Capa da edição nº 25 da série Circuito Atelier da Editora C/Arte, 2004

 
 
 
 
 

 

Amadeo Luciano Lorenzato (1900-1995), que conheceu Picasso e Matisse nos famosos cafés Lê Dome e La Coupole em Paris, França, é provavelmente um dos últimos artistas modernos na história da pintura brasileira. Os seus trabalhos, longe de serem primitivos ou naïfs, possuem uma técnica e requinte singulares: foi o único de que se tem notícia a usar a textura feita com um pente, reavivando formas e resplandecendo as cores em papelão forrado de tela ou eucatex. Podemos confirmar essa observação diferenciada no volume nr. 25 da série Circuito Atelier (Editora C/Arte, Belo Horizonte, MG, 2004) dedicado a Lorenzato, numa longa e esclarecedora entrevista feita por Janaina Alves Melo.

 

Além da entrevista, o livro apresenta uma série de críticas construtivas feitas por estudiosos, jornalistas, galeristas e escritores mineiros. Numa delas, de outubro de 2000 — cinco anos após a morte de Lorenzato —, o jornalista Rodrigo Moura do jornal O Tempo, a partir do aparente equilíbrio das formas, raciocínio plástico e linguagem artística erudita — veremos adiante que Lorenzato viajou por toda a Europa — do pintor, vai ao ponto central, que o diferencia dos demais:

 

"Então, quando vemos nos seus quadros o impulso de geometrização, a ordem compositiva construída, o questionamento da perspectiva renascentista, a sublimação da cor, a busca de suportes 'não artísticos' e o uso de técnicas radicais, temos a certeza de estar diante de um artista moderno. E, por que não?, um artista popular moderno. Nesse sentido, a obra de Lorenzato aponta para uma série de dicotomias que ampliam ainda mais seu poder de instigação. Velho e novo, riqueza e pobreza, fontes eruditas e populares, contenção e explosão, Velho e Novo Mundo, simplicidade e complexidade, e por aí adiante, são extremos que delimitam sua obra e que aparecem nela com um poder de síntese raro — mesmo entre muitos dos nossos modernos mais incensados".

 

 

       Sem título, Lorenzato, Óleo sobre tela, 70X61 cm, 1971, Coleção particular

 

Os temas e alegorias explorados por Lorenzato, que vão dos retratos, naturezas-mortas, passando pelas paisagens — o céu, as árvores e as estradas são os motivos prediletos do pintor — e as famosas cenas de pessoas com latas d'água nas cabeças ao pé da serra em Belo Horizonte, MG, revelam aquilo que o pintor francês Henri Rousseau (1844-1910) mais primava num artista: a síntese e o compromisso com a liberdade de criação. Tanto a liberdade temática quanto a combinação de cores, realinhando a narrativa dos elementos articulados pelo pincel, sem se apegar às estruturas estilísticas predeterminadas.

 

É nesse tom que caminha a brilhante carreira de Lorenzato pelo resto da sua vida, independentemente de linhas e correntes em voga. Para ilustrar essa postura, já temos em 1948 a confirmação da liberdade autoral no verso de um trabalho do pintor, com os seguintes dizeres, revelando uma espécie de síntese própria: "Amadeo Luciano Lorenzato. Pintor autodidata e franco-atirador. Não tem escola. Não segue tendências. Não pertence a igrejinhas. Pinta conforme lhe dá na telha. Amém".

 

 

Fonte Luminosa, Lorenzato, Óleo sobre tela, 45X35 cm, 1972, Coleção particular

 

Amadeu Luciano Lorenzato nasceu em Belo Horizonte, MG, no dia três de janeiro de 1900. Era filho de emigrantes italianos, que vieram procurar novas oportunidades de trabalho com a construção da capital mineira, na virada do século. Seu pai, Vitório Lorenzato, inicialmente trabalhou como carpinteiro e depois, verdureiro. Ele construiu uma casa no bairro Barro Preto — onde se concentrava a maior parte da colônia italiana da cidade — e estimulou o filho a estudar e a trabalhar para ajudar no orçamento doméstico. Na infância, uma professora percebeu o talento artístico de Amadeo Lorenzato e alertou o pai. As primeiras noções do ofício de pintor de paredes, ainda menino, aprendeu com o italiano Américo Grande. Em seguida, tornou-se ajudante do pintor Camilo Caminhas. Foi assim até o final da década de 1910.

 

Em 1920, Belo Horizonte sofre uma grave epidemia de gripe espanhola. A mãe de Lorenzato adoece e é aconselhada a sair da cidade. A família vende tudo em Minas Gerais e embarca para Gênova, seguindo em direção a pequena cidade de Arsievo, norte da Itália, lugar de origem da família paterna. Lorenzato, com a experiência adquirida em Belo Horizonte, MG, logo encontra trabalho como pintor parietal, numa cidade devastada pela Primeira Grande Guerra. Em 1925, ruma para Vicenza, onde freqüenta pela primeira vez uma escola de artes, a Real Academia de Arte, na Galeria Olímpica, iniciando aí o seu trabalho como pintor de cavaletes.

