© loredano
 
 
 
 
 
 

 

 

 

  

 

 

(Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1868)

 

 

I

 

Conheceis Antônio Alves das Antas? É um homem de cinqüenta anos, viúvo, senhor de uma fortuna de oitenta contos, e pai de um filho de vinte e dois anos e cerca de trinta vícios e defeitos.

 

Tendo liqüidado os seus negócios em 1855, Alves recolheu-se à vida privada, sem todavia deixar de ir uma ou outra vez furtivamente à praça do comércio, onde fazia alguns negócios seguros que lhe aumentavam a renda da fortuna.

 

Se um Rothschild ou um Westminster lesse estas linhas perguntar-me-ia se eu chamo fortuna a uns oitenta contos, que, na opinião daqueles dois nababos, nem chegam para a cova de um dente.

 

Dispenso-me de dar resposta a essa pergunta provável; mas acrescentarei, por amor da fidelidade histórica, que Antônio Alves das Antas também pensava como pensaria Westminster, e era por isso que meditava uma grande e famosa operação econômica, que seria a coroa da sua vida.

 

A operação era casar o filho.

 

Resultava-lhe daí nada menos de quinhentos contos em boa moeda e excelentes prédios.

 

Conhecendo o caráter do rapaz, que era tíbio e sem iniciativa, o pai tencionava sacrificar os últimos anos da sua vida, tomando a direção da fortuna para aumentá-la e multiplicá-la, e estava tão certo nos seus cálculos, que contava ficar ele próprio, no fim de cinco anos, com uma conta redonda de duzentos contos.

 

Ninguém conhecia, nem esse projeto, nem os meios de que ele dispunha para produzir a operação comercial.

 

Se já sabemos a fortuna que o filho trazia para casa, é porque conhecemos a noiva. A noiva era uma viuvinha de vinte e três anos, bela como todas as viúvas dessa idade que não são feias, inteligente, amável, perfeitamente educada, e largamente instruída.

 

Chamava-se Helena, e era neta de um coronel reformado, homem de coração e de brios, que adorava a neta, e era um servo dos seus menores desejos.

 

Alves tratou de instruir o filho no que dizia respeito às pretensões dele, dizendo-lhe apenas que era um prazer para um pai ver casar-se o filho com uma moça estimável e rica. Luís ouvia as prédicas do pai, e procurava conscienciosamente realizar aquele projeto; mas na época em que começa esta narração ainda o rapaz não havia dado um passo útil, e as coisas estavam no mesmo pé que ao princípio.

 

Uma manhã de abril de 1859, achava-se o pai no gabinete revendo uns papéis que ninguém suporá serem romances nem poemas, quando lhe entrou repentinamente o filho alvoroçado e alegre.

 

— Alvíssaras, meu pai, alvíssaras!

 

— Que temos? disse Alves voltando-se para o rapaz.

 

— Vai ter uma visita; adivinhe!

 

— O coronel Veloso, disse o pai sorrindo.

 

— E a neta. Encontrei-os há meia hora. Vêem repreendê-lo. D. Helena chegou mesmo a dizer... perdão, meu pai, chegou a dizer que lhe puxaria as orelhas.

 

— Por quê?

 

— Acho que tem razão. Meu pai não vai lá há tantos dias.

 

— Há três dias apenas; mas bem sabes que tenho que fazer. Além de que, não sou eu o candidato ao coração dela: és tu.

 

Luís arrancou do peito um profundo suspiro, e disse atirando-se a uma cadeira:

 

— Sou eu!

 

Alves franziu a testa.

 

— Por que suspiras?

 

— Não sei, respondeu Luís.

 

— Abre-te comigo, meu rapaz. O acaso levou-me um dia a falar contigo deste assunto. Nestas ocasiões desaparece o pai, fica apenas o amigo. Que aconteceu?

 

Luís hesitou; mas instado pelo pai, disse estas palavras sem ousar encarar o autor dos seus dias:

 

— Eu creio que D. Helena não quer casar-se.

 

— Sim? disse Alves.

 

— É verdade.

 

— Mas é um bom casamento, disse o pai firmando bem as palavras.

 

— Não contesto; é um casamento magnífico: bela, espirituosa, elegante...

 

— E rica como uma Califórnia...

 

— Mas indiferente como...

 

— Como tu! disse Alves.

 

Luís estremeceu e olhou para o pai.

 

Alves continuou tomando calor:

 

— Como tu, repito. Tens um grande defeito, meu rapaz, que é o defeito da mocidade de hoje. No meu tempo cada moço começava a sua carreira convencido de que a perseverança era a virtude máxima, a qualidade suprema, o grande traço das organizações superiores. A que deves tu os regalos da vida, senão a esta virtude que nunca me desamparou? Quando alguma crise perturbava a minha vida e fazia estorvo ao resultado dos meus negócios, cuidas que eu me resignava à desgraça? Nunca! O exemplo de Jó não me seduzia: o velho filósofo gastou mais tempo em lamentar-se do que eu gastaria em readquirir uma nova fortuna. Os rapazes de hoje são da escola do filósofo. Não foram esses os conselhos que te dei.

 

Depois desta preleção sobre a virtude da perseverança, Alves olhou fixamente para Luís pedindo com o olhar uma resposta ao discurso que acabava de pronunciar, e que eu, por amor da brevidade, resumi.

 

O filho respondeu:

 

— Não me julgues tão sumariamente, meu pai. Creia ao menos que eu terei penetração bastante para conhecer a situação das coisas. Torno a afirmar que D. Helena não quer casar-se.

 

— Não creias nisso, respondeu o pai. Viúva moça com horror ao casamento é a fênix, é o milagre dos milagres. O casamento para as mulheres é como o governo para os homens de Estado; não se pode estar muito tempo sem pasta. Não é isso, meu rapaz, é outra coisa.

 

— Que será então?

 

Alves levantou-se, e foi a uma caixa de charutos, tirou dois, deu um ao filho, e acendeu o outro.

 

— Que marca é esta? perguntou Luís olhando para o charuto.

 

— Partagas.

 

— Eu fumo Concha flor.

 

— Mas este é bom. Experimenta.

