De vez em quando, há leitores que me cobram o fato de comentar mais filmes antigos que novos ou me acusam de só gostar de "filmes velhos". Mal respondo à acusação de só gostar de filmes do passado, porque é simplesmente uma atitude do pior obscurantismo e ignorância — como se a história do Cinema fosse desdenhável e tudo tivesse começado ontem, com algum dos fetiches tecnológicos de Spielberg e Lucas. Gosto de tudo, de qualquer época, contanto que seja bom de fato. É impossível entender o que é o Cinema sem ver os chamados "filmes velhos". Acho privilegiada uma época como a nossa, em que DVDs de velhos filmes não param de sair, que nos permitem olhar para o passado, avaliar o que foi feito, comparar com o presente (ainda que seja para lamentar este) ou simplesmente fazer uma viagem deliberadamente saudosista a personagens e valores tidos por antiquados, por quê não? (se a modernidade prega que toda pretensão a valor é hipocrisia e só a maldade dá uma idéia fiel do ser humano, talvez o que está decididamente fora de moda seja a única salvação).

 

Vou vendo filmes de todos os tipos, tempos e lugares. Um pouco do que ando vendo segue aqui, talvez como orientação para algum leitor que aprecie meu gosto (ou desgosto) e queira concordar (ou discordar) comigo futuramente:

 

ENCANTADA - Produto de Walt Disney que pretende fazer paródia dos desenhos animados clássicos do estúdio como A Bela Adormecida, Branca de Neve e os Sete Anões, e consegue ser inteligente e engenhoso, ao menos até à metade. A princesa típica de todos os desenhos Disney, que inclusive, folgada, faz uso de animais para serviços domésticos convocando-os com musiquinhas melosas, sofre maldição de uma bruxa, cai num abismo e este abismo dá num buraco de esgoto de uma rua da Nova York atual, onde o desenho sai como atriz (Amy Adams).

 

Aí, o filme passa a ser uma comédia romântica normal. Ela sai à procura de um castelo e do príncipe com quem deve se casar, deparando-se com a brutalidade do mundo contemporâneo (como se não houvesse muita crueldade velada naqueles desenhos todos!). Encontra um jovem executivo realista (nesses filmes, o sujeito que não crê em fantasia é rapidamente estigmatizado como um tipo cruel e sem imaginação) e desiludido que tem uma noiva, mas não é feliz (vocês já entenderam tudo). O filme faz rir, mas, quando a gente se dá conta, está pregando precisamente todos os valores que tentou parodiar até então, e sentimos que fomos chantageados de maneira bem baixa. Uma pena. Mas Amy Adams é boa atriz.

 

CONDUTA DE RISCO - Oscar para Tilda Swinton como melhor atriz coadjuvante neste 2008 e filme de alto nível aparente. É bom de ver, mas dizer que George Clooney é um grande ator é forçar muito a barra: ele continua sendo muito Clooney para ser os personagens que interpreta.

 

Ele é um advogado de causas perdidas para uma grande empresa que está envolvido num imbróglio que inclui indústria de fertilizantes que aplicou uma fraude e faz uso de advogados inescrupulosos para encobrir a coisa. Levará tempo considerável para que o espectador entenda isso. Embora conte uma história simples e manjada, mais uma no gênero "thriller jurídico", repleto de conspirações, paranóias e gente dúbia, o filme tenta ser profundo e "enrola" com muitos diálogos e cenas indiretos.

Clooney consegue sustentar uma cara angustiada e perplexa até o fim. Os que parecem verdadeiros atores do filme são os ingleses Tom Wilkinson e Tilda Swinton. Mas ele faz um personagem já visto em Rede de intrigas, e, por coincidência, interpretado por outro bom ator inglês, Peter Finch: é o sujeito que, dentro de um sistema corrompido, enlouquece e passa a dizer verdades incômodas (portanto, tem que ser eliminado). Tilda faz a vilã, sempre "fria e calculista", e não sai do estereótipo senão por ser insegura e muito neurótica. Não é o melhor papel da carreira dela, mas o Oscar 2008 parece ter sido pródigo em premiar atores por outros papéis que não aqueles para que foram indicados (mesmo caso de Javier Bardem por "Onde os fracos não têm vez"). Conduta de risco é um bom thriller, mas quer ser mais do que isso, o que o torna um pouco inflado e duvidoso.

