Este romance de Adriana Lisboa, Um Beijo de Colombina (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2003), é a manifestação de uma aventura. Esta cerimônia da fala, da busca, nos intervalos entre tentar saber e ver-se só, encerra significados bem mais profundos como a harmonia, o respeito, a pureza e a tranqüilidade — elementos presentes no entrosamento gestual e na estética da montagem, primeiro de um quebra-cabeça que não se completa, e nos utensílios para se salvar do afogamento. Trata-se também de uma obra crítica, em que confluem perversão que perpassa as relações humanas, a perenidade do trágico, que atravessa os encontros amorosos, e a nobreza de espírito que ressurge, sutil, nos elementos da narrativa. Relembrar o enredo é sempre um bom começo.

Neste livro, o passado recente desperta sentimentos conflituosos que aparecem numa certa obsessão pelo mundo feminino, pela sexualidade humana e pelo tema da morte, que rende antológicas descrições de encontros sensuais, com toques de fantasia, rememoração, inefabilidade do desejo e tragédia pessoal.

Evidencia-se um prazer na manipulação das palavras. Um sentimento de fragilidade angustia os protagonistas. Fragilidade diante de si mesmos, de sentimentos convertidos em obsessões paralisantes, e fragilidade diante do acaso que afeta suas vidas apesar do que eles possam desejar. Assim mesmo, a delicadeza aqui parece definir a própria existência dos personagens, que tentam conviver num estado poético que eles sabem que vai durar pouco, já que esse estado produz-se, sobretudo, em alternâncias.

Nesses interstícios entre o dito e o não-dito, estabelece-se um silêncio, silêncio propiciador de situações existenciais com que nos defrontamos no dia-a-dia da cidade grande, no caso, o Rio de Janeiro. Utilizo aqui o texto "A palavra no abismo", do livro O Silêncio Primordial (Tradução de Eric Nepomuceno e Luís Carlos Cabral, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, RJ, 2003), de Santiago Kovadloff, instalando-me neste diálogo entre personagens de um romance e os poemas de Manuel Bandeira: há uma busca de encontro entre silêncio e fala, encontro e desencontro, e o elo que tenta ligar todas essas vidas, de papel ou não, seria a palavra que acolhe o silêncio, palavra que não se funda em um ato voluntário, mas que é, ao contrário, fruto de um arrebatamento, por exemplo: "a primeira vez que vi Teresa...", ou no próprio texto de Adriana Lisboa: "as pequenas pevides aguardavam, pequenas promessas prontas a explodir" (p. 14). Mas essas promessas não explodem, é como se existisse uma imagem sem forma na qual o homem pudesse contemplar-se sem se ver. É a do silêncio primordial. Há um momento, no início do primeiro capítulo, em que o narrador, ao abrir o livro de Teresa, que era um livro de poemas de Manuel Bandeira, lê: "dentro de ti, em pequenas pevides, palpita a vida prodigiosa, infinitamente" (...) "mas não explodiam: seguiam sendo promessas, simples promessas de outra maçã dentro daquela maçã, como as bonecas russas que vão saindo umas de dentro das outras. Como as pessoas que somos, e que vão saindo umas de dentro das outras ao longo dos anos. Ao longo das horas" (p. 14).

Entre tantos textos, pois este romance é feito de textos, de personagens já criados nos poemas de Manuel Bandeira, entre tantas partes e pedaços, algo nos remete ao Aleph, de Borges, em que ele diz: "alguma coisa reunirei", após advertir que "o problema central é irresolúvel; a enumeração sequer parcial de um conjunto infinito". O romance se faz de sobras repletas, de restos, e o resto é silêncio. O silêncio acabado do inefável. Este algo reunido seria o poético, que entendo como a qualidade da inteligência que sabe dizer as coisas.