 

Luís acendeu o charuto, e depois de duas fumaças, perguntou ao pai:

 

— Mas, vamos, que me ia dizendo?

 

— Ouve; que te falta? Tens tudo: fortuna, liberdade, reputação, boa casa, boa cama, boa mesa...

 

— E bons charutos.

 

— Gostas destes?

 

— São excelentes.

 

— Nada precisas, nada ambicionas, continuou o pai. Ora, que tinha eu na época do meu casamento? Tudo carecia, ambicionava tudo. Era-me preciso encetar então, lá no fundo da minha província, a vida política que mais tarde interrompi, e que pretendo começar agora de novo. Apareceu-me um amigo que possuía três qualidades preciosas: era rico, professava as minhas idéias e tinha uma filha formosíssima. Levantei os olhos para a filha; a ambição ajudou o amor, ou amor a ambição, e eis aí como me uni à tua mãe.

 

— Conheço a valentia dos seus argumentos, mas desanimo. Que hei de fazer?

 

— Que hás de fazer? disse o pai tomando um tom de augure. Insistir e resistir. Até porque podem algumas ilusões da juventude levar-te a contrair uma dessas alianças disparatadas e desonrosas... Vamos lá, tu não és seguro!

 

— Oh! disse Luís.

 

— Amas a moça; ela é bonita e rica; casa-te. Um moço, como tu, não pode deixar ir por água abaixo uma destas fortunas. Os nossos capitais reunidos farão uma conta redonda. Demais, não queres tentar a vida política? Eu sempre te achei vocação para homem de Estado; vocação e fortuna, é quanto basta para fazer tremer o governo.

 

— Não tenho opinião feita, disse Luís levantando-se.

 

— Faz-se depois. O essencial é servir à pátria. Grava na memória tudo quanto te disse... e casa-te.

 

— Farei o que puder, meu pai.

 

Neste momento apareceu à porta do gabinete um moleque. Vinha dizer que o dr. Máximo estava na sala à espera deles.

 

O dr. Máximo era uma das pessoas que freqüentavam a casa do coronel Veloso, e Alves conhecia-o de lá. Era um moço que gozava de boa reputação e tinha a estima do coronel e de Helena.

 

Alves e o filho saíram para a sala de visitas, e acharam aí o referido doutor, que apenas os viu levantou-se, dizendo:

 

— Venho por dois motivos: o primeiro é um recado do coronel Veloso. Pediu-me que lhe viesse lembrar o número da casa dele... Queria mesmo que eu o curasse da moléstia da ingratidão...

 

— Quando esteve com ele? perguntou Alves.

 

— Ontem à noite.

 

— Há notícias mais frescas, disse Luís. O coronel não tarda aí com a neta.

 

— Desculpe nesse caso a demora.

 

Alves ofereceu cadeira e sentaram-se todos.

 

— O segundo motivo? disse Alves.

 

— O segundo motivo é de negócio. Venho dizer-lhe que não posso pagar-lhe aquela letra no dia do vencimento. Quer esperar mais um mês?

 

— Dois meses... três meses... disse Alves. O doutor faz-me até uma injúria. Na amizade não há vencimentos, nem protestos; há um auxílio mútuo. Pague quando quiser, e como quiser. Veja em mim um amigo leal; um credor, nunca.

 

— Não sabe como lhe agradeço as suas palavras...

 

— Não me tire a virtude com esses agradecimentos.

 

— Vai ao jantar de terça-feira em casa do coronel? perguntou Máximo.

 

— Vou, disse Alves. Que excelente família é aquela! O coronel é um perfeito cavalheiro, e a neta uma senhora de aprimorados dotes e grandes espíritos. E sempre alegre; exceto... exceto quando lhe falam no pai; sabe, não?

 

— Não sei de nada. Conheço-os há tão pouco tempo!

 

— É uma história triste. O pai de D. Helena entrou nos movimentos políticos de 1842, em Minas. Tinha um adversário de longos anos, adversário por causas políticas e particulares, que aproveitou a situação para tirar uma dupla vingança. É pelo menos o que se conta, porque a história da revolução não conservou o fato. O pai de D. Helena foi assassinado uma noite em que voltava para a fazenda; o assassino fugiu. Ninguém mais soube dele. D. Helena era então criança, mas amava loucamente o pai, e ainda derrama lágrimas de saudade quando se lhe recorda aquele sinistro acontecimento.

 

— Pobre moça! disse Máximo, que ouvira a narração atentamente, enquanto Luís, aspirando o fumo do partagas, deliciava-se em vê-lo subir em caracóis até o teto.

 

Alves continuou:

 

— O coronel, que fez tudo quanto era possível para descobrir o autor da morte do filho, jura ainda hoje que se o encontrasse matá-lo-ia. Convém, portanto, que estando em casa dele não se refira nunca à revolução de 1842...

 

— Descanse.

 

A conversa continuou sem interesse para o romance. No fim de um quarto de hora, Máximo levantou-se para sair, e Alves, tendo ocasião de falar baixinho ao filho, disse-lhe rapidamente:

 

— Faze-lhe festas; este sujeito pode servir para alguma coisa.

 

Com efeito, Luís que até ali mostrara um ar de indiferença e aborrecimento ao pé de Máximo, não por causa dele, mas porque era o fundo daquela natureza morna e sem caráter, tomou o conselho do pai e entrou em amabilidades que o doutor agradeceu modestamente.

 

Quando este ia a sair ouviu-se uma voz na escada:

 

— Bem! eu subo!

 

— Conheço esta voz! exclamou Alves. É do Batista.

 

Poucos minutos depois entraram na sala dois indivíduos: um velho e um rapaz.

 

— Meu amigo!

 

— Meu amigo!

 

E os dois velhos caíram nos braços um do outro, ao tempo em que Luís apertava a mão do mancebo recém-chegado.

 

— Vejo-te enfim! Estás mais nutrido! mais corado! dizia Alves contemplando Batista. Desculpe, doutor, acrescentou ele voltando-se para Máximo; é um amigo! E tu, Carlos, como estás?

