Você terá muito medo
de virar a página, "hipócrita leitor". Sentirá tamanho terror que
suas únicas opções serão a de fechar o livro, queimá-lo, tomar uma
drágea de Letex (droga pró-esquecimento do Laboratório Goleman
& Searle), ou desejar, sem sucesso, um retorno humilde e
apavorado ao útero materno. Você, finalmente, entenderá porque
Clarice Lispector escreveu — "nascer me estragou a saúde". A
barata de Kafka, perto do que você conhecerá a seguir, será
fichinha de máquina de enganar bobo, como as que outrora se
permitia consumir para matar o que você tinha de mais precioso: o
tempo. Depois de ler — fica a advertência — você não terá nem
tempo para fugir de Langtônia, nem de si mesmo. Pense bem se
valerá a pena prosseguir. Porque este texto foi escrito com os
únicos objetivos de incomodá-lo, ou de fazê-lo resistir ao impacto
do seu próprio pós-pensar. Não haverá meio termo, neutralidade,
recuo. Preparado? Avance.
Em homenagem a
Christopher Langton, responsável pelo estabelecimento da vida
artificial, o biólogo Thomas Ray, um puta computer-man autodidata,
criou e implantou o sistema Tierra próximo a Santa Fé, meca da
biologia sintética e da primeira reserva de biodiversidade no
ciberespaço. Isso, na remota segunda metade da
década de 90. Ray tornou-se rei de Langtônia, esparramando,
virtualmente, seus organismos digitais através da artificial life wordshop — Alife 2. Ele previu inclusive novas abordagens para robôs
autônomos e para uma classe de novas técnicas computacionais de
resolução de problemas baseadas nos mecanismos evolutivos
geológicos. Até aqui, nenhum susto. É o futuro que fala. E, para
você, ele poderá ser opcional. Ou seja: ou tudo, ou
nada.
Como sempre ocorre
em toda a História, o melhor está por vir. O que fascina é a
sedução do desconhecido. A arqueologia do inusitado. Aventure-se.
Coragem não lhe falta: afinal, você nasceu, vive, tem o limite da
ultima ratio pela
frente. Aproveite a oportunidade. Mesmo porque, adianta-lhe o
filosoeta, o pior de tudo seria você não vir a ser escolhido
para... sobreviver. Ou, ainda, mais pioral, você se tornar, a fortiori, um eterno
imortal, uma espécie de membro da ABL cibernética, um herói, sem
dúvida, mas um lukacsiano "herói problemático", incapaz de
livrar-se de si mesmo.
Ao contrário, os
organismos-heróis de Langtônia apenas suscitavam personalidades;
eles surgiram da "impossibilidade de preencher o quadro ideológico
para o qual deveriam ter sido feitos". Até que a idéia de Ray era
poderosamente boa, plausível, sobretudo por não repetir jargões da
sci-fi, ou recrudescer
à anabiose criobiológica, aos "fermentos de conotações livres", na
expressão de Baudoim Jurdant, abrindo caminho sem limites para o
imaginário. Do passado, prevaleciam em Langtônia "as três leis da
robótica", de Asimov. Nada, porém, de L'utopie et les utopies
(1950), de um Raumond Ruyer introduzindo o conceito nietzschiano
de fernstrenliebe — o
"amor do longínquo e do futuro", se bem que, como um consolo
desenKANTado, há nele uma "nostalgia do porvir" semelhante ao
velho mito de Prometeu.
Nem pense o leitor
ter havido em Langtônia uma Lakmi, ou a mulher-robô com sua dança
obscena como em La chute
d'un ange, do precursor Lamartine. Se seu negócio, leitor, é
ainda comparar, porque você vem da cultura do palimpsesto, pense
então em Murray Leinster que em 1933 imaginava que os deuses
gregos eram produto de mutação radioativa e que a cabeça de
Górgona era um projetor de raio paralisante. Não procure os
hitleristas Goebbels, Goering, Himmler ou Borman em Langtônia,
pois ela era muito diferente da tradição de um Philip K. Dick;
tampouco invente simulacros baudrillardianos entre os organismos
digitais de Ray com famas e cronópios de Cortazar, ou com a
parafernália obsoleta que vai de Pinóquio ao ET de Varginha, do
mito do progresso ao "colapso da cosmologia
racional".