A escrita de Adriana Lisboa, que já foi definida como uma prosa poética, é sempre atravessada por uma alta tensão emocional. Parece movida por momentos de comoção, de insights e epifanias que as palavras não chegam a expressar por inteiro. A linguagem se torna uma indicação de algo que está além dela, e que a autora, assim como o leitor, apenas entrevê ocasionalmente. Adriana evita o grandioso e o monumental, mas confere à beleza e à sabedoria que extrai do miúdo um ar de profundidade. Nada é banal, ou melhor, a distinção entre banal e extraordinário perde sentido no livro, porque tudo nele parece de alguma maneira significativo. "Se a gente não mata as epifanias elas nos matam..." (do romance Rakushisha). O livro é antes de tudo uma exploração da insatisfação, da incompletude que define o ser humano e o artista: "Refazer um trajeto significa anotar-se no mundo. Deixar uma pegada, uma bandeira. Refazer um trajeto escava a cicatriz da passagem. Não é apenas o descompromisso da mão única." (Idem). E assim, Deus, amada, movimento, zero, real, metáfora ou melodia não são outra coisa além de maneiras intransferíveis, mas equiparáveis, de registrar uma emoção partilhada: a do inconcebível (O Silêncio Primordial, p. 13).

Em Um beijo de Colombina, conta-se a história de um jovem professor de latim que tenta entender a morte, tão inesperada quanto misteriosa, da namorada, Teresa, que morreu afogada no litoral fluminense. Valendo-se do recurso à metalinguagem (uma das interpretações possíveis é a de que se lê um romance ao mesmo tempo em que está sendo escrito), a obra dialoga com a lírica de Manuel Bandeira — cada poema recebe um título de poema do livro Estrela da Vida Inteira. Narrado em primeira pessoa, a misteriosa e ambígua história — Teresa é bissexual, seu corpo não é encontrado, e depois de sua morte ela, que era uma escritora promissora, atinge a consagração —, o texto consegue a proeza de conceder jeito de poesia a uma prosa que é contemporânea, sem que isso signifique fazer concessão à precisão e à elegância da frase. "Queria fazer na ficção o que Bandeira fez na poesia: ser de uma simplicidade cheia de emoção, mas sem transbordar", afirma a autora, explicando que Um Beijo de Colombina representou um exercício de contenção e essencialidade. Perguntada por que escreve — uma das questões feitas à escritora-personagem — Adriana cita José Saramago, ao responder à mesma pergunta: "Já perguntaram a um pássaro por que ele canta?".

Ainda na página 14, de um romance de 138 páginas, ficamos sabendo, num único parágrafo: "No dia seguinte, Teresa morreu". No próximo, separado por um espaçamento maior que o normal do texto, temos: "Uma simples sexta-feira do mês de maio. Depois tudo se tornou difuso, confuso, absurdo até". E o narrador conta de sua profissão, um professor de latim, uma língua morta, e cita em latim: Quem aprende uma arte, que nela se exerça. Viver é uma arte, lugar tão comum, e é nela que exercemos. Para essa personagem de papel, que achava que tudo aquilo parecia uma música de Tom Jobim, a interrogação é instalada: "E por que é que eu também não fui feliz? Bobagem achar que a vida cabe num verso, cabe no bolso, cabe no espaço que sobra entre dois corpos quando nenhum espaço parece separá-los" (p. 15). O silêncio extremo (aqui a falta de respostas) comprova, de qualquer uma das vertentes adotadas para a sua abordagem, que a subjetividade encontra nele seu solo radical (S. P.  p 14).

Então, para terminar este primeiro capítulo, mudando um pouco a ordem, ele diz: "a primeira vez que vi Teresa, reparei nas pernas, oito meses e hoje já aprendi a relativizar o tempo. Bobagem achar que o tempo cabe no tempo", e, parágrafo final: "Quando Teresa morreu, pus para tocar o Réquiem de Stravinski. Foi o enterro dela, porque não chegaram a encontrar o corpo, perdido nas águas de Mangaratiba. Ouvi Stravinski. E chorei, é claro" (p. 17). Pierrô apaixonado, que encontra uma musa bossa-nova, e a perde sem maiores explicações.

