O tempero do amor

 

 Seu Pereira e Dona Mirtes são casados há vinte anos. Para a festa de comemoração desse aniversário Seu Pereira chegou ao luxo de servir vinho aos duzentos convidados. "Não é argentino, é de Jundiaí", dizia então, como que justificando-se. Dona Mirtes havia ganho na véspera uma pulseira de pérolas cinzentas, que exibiu na festa junto com seu vestido amarelo-gema com bolinhas roxas, pois achou que combinava.

Tudo começou quando a jovem Dona Mirtes, querendo comprar seis pães, um leite e duas paçocas, entrou na padaria onde o jovem Seu Pereira trabalhava. Dona Mirtes cruzou seu olhar com o olhar do Seu Pereira, que estava do outro lado do balcão e quase perdeu a ponta do dedão enquanto fatiava presunto gordo pra outra cliente. Na hora, olhando para os lados e reprimindo um sorriso espontâneo, ambos sentiram-se interessados, mas paralisados pela timidez. "Seis pães, por favor, dos mais branquinhos...". O timbre da voz de Dona Mirtes fez Seu Pereira vencer a timidez. Sim, Seu Pereira ousou: entregou-lhe o saquinho com seis pães e mais um sonho, feito no dia anterior, mas ainda bastante apresentável: "Isso é pra você", disse então Seu Pereira, sentindo a confiança crescer dentro do peito. Dona Mirtes aceitou o sonho, e não conseguiu mais reprimir seu sorriso.

Daí pra frente Dona Mirtes só comia o pão do Seu Pereira. Os dois pombinhos, apaixonados, começaram a conversar sobre assuntos corriqueiros, enquanto Seu Pereira pegava um saquinho e punha dentro os pães pra Dona Mirtes. Mas logo trocaram seus telefones e começaram a se encontrar. O casório foi espetacular. O pai de Dona Mirtes, Seu Waldisney, (que não é ninguém menos que o famoso "Wal-Wal da navalha" dos tempos da bossa nova) havia encomendado várias caixas de bebida, e a comida era boa como a de um restaurante. Havia até garçons "especialmente contratados", como dizia o Wal-Wal, servindo as mesas de armação de ferro que logo foram afastadas pra que todos pudessem dançar animadamente. Consta que Wal-Wal gastou nessa festa quase todas suas economias, mas a banda contratada era das melhores, trezentos fogos de artifício coloriram o céu noturno após o corte do bolo pelos pombinhos e ao que se sabe ninguém que tenha comido maionese passou mal depois. Naquela ocasião os destinos de Seu Pereira e Dona Mirtes uniram-se irreversivelmente.

Vinte anos depois os dois continuam tão acesos como na tarde em que se conheceram. Dona Mirtes faz feijão com banha de porco, já que Seu Pereira gosta assim. Não é raro ela queimar as golas das camisas do Seu Pereira, esquecendo do ferro de passar roupa e lembrando-se como numa ilusão dos músculos do braço esquerdo do Seu Pereira contraindo-se, quando certa vez ele torceu o pescoço de uma galinha. Seu Pereira às vezes leva Dona Mirtes na quermesse de domingo, dá-lhe dinheiro para comprar vestidos ou sandálias novas e compra algodão doce para os dois. É comum Seu Pereira colocar às escondidas trufas e bilhetinhos insinuantes nas bolsas e na gaveta de roupas íntimas de Dona Mirtes, que se retorce toda por dentro quando os encontra e corre pra cozinha pra retribuir o agrado com o doce de abóbora, que faz Seu Pereira salivar como um raivoso.

Quase todos os dias, Seu Pereira levanta-se, apruma-se e sai pra rua, pra saber das novidades políticas e futebolísticas com amigos que moram ou trabalham nas redondezas, como taxistas, guardinhas e donos de banquinhas de jornal. Por volta das dez Seu Pereira sente-se cansado e senta-se numa das mesas do bar do Seu Neílson. Enquanto assiste aos programas culinários e infantis, Seu Pereira hidrata-se com cerveja e abre o apetite com uma farta porção de lingüiça calabresa acebolada, cortada bem grossa por Dona Katherine, "com 'K' e 'h' depois do 't'", frisava sempre a mulher do Seu Neílson.