Nada comparável à
"civilização espacial e o tempo dos sobre-humanos cheios de
poder", de Stan Lee; às degenerações biológicas em Van Vogt, ou a
uma "infinita e constante saudade de um mundo cheio de defeitos,
mas um paraíso em relação ao futuro", como em outro Ray, Bradbury.
Langtônia não era o Círculo da Força na acepção de Arthur Clarke.
Na verdade, Langtônia era um entre-lugar, no sentido
"exilado" de Silviano Santiago, um ambiente digital onde mutações
(relâmpagos) programados causavam mudanças aleatórias no código
DNA dos organismos e onde a morte (caveira) eliminava programas
velhos ou defeituosos. Ali, o programa ancestral, um
auto-replicante usado para iniciar o sistema Tierra, mediante três
genes, fazia com que o programa medisse a si mesmo com absoluta
auto-suficiência. Tinha ele, também, um parasita, que o jornal
BoCHIPchos comparou (de novo!) com os políticos neoliberais: um
processador para se auto-replicar pela execução de um outro
organismo que estava nas imediações, produzindo um parasita filho;
e, finalmente, um hiper-parasita, que roubava o processador de um
parasita e com o qual podia gerar dois filhos
simultaneamente.
Langtônia era uma
questão de linguagem C — interessava-lhe evoluir através da mutação (mudando-se os bits aleatoriamente), ou
recombinação (permutando-se segmentos do código entre diferentes
programas), permitindo que a seleção natural, ou melhor,
artificial, pudesse melhorar o código por tempo indeterminado.
Podre de chic, concorda
o leitor? Alguns programas eram gerados — pasme! — por seres
humanos, mas nada faziam além de cópias de si mesmos, clones
franchões na memória do computador virtual. Foram, todavia, os
outros programas, criados pelo computador virtual, que lograram o
poder da seleção
artificial. O sistema provia também um outro, que mantinha o
registro de nascimentos e mortes das criaturas de Ray,
mantendo, concomitantemente, um banco de genes de genomas que
tinham sucesso. Ele facilitava, ainda, as análises ecológicas,
registrando os tipos de interações ocorrentes entre criaturas. O sistema
resultava, portanto, de uma metáfora computacional — admitida por Ray — da vida orgânica, na qual o tempo de
processamento era o recurso "energético" e a memória, o recurso
"material". Tierra era assim um conglomerado de comunidades
ecológicas que se auto-regulavam experimentalmente em níveis de
exclusão e coexistência competitiva, regulação de populações no
contexto parasita-hospedeiro, o efeito de parasitas no aumento da
diversidade das próprias comunidades e o papel do acaso e fatores
históricos na evolução.
Era, na concepção de
Ray, a primeira reserva "natural" do ciberespaço. Com um
diferencial: tudo que era criado em um dia podia ser destruído no
mesmo dia. Importante era salvar as sementes das criaturas, o
que Ray não fazia porque, segundo ele, havia 2 à 32ª potência
sementes aleatórias, quantidade infinita de configurações como
resultado de 50 variáveis ambientais que afetavam o curso da
evolução do Tierra. Eram essas diferentes condições que geravam
outros conjuntos de indivíduos e espécies, virtualmente
presentes. Com uma vantagem distinguida pela esposa do biólogo:
nada precisava ser alimentado.
Aí veio a encrenca.