No capítulo "Água Forte" ele continua se indagando: "Aos trinta e três ainda se é rapaz? Como se afoga uma mulher que morreu afogada? É possível afogar-se num mar de papel, bidimensional, numa esteira suja de azul?" (p. 86). É preciso aprender a conciliar a lucidez com outra coisa, que ela não inclui necessariamente e que até a contradiz. João, só nomeado ao final, passa a escrever após a derrubada para se reconstruir e buscar, na criação literária, um consolo e um estímulo que, de forma abstrata, suas convicções não sabem como oferecer. "No começo, não tive vontade de falar a ninguém sobre o que acontecera, uma tragédia dentro da outra, um segredo de pevides dentro de uma maçã. Eu pensava que talvez tudo fosse uma fraude gigantesca e eu, o último a saber. Mas e se a maior de todas as fraudes era emprestar um sentido às coisas? E se aquele grande universo-pensamento na verdade estava o tempo todo duvidando de si mesmo? Pior ainda: rindo de si mesmo?" (p. 37).

Temos então um texto, um romance, um meta-romance, pois que se nutre de poemas de Manuel Bandeira, uma história corriqueira de amor em que o que se mostra, quando se mostra, é apenas um aspecto do invisível (adaptação de uma frase de Anaxágoras, L.S. p. 20). Como as duas faces de Jano, um de seus rostos virado para trás, o outro para a frente, e ambos unidos por um tronco comum, capaz de recordar o parentesco indissolúvel dos contrários. Para tentar ocupar um espaço vazio, reaparece uma ex-namorada, Marisa: "Marisa em Teresa. Como conciliar aquilo?" (p. 88). E sem dizer nada a Marisa sobre seu estado íntimo ele conclui: "Ela sabia. Não é possível imaginar que não soubesse". Marisa sabia qual seria o desfecho da história, o desfecho do romance, o desfecho daquela novela que começara na festa, ao som de um batidão tecno. E para ele, naquele momento, Marisa "era mar e brisa, estava presa à terra, não sabia aos domínios astrais. Às grandes alturas" (p. 89).

Teluricamente, a história se constrói entre os elementos de terra e água, água corrente, límpida, água do mar, e a água verde e podre de uma piscina numa casa abandonada. A poesia de Manuel Bandeira continua sendo o mote, o moto contínuo na seqüência da trama. Em O Silêncio Primordial, fala-se de uma brecha que não é preenchida por palavras: "a brecha que frustra a homologação entre realidade e significado. Elas, as palavras, sustentam a ilusão de que no compreensível esgota-se a ordem de tudo que tem sentido. As palavras, utilizadas assim, confundem, obstinadas, o que podem fazer com o que querem fazer". Se, porém, soubessem se reconhecer, elas admitiriam a penúria (o que nos faz pensar no Banquete de Platão, em Eros, filho de Penúria e Recurso) que, oculta em sua raiz, as impulsiona a concretizar a homologação na qual se obstinam. Essa penúria, por sua vez, é percebida e reconhecida pela palavra poética. A poesia não tende apenas em sua direção através de sua própria ação. Também provém dela. E é neste ponto que a palavra poética coincide com as palavras "reais". E apenas nisso coincidem porque enquanto as palavras "normais" levam a cabo uma radical subestimação do inefável, empenhadas em reduzir a algo objetivo e claro o que não o é, a poesia procura manter na palavra a intangível presença do incógnito. Nesse movimento, o romance assume um procedimento poético que se cumpre através da subtração, pela via metafórica, do real ao domínio do literal. Mais do que traduzir em termos familiares o que é estranho, a imagem poética estranha o que é habitual, apresentando-o sob uma nova luz, num contexto diverso do que esperaríamos encontrar.