 

Em 1926, chega em Roma à procura de trabalho. Conhece o pintor e caricaturista holandês Cornelius Kessman. Surge uma grande amizade entre ambos. Juntos passeiam nos finais-de-semanas para desenhar as paisagens romanas e visitam museus, igrejas e palácios. Lorenzato torna-se esperantista e deixa os cabelos crescerem. Com Kessman, programa uma viagem pela Europa, numa bicicleta acoplada a um reboque. Parecem antecipar o movimento hippie, que aconteceria somente mais de 30 anos depois. Iniciam a viagem em 1928. Da Itália passam pela Áustria, Checoslováquia, Hungria, Bulgária e Turquia. No trajeto param nas principais cidades desses países, apresentam-se como étudiants d'arts, e pintam a guache pequenos cartões de paisagens que eram vendidos às pessoas, para custear a turnê. Chegam em Istambul. Lorenzato, que tinha o passaporte italiano, foi impedido de seguir até o Oriente. Kessman vai parar na Rússia. De Istambul, Lorenzato parte para Bruxelas, Bélgica, para trabalhar na construção civil.

 

 

  Noturno I, Lorenzato, Óleo sobre madeira, 68X45 cm, 1981, Coleção particular

 

No final da década de 1920, Lorenzato tem nova moradia: Paris, França. Participa como operário da construção da Exposição Colonial Internacional, visita os principais museus, galerias e exposições de artes plásticas, e freqüenta os cafés noturnos de Montparnasse, ao lado de Picasso e Henri Matisse. Em janeiro de 1930, morre seu pai. Retorna para a Itália e trabalha no sítio da família em Arsievo até 1934. Transfere-se para Montevarchi, perto de Florença, a pedido de uma tia, para ajudar na direção de um restaurante. Lá, conhece a garçonete Emma Casprini, com quem se casa logo em seguida. Com a esposa, vai morar em Vicenza, depois em Castelnovo, onde constrói um novo ateliê. Em 1936, nasce seu único filho, Lorenzo.

 

Durante a Segunda Guerra Mundial alista-se na brigada civil. Começa a trabalhar numa fábrica de combustíveis usados pela indústria bélica italiana. Mais tarde foi mobilizado, com outros operários do seu país, para trabalhar num depósito de munição da marinha germânica, em Hamburgo, Alemanha. A intensificação dos bombardeios na guerra destrói a sua casa e ateliê em Castelnovo. O interessante na história de Lorenzato é a coincidência de ter uma casa numa cidade que possuía um fortificação estratégica, um quartel geral,  com soldados alemães e italianos, a qual foi tomada por integrantes da FEB (Força Expedicionária Brasileira) em março de 1945. A história continua com o retorno de Lorenzato à Itália, coincidentemente com a rendição dos paises do Eixo. Terminada a guerra, o governo brasileiro oferece passagens de volta para quem quisesse se repatriar, assim Lorenzato, junto com a família, decide retornar ao Brasil.

 

 

Sem título, Lorenzato, Óleo sobre tela, 42X40 cm, Sem data, Coleção particular

 

Desembarca sozinho no Brasil em 1948 e vai trabalhar em Petrópolis, RJ, num hotel, com um amigo que conheceu na viagem de navio. Junta dinheiro para pagar a passagem da família da Itália para o Brasil. Nesse período, faz uma série de pinturas e aquarelas sobre a Serra de Petrópolis. É justamente numa dessas telas, ainda preservada, que o artista escreveu: "Amadeu Luciano Lorenzato. Pintor autodidata e franco-atirador. Não tem escolas. Não segue tendências. Não pertence a igrejinhas. Pinta conforme lhe dá na telha. Amém". Com a chegada da família, decide voltar a Belo Horizonte. Entre 1950 e 1955, trabalha na construção civil. Em 1956, acontece uma tragédia, ao realizar a pintura externa de dois apartamentos, sofre uma queda, quebrando a perna em vários lugares.

 

Aposentado precocemente, Lorenzato resgata a pintura artística. As várias caminhadas por Belo Horizonte, mesmo mancando, propiciam a execução de diversos desenhos, croquis e esboços de futuros quadros. Nesse período, prepara a sua própria tinta em seu ateliê e finaliza alguns trabalhos com o uso de pentes — sua marca pessoal nas artes plásticas — herdados de sua antiga profissão como pintor de paredes. Até 1964, a obra de Lorenzato fica restrita ao núcleo de familiares e amigos. Até que toma a decisão de visitar a Galeria Grupiara e apresenta alguns quadros ao jornalista e crítico Sérgio Maldonado Vianna. Foi o começo do reconhecimento público do seu talento artístico. Após esse encontro, em 1965, participa de duas exposições (as primeiras em sua vida) no Minas Tênis Clube, em Belo Horizonte, MG. Em 1967, realiza a sua primeira individual, também no Minas Tênis Clube.  