Terroristas relígio-metafísicos, tementes de que os organismos
digitais de Ray pudessem transformar Langtônia no paraíso dos
andróides, cyborgs e
aberrações biológicas, capazes de detonar mensagens genéticas
através de mutação por transformação acidental, com conseqüências
catastróficas contra a mais-valia operária e naturalmente
ecológica — deram o grito, armaram-se de argumentos retóricos
contra a irracionalidade do imaginário de Ray. Alegaram os
intermilenares conservadores que 1) o sistema Tierra causava
angústia nas crianças, provocava inibição das pulsões adultas,
espalhava a incerteza trabalhista com a ameaça do desemprego em
massa; 2) que o programa era ateu, mas pressupunha os cientistas
da computação brincar de Deus mediante a manipulação da vida
humana; 3) os perigos in
vitro superavam os benefícios; 4) Tierra teria imediatamente
de deixar de existir para nunca ser real no futuro; e 5) exigiram
fosse tudo deletado e Ray submetido a uma lavagem cerebral. Ray, é
claro, não concordou. Exauriu-se em defesa do seu projeto. "No
fundo, galera vintessecular, todos vocês têm medo de si mesmos.
Minhas criaturas são
politicamente ecológicas e corretas, mais úteis à Terra e ao
Tierra do que seus mutantes da Cidade de Clifford Simak, que
ensinam segredos técnicos às formigas e provocam a emigração
humana para Júpiter. Vocês estão cometendo um ledo ivo engano;
gerando uma distopia com visão moralista e pessimista do progresso
científico. Meu objetivo, corroborado por Foucault, quer 'garantir
o mundo contra a morte', ou seja, contra a previsibilidade total e
absoluta. Não há conflito entre o que faço e o que vocês deixam de
fazer. Afinal, já dizia o poeta e xará Thomas Gray — 'quando a
ignorância é felicidade, é loucura ser sábio'. Até mesmo a
consagração da dúvida é uma tradição religiosa que remonta à
Aeropagítica de John Milton. Vocês alegam que crianças
langtonianas sentem angústia causada pelo Tierra e hiperbolizam
sua própria desinformação e seu próprio preconceito. Não se torna
nada pós-moderno por decreto, mas remetam a William Blake em Auguries of innocence e
terão uma resposta convincente: 'Quem ensinar a criança a duvidar — nunca sairá da cova fétida. — Quem suspeita a fé da criança — triunfa sobre o inferno & a morte'. O que vocês tentam me
impingir é uma compilação de idéias chauvinistas, esperanças e
medos antigos e pouco imaginativos, disfarçados de fatos
refutáveis num Universo que se sabe em expansão. Vocês, sem
experiência de liberdade, seriam capazes de suportar o ônus do
atraso, do recrudescimento, da História? Não! Minhas criaturas ecológicas não
são como as plantas vingativas que dizimam a humanidade como as de
O dia das Trífides, de John Wyndham. Vocês pretendem uma nova
inquisição? Argumentam com a doxa que o computador, ao contrário
do bem, pretende dominá-los, reproduzindo, clonando mesmo as
forças elementares da natureza, para em seguida e sem
contemplação, controlar as suas forças pulsionais; ou, como narra
Zamiatin em Nós, conquistar a Fome algebricamente e desencadear o
Estado Único contra o outro governante do mundo — o amor, e tudo
reduzir à ordem matemática não da consciência, mas da máquina?
Coisa mais antiga! Ao contrário de vocês, que como exploradores
mecânicos fizeram a devassa da natureza (obs.: leitor, releia,
neste livro, o poema A 6ª extinção), não criei Tierra com
tecnologia predatória, tampouco me incluo entre os cúmplices da
paisagem industrial do Ocidente, paisagem do inferno e da morte
suicida que vocês aceitam por temor ao esvaziamento absoluto do
espírito humano pelo titanismo, aindfa que arvorem-se,
culturalmente, em defesa intransigente da ecologia. Hipocrisia!