"No fundo, eu achava que Teresa devia querer ser feliz no apartamento de dois quartos em Vila Isabel. Porque eu era. Feliz no tlec, tlec, tlec de seu computador, diante de uma piscina de água podre. E eu pensava: frivolidades — palavra tola, palavra frívola. Não eram frivolidades, eram? E quem era eu para separar o joio do trigo? Para decantar as águas onde ela nadava e decidir o que seria aproveitável, o que não?" (p. 105).

E o texto vai se fazendo enquanto essa morte de papel não é desvendada, até que, quase ao final, reaparece Teresa: "Os cabelos estavam um pouco mais curtos. Mal chegavam aos ombros. E ela, bem pálida. Dizia a legenda da fotografia: dada como morta por afogamento no litoral de Mangaratiba, escritora reaparece semanas depois. Sobre a foto, em letras pretas demais e grandes demais, o nome de Teresa, na manchete. Primeira página" (p. 111-112).

Estamos, em suma, diante do extraordinário — palpável e simultaneamente inalcançável; tangível e, no entanto, informe. Há um silêncio subseqüente, uma anti-epifania, que retoma e aproxima a noção de epifania de Octavio Paz quando, em seu Teatro de Signos, considera que "se a linguagem é a forma mais perfeita da comunicação, a perfeição da linguagem não pode ser outra a não ser a erótica, e inclui a morte e o silêncio: o fracasso da linguagem... O fracasso? O silêncio não é o fracasso, e sim o acabamento, a culminação da linguagem".

E o capítulo "Poema do Beco" prossegue: "O que eu estava lendo ali era a certeza de todas as dúvidas. Parei para pensar naquele paradoxo que era como o olho do furacão. Ter todas as dúvidas era, na verdade, ter uma certeza. Não saber coisa alguma ainda era um lugar no mundo, um lugar viável. E duvidar da dúvida ainda seria dizer sim. Por mais que eu me esquivasse das cristalizações, haveria sempre um lugar, um canto anterior aos demais, onde eu teria que parar. Agora, eu teria que falar, as palavras já estavam roçando o céu da minha boca, já estavam alfinetando a minha língua" (p. 112-113).

O narrador tenta completar o indizível com relembranças, a cara parecia uma perna, as pernas estúpidas. Para Rilke, em Elegias de Duíno, "a beleza é aquele grau do terrível que ainda conseguimos suportar". E como ocorrerá o distanciamento necessário para o narrador se refazer? Como o homem pode romper com o mutismo que implica a obviedade, com a palavra que se concebe prenhe de sentido inamovível? Que é, finalmente, o que nos faculta ir além desse enraizamento na literalidade, permitindo que nos afastemos do habitual, "esse monstro, segundo Shakespeare, que devora todo sentimento?".

"Amanheceu tão devagar. Amanheceu sábado. Amanheceu devagar e dolorosamente, mas descobri que no olho do furacão fazia silêncio. Existia um ponto, um ponto cego na confusão. Existia um núcleo, quando tudo mais era extremo, onde as folhas não giravam num redemoinho, onde as portas não batiam, onde as coisas não se pronunciavam. Talvez aquela fosse a única paz. O miolo da dúvida. As pequenas pevides do que não se dizia sim, não, nunca, para todo o sempre" (p. 121).

Para nós, leitores e sobreviventes, o ouvir se converte, dessa forma, na instância decisiva. O ouvir, ou seja, o interpretar; o oferecer um valor ao inalcançável murmúrio da fala transcendente, que nos escapa a todo momento.