É com os lábios brilhantes de óleo e o bigode encharcado de maionese que Seu Pereira saúda Dona Mirtes, que sempre liga no celular por volta da uma hora pra avisar que as encomendas já estão prontas. Seu Pereira pede então ao Seu Neílson que anote tudo direitinho no caderninho que fica guardado embaixo da caixa registradora, volta pra casa, ajuda Dona Mirtes a colocar as encomendas nos bancos de trás da Kombi e sempre abre a porta para que Dona Mirtes entre. A essa altura do dia Dona Mirtes já está cansada.

Após fritar cerca de quinhentos salgados de variados tipos para festas de aniversário, noivados, bodas, casamentos, formaturas, coquetéis empresariais e velórios, os cabelos de Dona Mirtes já perderam o doce aroma do xampu de jabuticaba usado no banho matinal. Seu Pereira consegue por milagre acomodar sua barriga entre o resto do corpo e o volante da Kombi. Passando sobre todos os buracos, Seu Pereira dirige com uma mão só, enquanto que com a outra segura um cigarro, ou acena para um de seus muitos conhecidos ou buzina pra que algum ônibus saia logo do caminho. Exausta, Dona Mirtes acomoda sua cabeça sobre a lustrosa barriga do Seu Pereira. Enquanto escuta ruídos estereofônicos de longa duração emitidos pela barriga do Seu Pereira, Dona Mirtes sente a mão calosa deslizar de vez em quando por seu braço e por sua cintura, provocando-a. Dona Mirtes sente-se feliz, realizada, amada por aquele que um dia lhe ofereceu um sonho. Involuntariamente, Dona Mirtes retribui o agrado brincando de enrolar pequenas cordinhas com os pêlos que circundam o umbigo do Seu Pereira. Ocasionalmente, Dona Mirtes retira do umbigo tufinhos de lã que se desprenderam do cobertor durante o último sono. Enquanto a voz de Inezita Barroso ressoa pelo interior do veículo, Seu Pereira limpa a garganta e sussurra pensamentos íntimos e apimentados, alto o suficiente pra Dona Mirtes ouvir. Mais um buraco, mais um chacoalhão. E assim prossegue trepidante o amor mais verdadeiro que existe sobre a terra.

 

 
 
 

Laboratório de Geografia

 

Johnny adormeceu antes mesmo de conseguir terminar de se despir. As calças ficaram emboladas na altura do joelho, impedindo o livre movimento das pernas. O cinto de couro serpenteava sobre o peito nu. No pulso esquerdo, o relógio enorme que rebolava toda vez que o braço se mexia. Só o pé esquerdo continuava com meia. A posição em que Johnny deitara-se era nada menos que improvável e faria muitos contorcionistas ferverem de inveja. Com os olhos cerrados por plácidas e pesadas pálpebras, Johnny alheara-se num estalo de toda e qualquer ligação com o mundo ou com a realidade: encontrava-se em outra dimensão, para além do septuagésimo sono. De sua boca ligeiramente aberta, por onde expirava um ronco baixinho, escorria um pequeno filete de saliva. No criado- mudo estavam os indícios das últimas atividades de Johnny. O objeto mais próximo da cama era o cinzeiro: por sobre muitas bitucas esparramava-se o corpo incinerado de um cigarro acendido e imediatamente depois esquecido. Ao lado do cinzeiro encontrava-se um maço de cigarros vazio e bastante amassado, um isqueiro e um outro maço, com uns poucos cigarros tortos e notas de pouco valor dobradas e colocadas entre o papel e o plástico. Da carteira mal fechada despontava um mal encaixado comprovante de débito em conta corrente no valor de setenta e dois reis e trinta e sete centavos. No próprio comprovante um número de celular havia sido anotado. A luminária permanecia acesa. O rádio-relógio foi propositalmente confundido com um descanso para copo: uma latinha de cerveja suava e ameaçava fazer terrorismo com seus circuitos eletrônicos.