Vocês torcem para que Tierra produza monstros bíblicos para
invadir sua cidade e temem que esses devorem os ímpios, os
pecadores, os apologistas da escatologia. Vocês vêem o lado
weelsiano do Tierra, que não existe, não é fato, quando deviam se
lembrar de uma frase do conto We all die naked, de James
Blish, que diz: "Nós não resolvemos o poblema. O problema é que
nos resolveu".
De nada adiantou o
discurso de Ray. Os utopistas de antanho bateram o pé e, por
igual, tergiversaram com a mesma eloqüência. Tudo inteligível,
posto que típico dessas intrigas e adversidades. Juntos, eles não
temiam Tierra uma mera previsão do futuro, mas uma vivência
imaginária de faltas e/ou excessos experimentais no real
histórico. E nele, a utopia presumível implicava em um
desenraizamento do tempo e na idéia contraproducente de que a
perfeição limitava e esmagava as potencialidades humanas. Além, é
óbvio, de se sentirem freudidos, porque o
superego, que representa as tradições e os ideais do passado,
resistia sempre aos impulsos da nova situação criada por Tierra em
Langtônia, mudança sentida como a morte dolorosa de uma condição
vivida in natura, uma
vez que, reitera-se para melhor compreensão do leitor, as
exigências do superego estão ancoradas num passado remoto cujas
formas tendem a ser conservadas no vinagre de uma poderosa
dinâmica psíquica inconsciente. O que, al dente seria o mesmo que
afirmar o seguinte: em face da suposta catástrofe decantada em
Langtônia pelos relígio-metafísicos, em relação à nova ordem
tecnocrática vigente em todo o mundo, qualquer mudança alteraria
fundamentalmente as relações ideológicas entre os indivíduos,
menos, contudo, entre os indivíduos ou criaturas gerados pelos
organismos digitais de Ray. O conto Uma rosa para o Eclesiastes,
de Roger Zelazny, ilustra bem esse temor moderno; a similaridade é
lingüística: da mesma forma que os langtonianos não entenderam a
linguagem C do sistema
Tierra, mormente porque apenas parte da população real havia
superado o analfabetismo tecnológico e concluído a transição entre
datilografia e software. Na narrativa
ficcional Gallinger, um técnico em Lingüística, da terceira
expedição enviada a Marte, torna-se tradutor para o inglês dos
textos sagrados do planeta vermelho, em cuja missão veio a
descobrir que uma catástrofe. Vinda de algures do Universo, havia
tornado estéreis todos os homens marcianos e quejandos cósmicos,
donde ter sido escolhido pela matriarca para fecundar Braxa e
assim fertilizar o planeta. Concluída sua ordem, foi enxotado e,
diante da perspectiva de não ver o filho e por ter sido usado
enquanto reprodutor, o
wasp comete suicídio.
O que Ray
desconhecia: o sistema Tierra estava, por si mesmo, como um
digitalizado "fermento de conotação livre", gerando mudanças
aleatórias no DNA dos organismos, levando o processador do hiper-parasita a produzir
prole bastarda que, por não identificar a célula-mãe virtual
pôs-se a alterar artificialmente o pathos das criaturas. Ray, ao tomar
conhecimento disto, passou a simplesmente eliminar a potência 2/32
de sementes aleatórias, resolvendo o problema sem, entretanto,
convencer os langtonianos reais de que estava certo. Os
langtonianos derrubaram-no com um aforisma de Yevgueni Zamiatin:
"pois só o que se mata pode ser ressuscitado". Segundo Barthes,
que lá esteve via internet, aquilo era a fala escolhida
ideologicamente pela História para converter o próprio real
histórico num natural.
Lévi-Strauss havia feito leitura semelhante, ao analisar a
Revolução Francesa. Literariedade: literatura enquanto efeito
social, mas Ray lembrou-se de Resnais dizendo em A guerra acabou:
"O que se vê, o que se ouve não é suficiente. Existe também o que
se imagina". Ele, Ray, não tinha Tierra como projeto de provocação
do imaginário coletivo, contemporâneo, tampouco uma espécie de
sonho controlado, um jogo digital de significados intercambiáveis,
mas tinha uma certeza assumida pelos langtonianios — "o sonho da
razão produz monstros".