E quando entra, no romance, uma fatia de realidade ou de cotidiano, o silêncio extremo do real, voltamos a ter contato com a indústria editorial, com as poses para a fama. Quando se pergunta: e por que Teresa teria feito isso? João diz: "Foi o que me perguntei durante todo esse tempo. Mas esta noite eu pensei em todo o destaque na mídia, na vendagem alta de seus livros, depois que ela foi dada como morta, e ainda mais daquela maneira trágica, e ainda mais todo mundo se perguntando se tinha sido acidente ou afogamento, e toda aquela história de jovem-bonita-e-promissora, as pessoas adoram essas coisas, pensei nisso, e uma hipótese me passou pela cabeça" (p. 123).

Marisa e João discutem as possibilidades e ela diz: "mas ninguém faz isso na vida real" (p. 124). "Fiquei calado. Queria dizer para Marisa que ela estava enganada, queria lhe contar que a vida imitava a arte que imitava a vida e et cetera e tal, que novelas e livros e filmes eram a vida real, e ponto". Marisa seria a instância do leitor, a expectativa de criar sentido para as coisas, para a vida e para a morte. E ao Pierrô apaixonado só restava a inspiração, a extrema alteridade. Criar será, para ele, extrair do nada; atuar de acordo com a experiência que do nada se teve. Ficamos com vontade de que ele se banhe nas águas do Lete.

"Mas e quanto a você?" pergunta Marisa. "Ficamos em silêncio. Afinal, como responder àquela pergunta, mas e quanto a mim? (...) e quanto a mim eu não sabia. Não tinha como saber. Não tinha como me apossar dos mistérios daquela mulher como me apossara de seus livros de Manuel Bandeira" (p. 124).

E ali, onde o convencional não prevalece, o silêncio faz ouvir os passos que denunciam sua proximidade, a contundência do mistério, sua vivacidade, o magnetismo de um sentido que, deixando-se roçar como alusão, franqueia o acesso à vivência de seu enigma.

"Era ela. Que estava ali. Na rua de Manuel Bandeira. Uma mulher de um poema de Manuel Bandeira, com o nome de um poema de Manuel Bandeira. E por que me abandonou em mar aberto, por que o silêncio, por que a mentira, por que a ausência e o rosto estampado no jornal?" (p. 125).

Haveria uma aversão ao estático, a repulsa humana ao imutável, o que remete à liberdade do homem, mesmo pagando um alto preço. O homem é livre quando infunde uma forma simbólica possível ao impossível de ser formalizado, segundo kovadloff. O silêncio seria concebido como forma de encobrimento da essencial imponderabilidade do real. E da vida. E da morte.

"Se novelas e filmes são a vida real, esta vida talvez valha menos do que as páginas que escrevo, que nem chegam a ser livro, que nem chegam a ser, que fazem as vezes de grandes reticências costuradas de forma talvez um pouquinho prolixa" (p. 125).

Cabe, por isso, reconhecer que o âmbito da poesia é um dos âmbitos onde o homem alcança a palavra que melhor lhe corresponde como ser transitivo. Paul Zumthor, em uma entrevista, responde assim à pergunta: Como a voz habita toda poesia? "Entendamos por poesia esta pulsão do ser na linguagem, que aspira a fazer brotar séries de palavras que escapam misteriosamente, tanto ao desgaste do tempo, como à dispersão no espaço: parece que existe no fundo dessa pulsão uma nostalgia da voz viva. Toda palavra poética aspira a dizer-se, a ser ouvida, a passar por essas vias corporais que são as mesmas pelas quais se absorvem" (In: Escritura e nomadismo, p. 69).