 

 

Sem título, Lorenzato, Óleo sobre eucatex, 60X52 cm, 1983, Coleção particular

 

Entre o final da década de 1960 e início dos anos de 1970, realiza coletivas na Galeria Guignard, Galeria Minart e Galeria Excelsior, em Belo Horizonte, MG, e no Grande Hotel de Araxá, MG. Em 1973, é selecionado para representar o Brasil na Terceira Trienal de Bratislava, Checoslováquia. Nesse mesmo ano a exposição foi vista no Petit Palais, Paris, França. Na década de 1970, realiza várias exposições pelo Brasil. De acordo com os críticos, nesta época, já se observa uma mudança na postura temática de Lorenzato, ao explorar questões ecológicas e ambientais que o acompanhará pelo resto da vida. Aos 81 anos de idade (1981), realiza mostra individual com a pintora paulista Dalva na Galeria Brasiliana, em São Paulo, SP. Seus trabalhos integram, durante a década de 1980, inúmeras exposições pelo Brasil e exterior. Em 1988, expõe em Roma, Itália, dentro do Projeto de Intercâmbio Cultural Brasil-Itália.

 

Em 1990 Lorenzato comemora 90 anos de idade com uma grande mostra individual na Manoel Macedo Galeria de Arte, Belo Horizonte, MG. No ano seguinte, nova exposição individual na Itaúgaleria, Belo Horizonte, MG. Durante a década de 1990, expõe em vários locais do Brasil. Em janeiro de 1995 (ano de seu falecimento), realiza ainda em vida sua grande mostra retrospectiva: Lorenzato e as Cores do Cotidiano, no Museu de Arte da Pampulha, Belo Horizonte, MG, com curadoria de Paulo Rossi e texto de Cristina Ávila. Lorenzato possui obras nos acervos da Fundação Clóvis Salgado, Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Museu de Arte da Pampulha, fundações, universidades e acervos particulares de vários estados do Brasil e exterior.

 

 

       Pampulha, Lorenzato, Óleo sobre tela, 34X30 cm, 1972, Coleção particular

 

A grande diferença dos quadros de Lorenzato, admirador dos impressionistas e do contemporâneo falecido "fauvista" mineiro, Inimá de Paula, em relação aos artistas primitivos, naïfs e à própria pintura fantástica e detalhista do francês Henri Rousseau é, além de ter estudado na Europa — mesmo que seja por pouco tempo —, o fato de que seus quadros não obedecem a qualquer itinerário preestabelecido. Não faz curvaturas nas técnicas elaboradas pelas academias, nem tampouco se aterra num fazer ingênuo. Muito menos, segue um lastro exótico nas suas composições.

 

Trata-se de uma criação espontânea, assegurada na independência de julgamentos estéticos precipitados, cuja expressividade e fundamentos estão alicerçados em sua visibilidade própria. Pois o tratamento que é dado às cores transparecem uma espécie de "estado atemporal da arte", que não pende para qualquer tipo de extremismo artístico. Vai além, alterna uma comoção moderna, definindo-se em formas e resoluções sintéticas despojadas de interesses facilitadores ou efeitos miraculosos para representar as aparências da realidade. 

 

As cores pulsam em desenhos concentrados. A obra de Lorenzato nos faz lembrar o desejo estético de Paul Gauguin: "A cor é capaz de alcançar aquilo que é mais universal e, ao mesmo tempo, mais evasivo na natureza: sua força interior". As cenas vibram, falam por si. As telas de Lorenzato não possuem a opulência de um Antônio Poteiro. É uma pintura breve, numa figuração rica e elaborada, produto de uma técnica própria. Os elementos formais estão distribuídos à sua maneira, de forma aparentemente equilibrada e sempre perseguindo a coerência interna no uso de pigmentos realçadas por matizes fortes e expressivas. Vigorosas pelo entalhe e a experimentação do pente arranhando o suporte, produzindo um certo "efeito tensional cumulativo" na autonomia da obra ao expor a sua visão plena da realidade acompanhada de um sentimento humano contemporâneo e ecológico conscientes. O principal é que é pela pintura que Lorenzato se realiza e não pelos motivos e temas escolhidos. É o tipo de pintura elevada, amadurecida, arguta, sensível, perfazendo uma alegoria universal em cores sempre em movimento contínuo.

 

Cada leitura dos seus quadros enriquece o olhar e aguça o espectador em torno da singularidade do artista e a sua concepção intrínseca, que alguns ainda ousam achar ingênuas. Quando na realidade, é o contrário, traz a síntese moderna no plano estético, em consonância com as palavras objetivas de Paul Klee: "A arte não reproduz o visível; ela torna visível".

 

 

 

 

março, 2008