 

O moço que acabava de entrar com Batista, e que era filho dele, respondeu:

 

— Contente por vê-lo.

 

— Estás um rapagão!

 

— Como este! acrescentou Batista apontando para Luís. São dois magníficos produtos! O que é preciso é não envergonharem as barbas da gente. Ah! que ânsia tinha eu de ver-te!

 

Vendo esta efusão entre os dois amigos, Máximo calculou que se demoraria muito caso quisesse esperar o fim da cena. Pediu licença e retirou-se.

 

Em duas palavras direi quem eram os novos personagens; e quais eram as relações entre Batista e Alves.

 

Tinham ambos nascido na mesma província, e foram educados juntos, porque as famílias mantinham entre si antigas relações. Aconteceu que, para que a identidade entre os dois fosse completa, morreram-lhe os pais com pequeno intervalo, e eles ficaram órfãos na adolescência. Resolveram, porém, fazer-se homens, e entraram na vida com grande atividade e indomável perseverança. Alves, abandonando a política, onde começou apenas teve dezoito anos, entrou na carreira comercial onde estava Batista, e ambos em pouco tempo adquiriram uma fortuna mais ou menos igual. 

 

Ultimamente, fora Batista à Europa, aonde o chamavam interesses de uma companhia fundada no Rio de Janeiro. Lá esteve algum tempo, até que volta agora com o filho, sendo a primeira casa que procurou a do seu caro Pílades.

 

Sentaram-se os dois velhos, enquanto Luís levou Carlos para cima a fim de conversarem mais à liberdade.

 

Batista e Alves entraram na exposição dos acontecimentos da vida de cada um deles. Como eram ambos viúvos, a primeira coisa que indagaram um do outro foi se não estavam casados, ao que ambos responderam negativamente.

 

— Declinei da honra em favor do pequeno, disse Batista.

 

— Casa-se o Carlos?

 

— Espera. Devo dizer-te que tive um susto.

 

— Ah!

 

— É verdade. Namoricou lá em Madri uma rapariga, e eu já estava com medo de vê-lo contrair alguma triste aliança. Felizmente aquilo não foi mais do que a pedra de toque do ânimo do rapaz.

 

— Dou-te os meus parabéns, disse Alves suspirando.

 

— Por que suspiras?

 

— Não tem juízo de sobra o meu Luís. Gosta aí de uma senhora viúva, bonita, moça e rica... Quatro virtudes! Que excelente casamento para ele e para mim! Pois o rapaz não faz nada; é de uma tibieza... A viúva é arisca, confesso. Tem a cabeça cheia de umas filosofias altas, de uns vapores, umas imaginações. Mas tudo isso vence-se... em havendo perseverança. Mas o Luís não compreende que para as grandes conquistas são necessárias as grandes armadas: embarca-se em canoas e admira-se de naufragar!

 

— Por esse lado estou contente. O Carlos não se distingue por essas tolices; é um rapaz como se quer. Para ele não há impossíveis, nem mesmo dificuldades. Tem axiomas de grande verdade. Pergunta-lhe o que é a vontade. É a alavanca do mundo, responderá ele. Se quiseres saber o que é a imaginação, diz-te logo que é um fardo para as cabeças ocas. Enfim, é um primor. Agora mesmo, apesar de chegar da Europa, já trago em vista um projeto que vou comunicar ao rapaz, e a ti também.

 

— O que é?

 

— Um casamento: trata-se de um casamento para o rapaz, coisa muito sólida e boa. O rapaz não conhece a noiva (eu já lhe chamo noiva), mas há de achá-la linda antes de vê-la, por causa deste axioma que ele não cessa de repetir-me: A beleza é amarela.

 

Estavam nisto os dois quando parou um carro à porta. Era o coronel Veloso e a neta que chegavam para visitar o ex-comerciante.

 

Helena era, como dizia Alves, uma mulher formosa. Era alta, de olhos e cabelos negros, mão delicadíssima, formas cortadas em mármore... adivinhava-se ao menos. Trazia um vestido cinzento pérola, muito sério e muito elegante. Penteava-se à Maria Stuart

Máscara mortuária., sem curar de saber se a moda passara ou não.

 

O coronel era um velho de setenta anos como há poucos, robusto e corado.

 

Esperados com ânsia por Alves, foram recebidos com alvoroço, o que faria crer da parte do dono da casa uma amizade mais profunda que a real, se alguma havia.

 

Alves apresentou o amigo às duas visitas. O coronel e Batista conheciam-se apenas de vista; mas à declaração feita por Alves de que Batista era o seu mais antigo amigo, o coronel deu-lhe logo maiores testemunhos de apreço. Era um bom velho o coronel!

 

A visita durou pouco; apenas um quarto de hora; mas nem Helena nem o avô saíram sem que Alves prometesse que lá iria aquela noite.

 

Alves prometeu.

 

— E o senhor também, disse Helena voltando-se para Batista.

 

— Hoje? disse este.

 

— Está cansado, não é? acudiu o coronel. Pois bem, amanhã.

 

— Sim, amanhã.

 

Enfim, despediram-se. Apenas as portas fecharam-se sobre os dois, Alves voltou-se para Batista, e perguntou-lhe:

 

— Viste-a?

 

— Vi, respondeu Batista. E nem de propósito. É esta a mulher de quem te falei há pouco.

 

— De quem falaste? o quê?

 

— É o casamento que eu tenho em vista para meu filho, respondeu Batista.

 

— É singular, é também esta...

 

— A do Luís?

 

— Sim!

 

Batista e Alves olharam-se algum tempo.

 

Afinal Batista rompeu o silêncio.

 

— Poucas vezes se dará coisa semelhante, disse ele. Dois homens separados pelo oceano terem a um tempo a mesma pretensão.

 

— É incrível, mas é verdade!

 

— O que nos vale é que esta circunstância em nada pode alterar a afeição de dois amigos velhos.

 

— De modo nenhum! É coisa que não pode pesar na balança da amizade!

 

— Está dito!

 

E como se ambos estivessem cheios da mesma idéia, voltaram-se um para o outro, e ao mesmo tempo soltaram estas duas terríveis palavras:

 

— Tu cedes!

