EXPECTATIVA

 

Se caminhar em sua alma e encontrar

uma sequer expectativa, queime-a.

Faça incêndio tombando sete velas

ou se achar que a contrapartida

é demasiadamente covarde, invés de precavida

apenas reze antes de dormir,

também sete terços.

 

A expectativa é moléstia de cabeça

ou é brincadeira de espírito.

Se não cumprida, vira-se bicho burro

Fica besta, perde o trecho, desamarra o vagão

Tome nota porque o efeito colateral é certeiro:

olha-se no relógio de pulso de dois em dois segundos.

Lá no interior se o combinado é da chuva vim em Agosto

se natureza não honra, o matuto fica doente,

chora na beira da plantação

esquece da mulher e dos filhos, fica egoísta na desilusão.

 

A expectativa é de gente que vê coisa

mas, no amor, vê com o coração.

 

Prepara-se a lenha antes do fogão.

Prepara-se o corpo antes do filho.

Prepara-se o amor antes da comunhão.

 

A expectativa é dor criada e culpa solitária

mas também é se perder procurando um caminho.

 

 

 

 

 

 

½ DOR

 

Ando

lacrimejando

um olho só.

Que dor é essa

que se sofre

de um lado apenas?

 

 

 

 

 

 

SE CHOVE

 

a vida é líquida

bebida teor mil

secreções na cama

frases cuspidas entre fluidos

feliz, a vida é água

amanhã, a vida é sangue de dentro

sometimes, sangue de fora

calotas polares quando vai embora

capilaridade sensual

tesão em gotas e bolhas daquele

a vida é líquida

chope gelado pra desprezar

que a vida é líquida

até o ponto do congelamento

o afeto desatento

a fase da matéria no nosso final.

 

 

 
 
 
 

 
 

SÃO SALVADOR REVISITED

 

Aceito as novas ruas e as novas colorações que o céu propuser

com olhos atentos, partirei alegre às janelas que esperam ser abertas

às veredas que aguardam passos e alguma intenção de voz e vida

mas na alma surge a lembrança daquele sobrado que acolheu meu imenso ânimo

quando às vezes, com terror, escureço a vista pras existências que começam.

 

Há lugares e feitos que não podemos esquecer para dar seguimento à própria história

lá, ladrilhos azuis guardam a inocência dos primeiros medos

a extensa escada ainda é matéria dos meus sonhos

e metáfora do amor que começava a ser vivido pacientemente

como quem avista uma cama macia mas precisa ir degrau por degrau

pra ter a graça de entrar pela casa e adormecer entre seus cheiros e ruídos.

 

São Salvador é minha terra.

Nessa rua nasceu meu Rio de Janeiro inteiro

e o sentido maior do mundo.

Revejo a vizinhança e o balançar das suas árvores

com lágrimas nos olhos, não queria estar anônima do meu endereço.

Faço perguntas tristes diante de sua porta

mas sou outra e ela é outra—

já está habitada e eu tão estrangeira

mas não me estranha

guarda ainda meus segredos pro sono tranqüilo

e não me tira nada do que me deu.

 

São Salvador ainda me encoraja.

Lá é prelúdio de minha peregrinação

é onde parei o mesmo trem de Viramundo

peguei o mesmo boi pelas unhas

saídos da mesma Minas e da mesma vontade de andar.

São Salvador é tão pequena e acanhada que ninguém acredita

em como andei feliz por todo seu asfalto

as pessoas e as sensações que se extenderam.

São Salvador me deu o homem que até hoje me encanta

me deu a certeza de que posso mudar... mudar...

e se me perder, há um lugar pra me buscar.

 

 

 

 

 

 

MARACUJÁ

 

Um verso cretino comove o dia

e nasce dentro de um amor tão lindo

que é o de gostar sem medir

de esquecer pesos e venenos

contracheques e passado

essa coisa minha de ver contente o que é lixo.

 

Esse é o meu acidente do instante

que dura menos que um minuto qualquer

na estranheza de dois brincos vermelhos

na cumplicidade das veias que borram o nada

Eu, uma cadela que agora não entra no cio!

 

Receber os desejos da bela mulher

rasgando os anúncios do botequim

ateando fogo nas fábricas nucleares

enfiando o caralho nas convenções conjugais

e fazendo silêncio enquanto atira o RG no ralo

são os gerúndios mais bonitos para ela

que só espera, em incansáveis banhos de maracujá.

 

 

 

 

 

 

JAPÃO

 

boneca de plástico

medo trem

bala na cápsula

estar ausente

de suas graças

verbais

olhar tóquio

ler sozinha

a placa do desencontro

o pedido é

amanhecer-me

mesmo que não esteja

claro

 

 

 

 

(imagens ©brukselka)

 

 

 

  

 

Cecília Borges (Uberlândia, MG, 1983). Aos 17 anos recebeu o convite da Editora Nacional para publicar seu primeiro livro de poesia. Publicou Resposta (Uberlândia: Editora Nacional, 2001), mesmo não sabendo muito bem o que isso significava. Fez diversas exposições em bares e espaços culturais por aí. Atualmente, está redigindo um novo projeto de intervenção poética e reunindo seu trabalho recente para o segundo livro. Mora há três anos no Rio de Janeiro e é completamente viciada em jazz, vinho branco e Adélia Prado. Edita o blogue Requintada e Esquisita.