 

O CÉU POR TESTEMUNHA - John Huston fez este filme em 1959, para repetir talvez o sucesso de seu Uma aventura na África, porque é história muito parecida. Nele, uma freira irlandesa (Deborah Kerr), sozinha numa ilha isolada pelos japoneses na Segunda Guerra Mundial, recebe como companhia um soldado norte-americano que naufragou (Robert Mitchum). O filme é curioso como tentativa de contornar, a qualquer custo, a inevitável armadilha erótica e romântica do clichê que se arma, inevitável. Mitchum está muito bem, mais humano do que de costume, e impagável toda vez que tenta dizer à freira o quanto a deseja e ama (seu olhar vai para uma direção que suas palavras, de uma nobreza inverossímil, respeitosas, fazem por obscurecer, mas não conseguem apagar). Sem camisa, ele é o objeto erótico do filme, e Deborah Kerr, especialista em mulheres virtuosas, tem uma crise desesperadora, numa noite de chuva, com esse erotismo todo (que vem também da bela paisagem) — e foge, para ser salva, claro, por ele. Os dois sobrevivem com uma dignidade incrível a esse embate. Fazem pensar inclusive que os melhores filmes, os mais ardentes, os mais sugestivos, são aqueles em que os amores são forçosamente platônicos. Nesse, nem mesmo um vago beijo acontece.

 

MEDO DA VERDADE - Surpreendente. Deve ter sido dos melhores filmes feitos no ano passado, e não se falou muito dele. De um romance original de Dennis Lehane chamado Gone, baby, gone, teve problemas para ser exibido no Reino Unido devido à associação com o caso Madeleine, da garota inglesa desaparecida em Portugal.

 

O mais incrível desse filme é que a direção é de Ben Affleck, um dos mais notórios atores ruins, para não dizer insuportáveis, da Hollywood dos últimos anos. Ele fez tantos filmes fracassados e medíocres que, ao ir para trás das câmeras, não fazia suspeitar de modo algum do talento de cineasta que revela. Sabe filmar, contar uma boa história sem firulas, concentrando-se em interpretações (seu irmão, Casey Affleck, tem o papel principal) na história de uma garota de quatro anos cuja mãe, drogada e irresponsável, praticamente deixa ser arrastada numa sórdida trama de sequestro e tráfico. Mas a história não é exatamente o que parece, e esse é só um de seus méritos, porque tudo é cheio de matizes e surpresas. Ed Harris e Morgan Freeman estão no filme, dando grandeza à empreitada. O final também é corajoso e impele à reflexão.

 

VITÓRIA AMARGA - Da caixa imperdível de DVDs de Bette Davis, eis um velho filme charmoso, melodramático sim — na verdade, não há nada de errado com o melodrama, que é apenas um gênero cinematográfico — com a aura dos bons filmes feitos por Bette nos estúdios Warner, em glorioso preto e branco.

 

Ela é uma socialite, Judith Traherne, que, numa queda de cavalo (e quem cuida de seus estábulos é ninguém menos que Humphrey Bogart), depois de várias dores de cabeça e estranhas torturas, descobrirá que está com um tumor cerebral, o que não parece assustá-la tanto, visto que o médico — o bonitão George Brent, bem velho estilo — a tranqüiliza. Mas o caso é grave, e só o médico e a amiga fiel de Traherne (Geraldine Fitzgerald) saberão da verdade, até que ela, indignada por eles terem se calado por tão longo tempo, a descobrirá. A partir daí, é um segundo filme, e o personagem passará da futilidade a uma preocupação desesperada e constante com a morte — Davis é primorosa nas expressões e sugestões de uma vida interior, até aí assentada na futilidade, que é posta de cabeça para baixo. O final deve ser dos mais apelativos, em termos emocionais, da história do Cinema, mas funciona soberbamente, porque Bette Davis, convenhamos, é soberba: basta entrar numa cena que não fica lugar para mais ninguém. A mais perfeita das atrizes cinematográficas, porque é também uma estrela e não se consegue imaginar alguém fazendo o que ela faz, lançando aqueles olhares e aqueles sarcasmos.

 

PIAF - UM HINO AO AMOR - Se Marion Cotillard não tivesse recebido o Oscar de melhor atriz neste 2008, seria caso de calamidade pública: ela é perfeita, quase mediúnica, "incorporando" Edith Piaf no filme. E, na verdade, ela é o epicentro dessa produção que tem muito das cinebiografias convencionais, ao gênero "Ray", que abordam a vida tumultuada de um grande astro da música, não podendo senão comover devido ao culto de que essas vidas são objetos. No caso de Piaf, fazer um melodrama rasgado é chover no molhado, visto que nada foi tão melodramático quanto a sua vida, que, na verdade, é o próprio projeto estético de sua música, destinada aos maiores arroubos passionais. Cotillard é assombrosa. Mas as memórias de Edith criança são também muito bem encenadas e comovem, Gerard Depardieu faz um pequeno papel com muita simpatia e o filme acaba nos arrastando em seu turbilhão, quebrando resistências, embora talvez tivesse sido ainda melhor se não embaralhasse tanto, por charme, as idas e vindas da cronologia.

 

 

 

julho, 2008