 

— Quem? disse Alves.

 

— Eu? disse Batista.

 

— Ceder! tomou o primeiro. Em nome de quê? por que motivo?

 

— Não somos amigos? Que é a amizade senão o afeto mútuo e o concurso recíproco?

 

— Mas, meu caro, disse Alves, isso tudo é verdade; mas se é verdade é a meu favor, porque o sacrifício deve partir de ti e não de mim... porque há longo tempo que eu cá estou na luta, e não vejo razão para que te ceda o campo, a ti, que vens de fora, e apenas tens na cabeça a sombra de um projeto.

 

Batista sorriu ouvindo as palavras de Alves, e replicou:

 

— Se a prioridade é razão, é razão a meu favor; o meu projeto é anterior ao teu.

 

— Mas se ela enviuvou há oito meses, e nesse tempo ainda estavas na Europa!

 

— Quando lhe deitei os olhos ela ainda estava casada.

 

— Contavas com a morte do marido?

 

— Não tinha certeza matemática; mas era uma espécie de loteria; comprei bilhete e esperei que andasse a roda. Desgraçadamente para o defunto a roda correu e eu tirei a sorte grande. Nem era necessário grande tino para ver que entre o marido já idoso, e a mulher na flor da idade, era ele quem devia despedir-se primeiro deste mundo de enganos e de lágrimas. Pensei mal?

 

Já a este tempo Alves tinha-se levantado e passeava pela sala, agitado e fumando em dois sentidos. Quando Batista acabou de falar, Alves parou e disse-lhe:

 

— Mas enfim, é dever de lealdade...

 

— Adeus! temos agora lealdade; mas quem fala em lealdade? Tu não farias o mesmo no meu lugar?

 

— Queres então brigar comigo?

 

— Qual brigar! exclamou Batista. Não há briga possível entre dois amigos. Pode haver conflitos de interesses; mas o interesse não fica empenhado nos pactos do coração; é por sua natureza uma restrição mental. Queres casar teu filho com a viúva; és lógico e mostras ser homem de juízo; mas eu também quero ter juízo e mostrar-me lógico.

 

— Mas logo esta! disse Alves.

 

— Ave rara, meu amigo. Só vejo um meio de conciliar tudo.

 

Alves, que passeava agitado, parou, e disse:

 

— Qual é?

 

— Era cederes tu, e deixar que o meu rapaz...

 

— Ora!

 

— Não serve? perguntou Batista levantando-se. Nesse caso lutaremos ambos. Vença quem for mais hábil ou mais feliz. Agüenta-te nos estribos, porque eu vou a toda a desfilada.

 

— Farei por ser bom cavaleiro.

 

Nesse momento entravam na sala os dois rapazes que eram a causa, sem o saberem, daquele conflito.

 

Batista já tinha o chapéu na mão, e apenas avistou Carlos disse-lhe que saísse com ele, acrescentando baixinho que aquilo ali era território inimigo.

 

Carlos compreendeu que havia alguma coisa, e modelou a sua atitude na despedida pela do pai.

 

Apenas saíram os dois, Alves, que nem respondera ao frio cumprimento de Batista, voltou-se para Luís, que lhe perguntou:

 

— Que é isto, meu pai?

 

— Nada. Aqueles dois são inimigos nossos.

 

— Por quê?

 

— Pretendem a mão da nossa Helena.

 

— Ah!

 

— Serás capaz de vencê-los?

 

— Espero!

 

— Se venceres terás coroado os meus dias. Agora é a nossa honra que está em jogo.

 

 

II

 

Como vimos, a amizade profunda, ao que diziam, entre Batista e Alves, começada na infância, provada na adversidade, confirmada na abundância, acabava de esvair-se, como um novelo de fumo, ao simples impulso de um interesse particular. Um valia o outro.

 

É fácil de crer que, desde aquele fatal dia, os dois amigos velhos não se visitaram mais, e se alguma vez se encontravam juntos apenas se cumprimentavam, salvo se uma conversa geral obrigava os dois a se comunicarem, o que faziam por interesse próprio, a fim de não entrarem em explicações.

 

A bela viúva, neta do coronel, fora o pomo de discórdia entre aqueles dois deuses, agora em guerra aberta. Mas ela não o sabia, ao menos nos primeiros dias, posto que Deus lhe houvesse dado um espírito superiormente sagaz.

 

Helena tinha um grande coração, e custava-lhe muito a crer em certas baixezas humanas. Alma generosa e ardente, só acreditava no mal quando ele era evidente, e ainda assim tinha uma desculpa, uma espécie de perdão, que era um resultado da sua própria magnanimidade.

 

Desde os primeiros dias reparou ela que entre os dois amigos não havia já a intimidade que vira no dia em que os encontrou juntos em casa de Alves. Estranhou, mas não se lembrou, nem podia lembrar-se, que a causa da discórdia era ela, causa inocente, mas real.

 

Tendo feito um casamento por simples gratidão, o coração de Helena estava ainda virgem e cheio do fogo das paixões. Era uma mulher dessas que a civilização vai extinguindo, uma mulher capaz de amar, capaz de sacrifícios. Quem lhe tocasse naquele coração tão puro ainda teria tocado uma rocha de Horeb, de onde veria romper uma linfa abundante e viva. Qual daqueles dois rapazes seria o feliz Moisés?

 

Que ambos tinham desejo de sê-lo, isso é fora de dúvida. Luís estimulava-se com a rivalidade, e procurava vencer a tibieza natural. Mas Carlos tinha mais audácia, e, como diz o povo, mais mundo. O filho de Alves viu logo desde princípio com que adversário tinha de lutar.

 

Com efeito, Carlos logo no fim de oito dias arriscou uma declaração de amor, feita com todas as regras que o caso pedia. Helena, querendo conciliar tudo, a delicadeza e o dever, apenas sorriu, e disse ao rapaz que se esquecesse disso, porque ela não o amava.

 

Carlos não se deixou vencer.

 

— Bem, disse ele, esperarei.

 

— O quê? perguntou Helena franzindo levemente a testa.

 

— Que me ame.

 

A viúva tornou a sorrir.

