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A minha fome é uma tara que se extingue sem palavras

(Javier Posita)

 

E se a hipocrisia é algo tipicamente humano e alencarino, como sobreviver no meio desse vendaval de fantasias, de falsos prazeres, de agruras e de contidas esperanças; como prolongar os instantes dessa vidinha insana com as mais absurdas e estapafúrdias peripécias mentais?

 

E se todos se permitissem olhar para o alto mais invisível e descobrissem o céu de uma infinita ampulheta, e se depois olhassem para baixo e avistassem o chão desse mesmo relógio de areia, será que perceberiam, como habitantes do tempo, o âmago do nó, o espelho de si mesmos refletidos nos grãos desse movediço elemento em um presente marrom?

 

E se num galope de desvarios a mente deserdasse os sintomas de razão, seria possível entrever no espírito dos tontos tantos de cada dia a felicidade ou a apatia tão útil aos alentos dos espertos da cidade em tradução, em contradição?

 

E se... bah! Mais que palavras e retórica vazias fosse dada ao cronista a possibilidade de uma desculpa qualquer para a sua aridez de pensamento, seria aprazível ao leitor este descompasso, este momento sem lucidez ao ritmo de estranhas metáforas?

 

Hoje é assim, Eu, desocupado, resolvendo imaginar-se um animal irresponsável, sem cometimentos, sem pretensões de ser entendido. Um Eu preferindo desmistificar qualquer senso de escrituras, qualquer pleonasmo de megalomaníacos, qualquer falsa candura nos olhares da tribo posta em direção aos seres resignados desta terra em crise.

 

Nas calçadas alteradas, a fome delas ou dos que a construíram é pelo tombo de seus transeuntes. Quanto vale a dor nascida dessa incompetência?

 

Eu, mirando da varanda do edifício, sente que evacua o milagre da beleza. Eu está mesmo é corrompido pela fúria, e assim, de dentro, observa o monstro gigantesco contorcendo-se. Nas entranhas dele, os macróbios Eu e todos nós desalinhamos o sossego. Faz-se de fel e detritos o corpo dinâmico, a Fortaleza nas vísceras em que Eu se analisa perplexo e inválido.

 

Sem saber por onde começar ou encerrar a dor, Eu se enrodilha na própria armadilha das palavras. Profusão barroca de subterfúgios lingüísticos para não dizer que Fortaleza é uma trama infeliz.

 

Na verdade, Eu não gostaria de esconder-se por detrás das máscaras. Afinal, quem passa pelas avenidas da cidade em busca de rotas e metas e soluções não passa de criaturas apocalípticas: sem juízo final decente, todos se parecem com zumbis e espantalhos.

 

Eu nem sabe a razão de tanta descrença ou paranóia. Talvez imite o senso comum que expele alheamentos. Ou, quem sabe, seja mais um arroubo de vergonha pela casa mal armada?

 

Uma vez, era a história bonita que contavam. Nela, havia o romantismo daquilo que se tornou algo parecido com memória. Uma rua da Escadinha, sem estranhamentos, em que Christiano vivia um passado bem presente. Um arraial bem brasileiro, de moura e fé encantada. Um passeio que distinguia públicos, mas cantava em serenatas. Uma praça com bustos e faunos. Uma índia, um guerreiro, uma tapera...

 

Mais de uma vez, outros a Eu disseram que a tradição é a tradução de uma traição. A hóstia consagrada ao Manezinho não se consubstanciava nem era dos donos das terras o anseio pelos rituais de pureza. E Eu, mesmo sem querer acreditar, acabou sofrendo a carne da palavra no intestino do grande monstro que o acolhia.

 

Mas ainda são horas de encarar o que resiste. Resta buscar a esquina, a fresta, o silêncio. O cômodo no escuro. O grilo clandestino. A boca mastigando salivas. A mão presa ao afago amigo. O delírio. O tempo do relógio quebrado. O gesto de calmaria. O mar. A noite ao fim.

 

Assim, Eu, sem nenhum desagravo, fecha os olhos para enxergar. Nadas no que há. Feito o monstro, dentro do qual se alimenta de vazios, adormece por fim  com a sua pouca Fortaleza, como se findasse, sem palavras.

 

 

 

julho, 2008