A literatura judaica brasileira tem sido praticamente asquenazita. Isto é, produto de descendentes de judeus que deixaram a Europa Oriental no correr do século 20, falantes do ídiche, idioma de base alemã com elementos eslavos, hebraicos e aramaicos. Moacyr Scliar, Samuel Rawet, Bernardo Ajzenberg, Cíntia Moscovitch, etc. Judeus sefarditas, de origem hispano-portuguesa que se espalharam pela Inglaterra, França, Holanda, Itália, Oriente Médio e África do Norte estão presentes no país desde 1820, quando se formou a primeira comunidade judaica organizada em Belém — eram imigrantes marroquinos. No entanto, a literatura de ficção seria mais rarefeita entre eles. Mas este é apenas um dos motivos pelos quais a publicação do romance "A Chave de Casa", de Tatiana Salem Levy (Record, págs., R$ ) deve ser assinalada.

         É preciso avisar: não se trata de um livro "típico", cheio de folclore, curiosidades e outros temperos turísticos. Há material étnico no romance, mas isso em função dos questionamentos existenciais que a escritora propõe. Um questionamento feito a partir da errância que marcou o passado da narradora. Descendente de judeus sefarditas da Turquia, cujos ancestrais foram expulsos de Portugal pela inquisição, ela revive no âmbito da família o legado de exílio e insegurança a partir da dificuldade de entender a articulação da identidade do indivíduo com o grupo e o conceito do nacional. Em suma, o que é existir de fato, além das ficções ideológicas?

         Salem Levy concebeu um painel que se sintetiza na voz da narradora e nas vozes que ela cria e torna suas, confundindo-se com elas. Um recurso hábil, que lhe permite lidar de modo desenvolto com as diferentes personagens e camadas de espaço e tempo. Há uma tradição lendária segundo a qual judeus sefarditas guardam até hoje a chave da casa abandonada às pressas na Península Ibérica. A ficcionista reinventa isso no âmbito familiar recente. A chave guardada já não é de uma casa lisboeta ou toledana, mas da residência em Esmirna. O avô entrega a chave à narradora e a incumbe da missão de procurar a casa e parentes na cidade.

         É essa chave que permanece no centro da história, ou das histórias. A narradora desfila épocas e personagens ao longo do livro, para entender o seu presente, se isso for algo possível. Porque as interrogações e as buscas permanecem, dando prosseguimento à aventura iniciada pelo avô, que decide vir para o Brasil, depois seguido do irmão, em busca de melhores perspectivas de vida. Um modo de reviver o passado sefardita e judaico do desenraízamento. Filha da segunda geração, a narradora não aprendeu o ladino, a língua peninsular conservada pelos antepassados e muito menos turco. Fala, além do português, idiomas pasteurizados, o francês e o inglês. Seus pais, militantes esquerdistas, exilam-se em Portugal, onde ela nasce – nove meses depois vem a anistia, a família retorna. A mãe agoniza numa cama e é o grande vínculo familiar da personagem, fonte de dúvidas e uma desconcertante segurança sugerida pela seqüência coerente de diversos tipos do sofrimento que passa pelas gerações.

         Na sua busca pessoal, a personagem passa por Lisboa, onde não há mais casas a serem encontradas e sim um namorado eventual, um fugaz companheiro de viagem. Depois é o retorno ao Rio e ao enfrentamento consigo mesma, com o que ela é, pode ser, ou não. Salem Levy tem visada própria de romancista, soube arquitetar uma estrutura de relações históricas, políticas, éticas, sexuais. De início parece haver certa indecisão, mas em poucas páginas a história toma fôlego. Há trechos que se sustentam sozinhos, como a seqüência do bazar e do banho turco em Istambul, provavelmente o grande momento do livro, ao qual não falta humor: o leitor acaba envolvido pela magia narrativa. A súbita paixão da narradora por uma moça que ela vê no salão de banho é contada com graça, leveza e força sugestiva — não se trata de uma cena banal de homossexualismo e sim de alguns minutos em que a personagem depara a si própria num espelho vivo. Ela, uma brasileira com passaporte português, traços turcos, que não fala o idioma do país nem aquele dos judeus e procura uma casa que nem deve existir mais, vê, naquela moça nua em pêlo, o passado fascinante e a impossibilidade definitiva do reencontro com aquela projeção. Esta, por sua vez, ainda é o reflexo da imagem de Rosa, apaixonada pelo tio-avô da narradora, e que se suicidara pois o pai já tinha contratado casamento para ela. Contraste eloqüente com a liberdade da protagonista de Salem Levy, que se coloca na encruzilhada, anjo olhando ruínas. E dessa maneira estabelece o diálogo com o leitor numa chave universal.

         Nota: "A Chave de Casa" tem tudo para ser transformado numa minissérie.

 

 

[Publicado no suplemento Cultura do jornal O Estado de São Paulo]

 

 

 

 

março, 2008