 

— Está certo disso?

 

— A esperança é a última coisa que nos abandona.

 

A conversa ficou aí.

 

Carlos pensava bem; o que ele queria antes de tudo era tomar uma posição definida aos olhos de Helena. Embora não fosse correspondido, o essencial para ele era estabelecer no espírito da moça uma ligação entre a idéia dele e a idéia do amor. Chamava ele a isto lançar barro à parede.

 

Ao passo que o filho de Batista assim estabelecia o seu acampamento e dispunha os seus elementos de guerra, Luís estava como no primeiro dia. Apesar de todos os esforços, Luís nada conseguira fazer. Aquele rapaz que era considerado como um leão em certa sociedade, quando estava ao pé de Helena mal podia conversar de coisas indiferentes e frívolas, de maneira que atrasava-se na razão direta do adiantamento do outro.

 

Adiantamento lhe chamo, para dar à coisa o nome que o rapaz lhe dava. Mas a verdade é que Helena sentia-se, como no primeiro dia, indiferente para o rapaz.

 

Alves não cessava de animar com palavras e rogativas o espírito do filho, que em casa do pai sentia-se capaz de conquistar a Ásia inteira mas que apenas entrava em casa de Helena tornava ao que era.

 

Um dia, porém, depois de uma reprimenda paterna, Luís tratou de dar um golpe decisivo, e jurou que na primeira ocasião em que se achasse a sós com ela daria o assalto à praça. Era difícil achar essa ocasião, porque Carlos, compreendendo o mal que lhe resultaria de deixá-los sós, estava sempre de permeio, o que o alegrava tanto quanto enraivecia o outro.

 

Como a vigilância não podia ser tão absoluta que não ferisse as conveniências, aconteceu que uma noite Luís pôde ficar alguns instantes com Helena, no vão de uma janela, enquanto Máximo tocava piano, e Carlos conversava com o coronel.

 

Luís reuniu as suas forças e soltou a primeira palavra, a principal, porque o resto viria mais facilmente. A viúva sorriu igualmente, e deu a mesma resposta que dera a Carlos. Mas Luís não era da têmpera do outro, e em vez de soltar uma frase audaz e tranqüila, repetiu e insistiu na sua declaração.

 

Helena não tendo meio algum de fazer cessar a torrente dos idílios estudados de Luís, interrompeu a conversa, dizendo para Máximo:

 

— Está tocando hoje magnificamente, doutor!

 

E saiu da janela.

 

Luís ficou petrificado.

 

Era fácil ver pelos dois velhos pais a situação em que se achavam os filhos. Tão lesto e lampeiro andava Batista quanto cabisbaixo e desanimado Alves das Antas. Quaisquer que fossem os seus desejos, Luís não podia lutar com o filho de Batista. Para não ser vencido, ou ficarem vencidos ambos, só havia uma coisa: a isenção da moça, a resistência dela às impertinências dos dois rapazes.

 

Seria assim?

 

Parece que era.

 

 

III

 

Passaram-se dois meses, e chegou o dia em que Helena fazia anos.

 

Houve jantar nesse dia em casa do coronel, ao qual assistiu o pequeno número de pessoas íntimas que costumavam freqüentar a casa.

 

Foi um dia de festa geral. Entretanto, de quando em quando uma sombra misteriosa vinha entristecer o olhar do coronel.

 

Acabado o jantar, e indo todos dar uma volta pelo jardim, Batista travou do braço do coronel, tendo cuidado em fazer com que o filho oferecesse o seu a Helena, o que era inútil, porque o moço conhecia perfeitamente quais eram os seus deveres naquela ocasião.

 

Batista e o coronel desviaram-se dos outros grupos.

 

— Quero fazer-lhe uma pergunta indiscreta, disse Batista.

 

— Fale, disse o velho.

 

— Esteve triste durante o jantar, e continua triste depois dele. Posso saber a causa disso?

 

— Oh! nada! nada!

 

— É impossível: vê-se que tem algum incômodo moral. Por que me não confia? Não acredita na amizade que lhe consagro? É verdade que eu ainda não lhe dei provas.

 

— Creio na sinceridade do interesse que toma por mim, disse o coronel parando e encostando-se a uma palmeira. Dir-lhe-ei em poucas palavras o que é. Há um fato na minha família que eu não posso recordar sem lágrimas e sem ódio. Meu filho foi assassinado em 1842, em Minas. Essa morte ficou impune; a sociedade esqueceu o crime, não eu. Fazem hoje anos que se deu esse triste acontecimento. Helena não sabe que faz anos com a morte do pai; mas eu sei, e devoro em silêncio a minha dor.

 

Batista mostrou um rosto compungido, e apertando a mão do velho, exclamou:

 

— Coronel!

 

— Não acha que é um motivo suficiente?

 

— Demais.

 

— Estou alquebrado; mas se eu hoje achasse o assassino de meu filho creio que o mataria eu próprio!

 

— Afaste essas idéias de si, coronel, disse Batista. O crime é sempre crime. Perdoá-lo é ser digno de Deus!

 

— Perdoar, nunca!

 

Pouco depois os diversos grupos encontraram-se no mesmo ponto, isto é, debaixo de um pequeno caramanchão, onde foi servido o café.

 

Luís e Carlos lutavam de amabilidade e de solicitude. Helena sorria para ambos, com uma bondade aparente e um latente desdém. Tê-los-ia compreendido? Parece.

 

A noite começou a cair. Helena, que era a heroína do dia, o objeto da pequena festa doméstica, convidou as senhoras e os rapazes a irem para a sala tocar um pouco e conversar. Entraram todos com efeito, Helena de braço com Máximo, que, longe de ter-lhe oferecido, fora convidado por ela, em alta voz, a conduzi-la para dentro.

 

Nesse dia era a terceira prova de distinção que a neta do coronel dava ao dr. Máximo. Nenhuma delas escapou a Carlos Batista. Daí em diante não os perdeu de vista.

 

Baldado esforço! Máximo, que era de hábitos reservados, raras vezes olhava para Helena, posto que esta de quando em quando procurasse o jovem médico com os olhos. Era fortuito? era de propósito?