E passamos ao último capítulo: "Pierrô Branco". Todo o livro, toda a narrativa se mostra como jogo, jogo de engano, jogo de espelhamento entre seres de papel, num meta-carnaval de pontos, tlecs, águas correntes, águas podres, etc. "Num quarto de hotel, ao lado de um talher, está uma maçã. E um livro de Manuel Bandeira, o Estrela de uma vida inteira. Esta é a minha vida. Olho pela janela, e o que será que vejo?" (p. 127). "O hotel fica no Estácio. Seguindo para um lado, chego à Lapa. Para o outro, a Vila Isabel. Tenho todas essas coisas, mas também a natureza do que é frágil. E no fundo minha história (a que conto, a que vivo) é como um texto que subitamente explodisse, e as frases se desconjuntassem, as letras, os pedacinhos das letras. Quando isso acontece, para onde vai a alma do texto?" pergunta o narrador, e nós nos perguntamos para onde vamos nós? Para onde a linguagem nos leva? Pode ser que agora, então, sem aquelas ilusões, mas munidos de outras, pode ser que, então, o homem recupere uma sensibilidade mais profunda e conseqüente com sua própria complexidade. Será possível perceber, quando isso ocorrer, que a poesia não deixou de ocupar, em momento algum, o lugar que desde sempre foi o seu: o que a induz a confrontar o homem com sua carência de imagem e de sentido.

"Agora vivo num quarto de hotel, porque era assim que teria que ser. Ou talvez o agora seja o antes de tudo porque as histórias não precisam ter começo, meio e fim, talvez eu vivesse num quarto de hotel antes e talvez o que chamo de tudo não tenha sido, em última análise, nada. (...) Mas essas são apenas coisas possíveis. Formas de embaralhar o mundo, as letras, as palavras, e achar que escrevo alguma coisa, como agora acho que escrevo num bloco vagabundo de papel, com um lápis de ponta rombuda, as minhas memórias de outra pessoa" (p. 128). O autor como gesto, o leitor como gesto, a narrativa como gesto. Todos seriam seres de papel.

São essas as consistências de Um beijo de Colombina, são essas as consistências da vida que é texto e do texto que se faz vida. Na última volta a Mangaratiba ele conversa com a cachorra Boy: "É, parece que estou de volta, eu disse. Por que?, ela poderia ter me perguntado. Com certeza não foi para matar as saudades, nem para buscar a meia dúzia de cuecas e camisetas que devem ter ficado por aqui. De fato, não foi por isso. Acho que foi para terminar essa história que estou escrevendo" (p. 129).

E para que terminar? Mas, pensando bem, já estava na hora de arranjar um fim para aquela história. Outras começariam e continuariam até talvez, até quem sabe.

Então terminamos na "Unidade", último e utópico capítulo. "Teresa sorri e olha para João, que lê, deitado no sofá (...) Por que ela não escreveu, em todo o livro, o nome de João, nem uma única vez? Transformou-o em narrador, ele ainda não sabe. Aquele nome justo, João, que combina tão bem com ele. João não sabe que, ao longo de todos os doze meses que Teresa levou para escrever o livro, ele teve duas vidas, dupla personalidade" (p. 134). E então Adriana Lisboa resolve terminar seu romance com Teresa dizendo: "João, vamos nadar? Enquanto ainda tem sol? Eles vão, e Teresa vê que sua alma vem vindo, aos poucos, de muito longe. Ela olha para a superfície ondulante e escura, mas sabe que o que vê é só impressão (impressionismo + impressão gráfica, texto). Sabe que lá dentro, em pequenas pevides, ou bolhas, estrelas, em pequenos silêncios, palpita a vida prodigiosa, infinitamente" (p. 135).

Fim do romance... começo de... "Tudo nos leva a crer" — acredita André Breton — "que existe um momento do espírito no qual a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, deixam de notar-se contraditoriamente". Esse é o momento em que o espírito alcança sua melhor complexidade, conclui Kovadloff.

E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

 

 

 

julho, 2008

 

 

 

 

 

Tida Carvalho (Belo Horizonte/MG). Pesquisadora, escritora, ensaísta e professora de literatura brasileira/portuguesa e teoria da literatura da PUC-Minas. Doutora em literatura comparada pela UFMG com a tese: "Representações de diálogos dos mortos na literatura ocidental". Publicou O Catatau de Paulo Leminski: (des)coordenadas cartesianas (São Paulo: Livro Aberto, 2000).