O pior viria em
seguida. E se você, leitor, conseguiu chegar até aqui sem sentir
um enfarto intelectual, um pití metafísico, náusea ou indiferença,
há que prosseguir ao grand
finale deste poema-novela. Toda a população langtoniana estava
sendo escamoteadamente ludibriada pelo governo tecnocrático. No
silêncio da noite, comboios de lixo de toda espécie foram sendo
enterrados na periferia da city, sob alegação de o
mesmo vir a ser reciclado, gerar empregos e um novo tipo de
combustível específico para eletrodomésticos, capaz de economizar
energia elétrica e solar. Bem que Ray havia não só desconfiado da
súbita operação em Langtônia como, numa atitude de defesa do
Tierra, tentou alertar a população contra o destino do lixo ali
conservado subterrâneo. Como De Tohil Vacca, personagem do já
citado We all die
naked, de James Blish, o biólogo intransigiu ao dizer que,
como em Nova Iorque, já não se podia mais resolver o problema do
lixo, porque não havia mais solução possível: o lixo condenaria
qualquer possibilidade de sobrevivência geológica não apenas da city, mas do Tierra e na
Terra, pois desconhecia-se a real intenção de Langtônia ter-se
transformado num museu de dejetos, um dos maiores do planeta.
Bingo!
Dados e informações
cruzados por hackers,
talvez contratados como terroristas da informática, aproveitando o
efeito colateral da energia do lixo, criaram um vírus
poderosíssimo do qual os organismos digitais do Tierra passaram a
se alimentar de modo compulsivo. Chamaram-no bug. E seus criadores
tornaram-se anonimamente conhecidos como cabeças de bug. Somente
depois que o vírus atacou e mudou o comportamento de fornos de
microondas, cafeteiras, sistemas de segurança e computadores
domésticos é que os langtonianos deram o braço a torcer ao help de Ray, que conseguiu
eliminar o famigerado protossecular W32MYPICS.Worm, e listar a
virulência prevista para atacar em qualquer dia do ano 2000, como
o W97M/MMKV.A,B e C, o ICQ Greetings e o Panthogen (todas as
segundas-feiras); os que não atacam em data específica, como o
Polyglot ou Y2Kcount e o Worm.Fix 2001, listando em site todos os que
atacariam no primeiro mês do 3º milênio. O problema, contudo, não
estava definitivamente resolvido: o bug ainda estava servindo
de alimento para o Tierra e poderia, velozmente, atingir a 1
bilhão de usuários em rede pelos programas já consumidos, como o
Viruscan, Norton Antivírus e o Innoculate IT, além de terem sido
disponibilizados e-mails de consolo pela
IBM, Compaq, Microsoft, Bios e até do Departamento de Estado
norte-americano para quem pensava em viajar — http://travel.state.gov/y2kca.html.
Ray tentou explicar
à população que pouco ou nada essa operação daria resultado, uma
vez que, hoje, existem vírus que não precisam de anexos, pois já
vêm embutidos no código HTML do e-mail. Os langtonianos,
ante o desespero, optaram por transformar Ray de vilão a salvador
da pátria e ele só aquiesceu, não pelo juramento científico, mas
pelo seu sistema Tierra, cujo objetivo ecológico estava exposto ao
fracasso pela ação ignóbil e bárbara dos hackers delirantes com o
iminente triunfo do mal. Thomas Ray lembrou-se, então, de outro
xará seu, o escritor de FC Thomas Disch, autor de Genocídio, em
cuja obra os seres de toda espécie são eliminados à base de
inseticida por extraterrestres que fazem da Terra um vasto campo
agrícola experimental. Para os Ets, o conceito de "humanidade" não
tem a menor importância, e os terráqueos são dizimados como praga
numa plantação. A persistir o vírus bug, seu projeto ecológico
Tierra seria convertido numa praga igual ou pior à de Genocídio.