 

A nuvem desta dúvida assomou no fundo do espírito do moço, que sem mais detença entendeu-se com o pai.

 

— Se é verdade isto, disse ele, é preciso pôr-lhe um termo.

 

— Sem dúvida alguma.

 

A hipótese de um terceiro pretendente reconciliou por alguns momentos os dois campos. Os dois mancebos, comunicando as suas observações, foram de acordo que era conveniente reunir todos os esforços contra o inimigo comum.

 

— Se é ele quem pretende, dizia um, é preciso que desista.

 

— Se é amado por ela, acrescentava o outro, é preciso separá-los.

 

— Mas o meio? dizia Carlos. Eu estou disposto, e há de haver algum meio; mas qual?

 

Esta conversa, que era tida enquanto Carlos simulava folhear um álbum de retratos que estava em cima da mesa, ninguém podia ouvi-la, porque nesse momento Helena tocava piano, e todos mais ou menos grupavam-se no fundo da sala.

 

— Toda a questão, insistia Carlos, é ter um meio útil, rápido, conveniente.

 

Apenas dizia ele isto, uma pessoa que ouvira a conversa por trás deles, e que era nada menos que o sr. Antônio Alves das Antas, soltou estas enérgicas palavras, em voz igualmente baixa:

 

— O meio? Há um: sou credor dele.

 

Os dois voltaram-se dando um pequeno grito.

 

Nesse momento os aplausos coroavam a jovem pianista, que acabava de tocar umas variações de Thalberg.

 

 

IV

 

São passados dois dias depois do jantar de anos de Helena.

 

A neta do coronel estava na sala de recepção, lendo e relendo um papelinho que tirara do seio.

 

Eram versos.

 

Anunciou-se o dr. Máximo.

 

O dr. Máximo, com quem já travamos rápido conhecimento, não se podia dizer que era um belo homem, mas era profundamente simpático, e a fisionomia severa coberta de um certo () melancólico que dispunha o espírito dos outros a estimá-lo e amá-lo. Havia um perfeito acordo entre a sua aparência e o seu caráter. Máximo era um homem de bem, na elevada acepção desta frase.

 

Quando ele entrou na sala da viúva, esta estremeceu ligeiramente, e levantando-se foi ao encontro do doutor.

 

— É milagre, doutor! disse ela. Raríssimo aparece aqui de tarde... mas eu agradeço aos céus o ter compreendido que a sua presença nesta casa é sempre um motivo de satisfação.

 

— Se é, lamento que hoje seja um motivo de desgosto.

 

— Por quê? perguntou Helena empalidecendo.

 

— Porque é de despedida.

 

Houve um silêncio entre ambos.

 

— De despedida! repetiu Helena.

 

— Embarco para o Sul.

 

— Algum negócio urgente?

 

— Talvez.

 

— Quando volta?

 

— Não sei.

 

Helena sentou-se, talvez por não poder ter-se de pé; e com um gesto convidou Máximo a sentar-se também.

 

— Que mal lhe fizemos nós?

 

— Oh! nenhum! respondeu Máximo; e se eu contasse os males da minha vida pelos bens destes últimos três meses, tinha motivos para abençoar o meu destino.

 

— Que mal lhe fiz eu? perguntou Helena timidamente.

 

— A pergunta é cruel; bem sabe que nunca me fez mal algum.

 

— Mas sabe que esta partida é uma dor para mim?

 

— Agradeço-lhe a sua amizade.

 

Helena abaixou os olhos, e calou-se; mas daí a alguns minutos levantou-se, e disse-lhe rapidamente, buscando o caminho da porta:

 

— O meu amor, deve dizer!

 

— Amor! exclamou Máximo.

 

E travando da mão de Helena reteve-a ao pé de si, dizendo:

 

— Amor! Ah! repita-me essa palavra que é toda a felicidade da minha vida...

 

— Foi uma imprudência, mas é tarde. Sim, amor, porque eu o amo, e sei que me ama, e sei que me não quer dizer, e se parte agora é para que me não diga nunca!

 

— De perto ou de longe posso adorá-la. Que valem algumas léguas de permeio? Não se adora o Criador apesar do infinito? Deixe-me partir! eu quero conservar este amor acima das suspeitas humanas, em esfera onde o não vejam olhos invejosos!

 

— Mas que lhe fiz eu?

 

— Tanto quanto era preciso para que eu fosse feliz: compreendeu-me, perdoou-me, e mais ainda, retribuiu-me. Mas nem a senhora nem eu podemos fechar a boca do mundo, e é daí que pode vir a minha condenação.

 

— Como? perguntou Helena.

 

— Oh! não aprofundemos a injustiça dos homens. Deixemo-la reinar implacável e impune. Calcule o meu desespero recusando a essência do amor, só porque é de ouro o vaso que a encerra.

 

— Receia então?

 

— Que me julguem mal. Eu sou pobre. Perdi meus pais em criança, e fui educado por uma santa mulher que apenas me deu a fortuna de um bom coração. A senhora é rica, tem à roda de si um cortejo de adoradores. Como me distinguiria a senhora no meio de tantos? Como reconhecer a pureza dos meus sentimentos?

 

— Quem os porá em dúvida?

 

— Toda a gente.

 

— Menos eu. É cruel, Máximo! A sua dor é grande, mas a minha? Eu tinha uma ilusão: a da moça que supõe que os seus olhos estão primeiro que os seus teres. Enganava-me; amam a minha fortuna... mas se eu levanto o meu coração acima de todas essas fraquezas, é que um sentimento puro o encheu para sempre, um amor mais nobre, uma dedicação mais sincera!

 

— Obrigado, se não duvida de mim!

 

— Não é bastante?

 

— Não é.

 

— Não é! Mas sabe todo o alcance das suas palavras? O meu primeiro casamento foi uma aliança de família, e um motivo de gratidão; respeitei meu marido, não o amei. O que eu lhe dava era um coração virgem.

