É o estado de ânimo do espectador que transfigura a própria transfiguração

(Nathaniel Hawthorne)

 

 

         Quase todas as manhãs o céu de Fortaleza se azula encantadoramente, mas em vez de alegria a cena empresta a Eu um sentimento de tristeza e de inferioridade, como se um vazio ancestral pairasse sobre sua existência. Se não refletisse, acharia apenas o céu bonito e esboçaria um sorriso ingênuo de felicidade; porém a essa altura da vida não pensar é quase irreal. Paradoxos como esse se perpetuam na mente de Eu, principalmente quando ele diz temer a si mesmo, numa espécie de autofobia. E tal sensação nele sofre um medo de matar e de morrer, que o leva incondicionalmente à morte nossa de cada dia.

        

         Assim é a cidade sob o teto azul a amedrontá-lo, ainda, tal qual a primeira vez, quando em um tempo talvez mais propício, sozinho, Eu buscava validades. Cresceram ambos, a cidade firmou-se como um não-lugar, onde estar feliz é escalar uma montanha feito Sísifo; e Eu tornou-se um estrangeiro para sempre, zumbi debaixo de marquises, aos encontrões com tantos fantasmas.

 

         Ajustar-se a este tempo infame que se ergue desavergonhadamente diante da impureza do presente é o maior desafio para Eu. Viver é uma alteração de sentidos em qualquer lugar das épocas. Olhar para o céu sem estrelas é repetir o gesto atávico, apenas isso. Nada de novo há debaixo dele. Se o melhor lugar do mundo é aqui e agora, como predisse a canção, estar ou não otimista é uma questão de inocência.

 

         Só vale a pena a beleza eterna. Tudo o mais é folhinha, não vale doirar a pílula...

 

         Da cidade, restam apenas os escombros de um lugar outrora visível à latitude do desejo. Nada ou ninguém é eterno. E o olhar de Eu não se permite colher avencas coloridas. Decerto, Eu não veio ao mundo para agradar nem a si mesmo. O que é feio tem em sua feiúra a possibilidade da beleza de quem a acolhe, assim como o belo é apenas a superfluidade de um estado de ânimo. Assim, Eu está condenado a resistir, apenas a resistir, a recortar esta Fortaleza, picotá-la, desenfreadamente, até o não mais impreciso dos sensos. E enxergar seus não-limites...

 

         Os pombos sujam o concreto escuro da Catedral e as paredes amareladas do palácio. Alguns deles lançam titicas além, sobre os ombros de Alberto Nepomuceno a reger uma multidão de vendilhões sem templo. A céu aberto, esse estranho recurso de um eterno terceiro mundo. Não fora grave o bater de botas do "estrangeiro" Capistrano de Abreu ao despedir-se tortamente de sua Maranguape, se hoje Eu gostaria de repetir o gesto ante essas complacências do desatino.

 

         Soçobram ante tanta agonia o feio espectro das caixas d’água por detrás da Faculdade de Direito a matar de sede os enfermos de uma antiga peste; a grotesca imagem da casa do carvoeiro português, inválida, monstruosa, implante da arrogância dos dinheiros; o resto do avião vermelho, pétreo, kitsch, impossível de erguer-se ao céu azul; os casarões abandonados pelas lutas inventariais na Francisco Sá mal-assombrada pelo bico de pena de Tarcísio Garcia; e os trilhos dormentes atacados pelo matagal a vivenciar trens risíveis.

 

         Os viadutos escondem o feio negrume do terror, enquanto as passarelas sobre as BR-116 e 222 servem apenas para as manobras noturnas de larápios e acrobacias de afoitos pichadores de aranhas inelegíveis; enquanto na Mister Hull, a marcha lenta vem cosendo a paciência de Eu sem qualquer destino.

 

         A metrópole sofre em sua pele o carcinoma do pretenso progresso. E seu povo se molda e se transfigura, como se acreditasse no novo mundo. Mas em sua estreita e vã filosofia, Eu se divide entre o fracasso da cidade, seu caos, seus paradoxos, sua perversa grandiosidade, e a construção de um olhar alternativo que o possa levar à sobrevivência. Afinal, se nem só de utopia vive o pensar torpe, talvez transfigurar a realidade seja um remédio, menos que uma solução.

 

 

 

março, 2008