Como o sonho, segundo Barthes, "essencializa a vida em destino",
Ray concluiu que a solução estaria na capacidade de ousar, de
afrontar a realidade, ainda que viesse a comprometer in totum o seu trabalho e
sua credibilidade científica já posta em xeque em Langtônia. Com
base em pesquisadores da Universidade do Texas em Dallas, EUA, que
desenvolveram método para produzir substitutos sintéticos para
anticorpos — proteínas que reconhecem e combatem substâncias
estranhas chamadas antígenos, no corpo humano, mediante a
identificação de pequenas moléculas denominadas peptídeos, e de
sensores de agentes biológicos -, idéia de purificação in vitro coordenada por
mais um xará de Ray, Thomas Kodadek, o biólogo de Langtônia
fechou-se em seu laboratório com a esperança de criar, à
semelhança dos anticorpos substitutos de Dallas, um antivírus que
salvasse o Tierra e, por extensão, a Terra. Ray foi encontrado
desfalecido, barbado, faminto e sedento três dias depois. Levado
ao hospital para tomar soro, fazer exames e restabelecer-se da
maratona antivirótica, confessaria seu fracasso: o bug reagiu incólume a todo
o seu conhecimento biológico-informático. Os langtonianos que o
visitaram olharam-no com desprezo e, igualmente desiludidos,
abandonaram-no à própria sorte. Levas de gente foram abandonando a
city em regime easy rider. As
conseqüências do bug o
leitor já sabe: saques, black-out-éclair, atos
incendiários, vandalismo, inúteis concentrações de lideranças
comunitárias e religiosas, quebradeiras, frustrada cobertura
rádio-televisiva, congestionamento rodoviário, acidentes mil,
crianças perdidas, alguns suicídios de ocasião, esgotamento de
medicamentos e hospitais saturados, impotência policial,
megaentropia. Um day
after em nível micro. Um Armagedon provinciano. Um horroshow
cibernético.
Em algum lugar, os
rackers festejavam vitória contra a (des)ordem estabelecida, a
fragilidade humana, a ineficácia da ciência, em algum lugar.
Faltava pouco para o bug materializar-se nos
organismos digitais, transformar-se em seres reais alienígenas e
acabar com a vida. Lastrou-se com a velocidade do pensamento, de
modo que ao chegarem em outra city, os langtonianos já
encontravam ali os mesmos sintomas de caos. E não foram poucos os
que se deixaram ficar pelo caminho apocalíptico, imbuídos apenas
do chavão da fé salvacionista: "Seja o que Deus
quiser".
Ninguém
sabe, porque ninguém viu, como Ray reagiu à própria morte, e de
volta ao laboratório pôs-se a refletir insanamente sobre os
anátemas langtonianos, detendo-se no de Zamiatin: "pois só o que
se mata pode ser ressuscitado". Eureka!, monologou o moribundo
biólogo. Lembrou-se de Alphaville, de Godard. Ligou o computador e
iniciou a digitação de textos de memória, usando-os em rede como
antivírus contra o bug.
Ao esgotar sua reserva pessoal, apanhou livros diversos e
aleatoriamente foi gravando e salvando fragmentos de poesia no
micro, no laptop,
enquanto repetia, ainda débil, que "só o que se mata pode ser
ressuscitado". Surpresa! Ray observou que o bug tinha alergia à poesia
como o ser humano ao ácaro. À proporção que os poemas iam fazendo
sentido, o vírus bug
tornava-se non
sense, e apagava-se, até deixar a tela do computador desintoxicada,
saudavelmente branca, de novo cheia de poder. O Tierra e a Terra
estavam salvos.