 

A moça dizendo estas palavras tinha os olhos arrasados de lágrimas e de amor. Máximo estava aflito; aquela consciência lutava contra aquele coração, e tudo dependia da força que um deles tivesse. Afinal Helena pediu-lhe formalmente que não partisse. Mesmo quando Máximo não a amasse, era uma obra de misericórdia dizer-lhe que sim. Máximo sentou-se dizendo:

 

— Fico!

 

Mas entre si acrescentou dolorosamente:

 

— Nunca!

 

Nesse momento entrou o coronel. Vinha mais triste que nunca. Apenas olhou para Máximo estremeceu. O doutor estendeu-lhe a mão, e o coronel apertou-a friamente. Helena em nada reparou; só tinha olhos para ele.

 

— Está visto, disse Máximo consigo, devo partir, já este me julga pelos outros.

 

E saiu prometendo voltar de noite.

 

Só quando se acharam sós é que Helena reparou na tristeza do avô. Indagou a causa; o coronel apenas respondeu-lhe por um gesto de aborrecimento.

 

Helena calou-se.

 

— Nada tenho, disse o coronel daí a alguns minutos: ou antes tenho, mas é uma coisa muito particular. A propósito, tenho de comunicar-te dois pedidos de casamento.

 

— Logo dois! disse Helena rindo.

 

— É verdade. O Alves e o Batista pedem a tua mão.

 

— Para eles?

 

— Para os filhos. Disse-lhes que o melhor e mais justo era entenderem-se contigo. Eles devem vir aqui amanhã.

 

Na mesma noite, o coronel saiu dizendo que ia ao teatro. Era coisa rara que o coronel fosse ao teatro sem levar a neta; entretanto Helena não reparou muito nisso.

 

Mas o coronel não foi ao teatro. Apenas se achou na rua, disse ao cocheiro que seguisse para a casa do dr. Máximo.

 

O doutor estava em casa.

 

O motivo da entrevista era simples, mas terrível. O coronel ia exigir de Máximo que nunca mais voltasse à casa dele.

 

— Era minha intenção, coronel; mas nem por isso perco o direito de exigir, saber o motivo...

 

— Sou seu amigo, não quero dizê-lo...

 

— Perdão, coronel, mas a minha honra...

 

— Tem razão! Enfim, dir-lhe-ei. É impossível que haja entre nós e o senhor o menor contacto.

 

— Que fiz eu, coronel?

 

— Nada; mas separa-nos um traço de sangue.

 

— Como? perguntou Máximo aturdido.

 

— Foi seu pai quem assassinou meu filho, o pai de Helena.

 

Máximo ouvindo estas fatais palavras ficou aterrado, porquanto a memória de seu pai, que era uma das forças da sua vida, acabava de receber aquele profundo golpe.

 

— Como sabe disso? perguntou ele depois de alguns instantes.

 

— Sei. O cúmplice acaba de morrer em Barbacena, e revelou tudo. Veja esta carta: este não é o nome de seu pai?

 

— É.

 

— Estas não eram as circunstâncias da vida dele?

 

— Sim!

 

— Perdoe-me, mas é dever meu obrigá-lo a esta separação. Adeus, doutor!

 

— Adeus, coronel!

 

Estava decidido que Máximo devia partir.

 

 

V

 

No dia seguinte, pelas duas horas da tarde apresentou-se Alves em casa de Helena, que já o esperava, e que entreteve a conversa até a chegada de Batista. Ambos iam pedir a mesma coisa; e sentiram-se bem contrariados por se acharem juntos. Cada um resolveu intimamente adiar o pedido oficial. Mas se eles punham, Helena dispunha, e foi ela a primeira que rompeu um curto silêncio com estas palavras:

 

— Ambos os senhores vêm fazer-me idêntico pedido.

 

— Ah! disseram Alves e Batista olhando um para o outro; o senhor também?

 

— Também, responderam ambos.

 

— Também, disse Helena sorrindo.

 

Seguiu-se a estas palavras um momento de silêncio. Helena saboreava aquele constrangimento. Por fim, disse ela:

 

— O pedido é honroso para mim; mas por isso mesmo que a resposta, qualquer que seja, não pode deixar de ser desagradável para um, conversemos antes sobre o assunto, menos como solução que como explicação.

 

— É justo, disse Batista. Pela minha parte, devo dizer que prefiro saber o mais breve possível da resposta definitiva, porquanto mesmo que a solução seja má, ainda assim é melhor que a situação atual de meu filho. A senhora avaliará.

 

— Avalio, disse ela.

 

— Eu estou às suas ordens, disse Alves.

 

— Suponham que eu escolho um dos mancebos distintos que me fazem a honra de pedir a minha mão; quererá ele sujeitar-se a uma condição?

 

— Qual? perguntou Batista.

 

— Eu creio que a todas, disse Alves.

 

Helena continuou:

 

— Para evitar dúvidas futuras, e resguardar a minha ação individual, dizia meu finado marido, de quem herdei a fortuna que possuo, que, se me houvesse de casar segunda vez, celebrasse antecipadamente uma escritura em virtude da qual os meus bens ficassem inteiramente meus, sem ação possessiva nem administrativa de meu novo marido.

 

— Capricho de moribundo! disse Batista piscando o olho.

 

— Sem conseqüências, acrescentou Alves.

 

— Não, replicou Helena, a vontade de um morto é sagrada, e eu quero respeitar a dele. Demais, creio que pensava bem.

 

— Sim, não pensava mal, murmurou Batista.

 

Alves coçava a cabeça sem atinar com uma resposta.

 

— Esta explicação, continuou Helena, acho que era necessária antes de uma solução qualquer.

 

— Sem dúvida alguma, disse Batista. Mas a minha questão não é de dinheiro.

 

— Nem a minha, disse Alves aproveitando aquelas palavras para criar uma situação favorável à retirada; e por isso estranho que a um pedido tão simples a senhora opusesse uma cláusula pecuniária, sem valor para as almas grandes, sobretudo, quando se trata de uma paixão como a que meu filho sente nesta ocasião.

 

— Que velhaco! pensou Batista.

 

Helena sorriu.

 

Alves continuou:

 

— Para lhe provar a grande paixão que meu filho sente pela senhora, basta dizer-lhe que, para acudir aos interesses daquele coração, não hesitei em quebrar a amizade deste amigo ligado a mim por tão largo tempo.

