre o sol enquanto ainda dia como se fosse um tecido fino, translúcido,

diáfano (...)

Sucumbimos ao azul, enquanto lacrimejávamos (...)

O meu: lilás (...)

Escura a sua falta (...)

O toque dos seus lábios no branco lírio desse mármore (...)

...sentia esquentar meu corpo sob o vestido de seda branca (...)

Reconheço o relevo sob a luz que os vaga-lumes me permitem (...)

Imploro luz dentro do verso (...)

Fogo, língua vermelha... (...)

Imagem: luzes rápidas percorrendo o céu (...)

Deus vos proteja, pois escrevo enquanto vejo (...)

Os eleitos, perfilados, vestem branco e têm uma rosa tatuada na palma da

mão (...)

 

O olhar perscrutador de Adriana Versiani, na esteira de Jonathan Culler, "dramatiza pensamentos e sentimentos" num estado de estesia.      

Explicação de Fato tem atmosfera onírica, não raro com inserções surrealíricas. A liricidade, a propósito, é contundente no texto, a justificar a revalorização das palavras em situações de frases, versos, proesia, ficção. Donde a presença profusa de tropos (de similaridade e contigüidade), figuras de palavras, de construção, de dicção.

São várias as construções com o uso da anáfora: Queria inscrever esse roteiro... – Queria inscrevê-lo... – Queria esse roteiro; Amo-te, homem transparente / incandescente / invisível; Odeio-te, homem transparente / incandescente / invisível; Trabalha coração / pulmão / rim / pele. Os outros não sabemos / não nos importamos / não sentimos medo...

Há também paliologia (Deus nos proteja, pois...); símbolo mítico, como o de Sísifo (Desperta a percepção e retorna a pedra ao topo da montanha); dialoguismo (E eu: - então use essa agonia... – E ela: não consigo mover os dedos); acumulação (O meu: lilás, concêntrico, regido por orixás – O seu: príncipe delirante, ladrão de cavalos...O nosso: lago flutuante...) além do mote que costura os desdobramentos: Porque sempre houve o que assombra; dubitação (Monarck amarela... eu acho – Fustão azul...eu acho – invisíveis... eu acho; Talvez os amigos dele lessem... Talvez inscrevê-lo no teto desta cela...).

Explicação do Fato é construído/descontruído como uma colcha de retalhos: séries frasais se interpõem e contrapõem num texto-movimento de permanente mudança, em que a autora vê-se ante o impasse da incerteza contemporânea. Um conto-poema, um poema metaficcional relacionando a alteridade consigo mesma (os outros), com muito lirismo renovado na anti-lírica e em mais um inteligente exercício de atavismo familiar com  seu memorialismo existencial, tão comum à linguagem de Adriana Versiani.

 

 

Leia em Germina

Explicação do Fato, de Adriana Versiani

 

 

 

 

março, 2008

 

 

 

 

 

Márcio Almeida. Mestre em Literatura, jornalista, poeta, criador do Movimento de Resgate do Autor Inédito e Anônimo de Oliveira. Autor de 39 publicações, detentor de dezenas de prêmios literários, membro efetivo da Comissão Mineira de Folclore.

 

Mais Márcio Almeida em Germina

> Poema

> Books Online: Foolturo