 

— Ah! disse Helena com simulada admiração.

 

— E por quê? porque o filho dele constituíra-se rival do meu, sem dúvida contra a vontade, mas enfim dominado pelos encantos de uma senhora tão formosa...

 

— Et cetera, disse Helena.

 

— Em resumo, disse Batista, és capaz de um sacrifício por mim?

 

— Como?

 

— Desistindo das tuas pretensões?

 

— Se é necessário, estou pronto...

 

— Mas não contam com o meu coração? interrompeu Helena. Suponham que...

 

— Perdão, disse Batista, posso supor o que quiser; mas eu só lhe peço que tenha a certeza de que a paixão de meu filho é indomável, e eu peço-lhe que me dê uma resposta favorável.

 

— Apesar da cláusula?

 

— Pois então!! Que nos importa a cláusula? O essencial para ele é ser amado. Consinta pois que eu lhe leve uma esperança. O rapaz vai embarcar para Europa; e quando voltar...

 

— Em que tempo?

 

— Não sei; mas há de voltar.

 

Helena compreendeu que esta cena não podia prolongar-se, e pôs termo dizendo que no dia seguinte mandaria uma resposta definitiva, porque desejava consultar segunda vez o avô.

 

Batista e Alves, que desejavam mesmo romper uma situação incômoda e ridícula, levantaram-se e despediram-se.

 

Chegando à porta disse Batista:

 

— Que te parece a cláusula?

 

— Uma tolice.

 

— Ou uma velhacaria!

 

Mas cada um deles dizia consigo:

 

— Ou uma arma.

 

E foram tomar um sorvete!

 

Quando o coronel voltou para casa, Helena contou-lhe a cena havida com os dois velhos, e concluiu dizendo:

 

— Mas ainda quando não fossem dois especuladores, e eu pudesse amar um dos filhos sem vexame para mim, ainda assim era impossível.

 

— Por quê? perguntou o velho.

 

— Porque o meu coração está dado.

 

O coronel estremeceu.

 

Helena continuou:

 

— E é agora a ocasião de dizer-lhe, meu avô; eu amo, e desejo casar-me outra vez.

 

— Ah!

 

— Não adivinha com quem?

 

— Adivinho.

 

Helena lançou-lhe os braços à roda do pescoço.

 

— E consente, não? disse ela.

 

— Ele embarca.

 

— Ele!

 

— Sim.

 

— Mas prometeu-me que não.

 

— Disse-me ontem que sim.

 

— Ah! é impossível! Vou mandar dizer-lhe que não vá, que venha ver-me... E sabe por que motivo quer embarcar? Porque é nobre de coração; porque não quer que o confundam com os namorados da minha fortuna! É preciso que ele não parta!

 

— Há de partir, respondeu o velho.

 

— Por quê?

 

— Escuta, Helena, disse o coronel levando-a para o sofá. Se é essa a intenção que o leva a sair, é nobre da parte dele; mas há ainda um motivo que deve obrigá-lo a separar-se de nós.

 

— Um motivo? Qual?

 

— Há entre ele e nós uma linha de sangue; o pai dele matou teu pai.

 

Ouvindo esta revelação, Helena estremeceu, e levou as mãos aos olhos. Era que a recordação da morte do pai ainda a comovia profundamente. O coronel limpou duas lágrimas que lhe caíam pelas faces abaixo. Assim se passaram alguns minutos, no fim dos quais Helena levantando a cabeça disse:

 

— É uma fatalidade que as nossas famílias tenham esse lúgubre ponto de contacto; mas, enfim, ele não pode responder por crimes que não são seus, e o nosso casamento é um perdão que a caridade cristã está pedindo.

 

— Pois quê! insistes? disse o coronel.

 

— Por que não, meu avô?

 

— Mas, Helena, repara que...

 

— Ah! eu não sei guardar esses ódios que vão de geração em geração.

 

O coronel procurou ver se trazia a neta às suas idéias; mas foi impossível. Helena resistiu à argumentação do avô. No fim de uma hora a alternativa era esta: ou ceder ou brigar. O coronel cedeu. 

 

 

VI

 

Máximo, que se preparava para partir, recebeu uma carta do coronel e de Helena pedindo-lhe que lá fosse. Suspeitou o que seria, e resolveu não ir. Mandou dizer que se achava doente, mas que daí a dois dias poderia cumprir as ordens deles. É que então já estaria fora.

 

Continuou, portanto, a tratar da viagem.

 

Mas até os maus se incumbiam de conspiração a favor de Helena. Quando Máximo contava estar livre, aparece-lhe em casa Alves Antas a reclamar-lhe a dívida que o doutor ainda não tinha pago.

 

Máximo pediu ainda uma espera, dizendo que mandaria o dinheiro apenas chegasse ao Sul. Alves não aceitou; Máximo foi obrigado a adiar a viagem a fim de ver se pagava antes de partir.

 

Passaram-se cinco dias sem que Máximo pudesse arranjar nada, nem fosse visitar Helena. Na tarde do quinto dia recebeu a seguinte carta do coronel:

 

Helena adoeceu; é por sua causa. Não há remédio senão a sua presença. Se lhe tem alguma estima não a deixe morrer.

 

Máximo leu esta carta trêmulo de terror; mandou chamar o tílburi e partiu para casa do coronel.

 

Achou Helena de cama, abatida e pálida como uma defunta.

 

Mas a presença dele foi uma espécie de elixir da vida.

 

— És tu! disse ela.

 

— Sim! disse ele.

 

Estava salva; daí a cinco dias levantou-se; e daí a um mês uniu-se pelos laços do matrimônio ao escolhido do seu coração.

 

É inútil dizer que os dois velhos amigos e seus filhos não assistiram à função.

 

E, posto que durante algum tempo estivessem arrufados, Alves e Batista voltaram aos sentimentos antigos, e são a melhor imagem da fraternidade de Pílades e Orestes, com as restrições mentais do interesse privado.

 

La chose n'est pas neuve, et le style en est vieux.

 

 

FIM

 

 

 
dezembro, 2008