Das profundezas siderais do sono de Johnny fracos raios de sol começaram a aquecer sua pele e a incomodar seus olhos. Um objeto duro e pontudo incomodava as costas de Johnny: As chaves?, perguntou-se Johnny, despertando de sua inconsciência. Esse despertar foi também um suplício crescente, pois a claridade que atravessava as pálpebras era cada vez mais intensa e lembrava a Johnny que era hora de levantar-se e ir trabalhar. Johnny deslizou o braço que estava sob a cabeça em direção ao objeto duro e pontudo que estava sob suas costas. Levou ao todo quase três minutos nesse movimento: seu relógio nem rebolou. Quando sua mão alcançou o objeto, não reconheceu uma chave, mas uma rocha. Intrigada, a consciência de Johnny afastou os torpores do sono e abriu seus olhos. Johnny viu um pedaço de céu emoldurado por copas de altas árvores com muitas folhas que farfalhavam levemente ao gosto de uma fresca brisa matinal. Espantado, Johnny tentou inutilmente recordar a seqüência de acontecimentos que o haviam conduzido a um local como aquele. Em busca de indícios, Johnny sentou-se, e dessa vez não foi lento. Olhou à sua volta e viu que estava deitado sobre uma pequena plataforma de pedra cinzenta que emergia do subsolo e era cercada por densa vegetação. As sombras criadas pelas copas das árvores deixavam poucos raios de sol iluminar o local e a vista de Johnny não conseguia distinguir nada do que se encontrava a mais de vinte metros de distância. Era possível escutar o canto de pássaros de variadas espécies, e diversos insetos exóticos podiam ser vistos em vôos rasantes, correndo agilmente sobre folhas caídas ou arrastando-se umidamente por debaixo delas. Nada humano foi visto por Johnny, nenhuma construção, nenhum objeto, nenhuma pegada ou trilha na mata.

Jonhnny estava com o relógio, suas calças e uma meia, no que parecia ser uma floresta. Após liberar uma longa seqüência de xingamentos e andar de um lado para o outro sem saber o que fazer, Johnny decidiu subir numa das árvores com o intuito de ter uma visão ampla do local em que se encontrava e identificar uma saída, uma estrada, uma trilha, um orelhão que funcionasse, qualquer coisa. Quando chegou ao galho mais alto da árvore mais alta que encontrou, Johnny quase desfaleceu: um tapete verde estendia-se em todas as direções por vários quilômetros e por todo o horizonte havia altas montanhas escuras com picos nevados que cercavam aquele grande círculo verde. O desespero tomou conta de Johnny. Como ele havia ido parar ali, seminu e num local aparentemente ignorado pela civilização? Sentindo a desorientação se somar ao desespero, Johnny entregou-se a um estado de profundo entorpecimento, como quem espera impassivelmente que a morte chegue. Um estalo despertou Johnny do torpor. O galho em que se encontrava rangia cada vez mais ferozmente e ameaçava ceder. A altura do tombo, descontados os golpes dos galhos que se encontravam abaixo, já era por si só insuportável. Animado pelo reflexo do instinto de sobrevivência, Johnny distribuiu melhor o peso do seu corpo pelo galho, enquanto ensaiava os primeiros movimentos para descer da árvore. Todos que já subiram numa árvore sabem que a pior parte é descer dela: um galho fraco ou um erro de cálculo podem ser fatais. Mas Johnny, apesar de urbano, conseguiu chegar ao solo sem muitos arranhões.

Todo seu esforço deu-lhe sede, e Johnny adentrou-se mata adentro em busca de uma lagoa ou nascente. O terreno era cheio de raízes entrelaçadas com suas vizinhas vivas ou mortas. Espinhos que encontravam-se em galhos e até nas folhas de algumas plantas arranhavam o tronco de Johnny, listrando-o de vermelho. Após caminhar tropegamente por quase uma hora, tropeçando, caindo e levantando-se, Johnny sentiu que não estava só. À sua frente, uma enorme moita com muitas plantas de folhas largas chacoalhava. Instintivamente Johnny pensou em correr na direção contrária, mas o pavor tomou conta de suas pernas que permaneceram imóveis. Melhor assim, pensou Johnny, que se lembrou de que na natureza ficar imóvel é a melhor maneira de garantir que nada de mal aconteça. Minutos depois, Johnny poderia deslocar-se lentamente, dar um passo, respirar três vezes e depois dar outro passo, evitando os galhos secos e tentando não provocar ruído algum. Mas um pequeno inseto voador, decerto cego ou avariado por algum combate no ar, entrou a toda velocidade na narina esquerda de Johnny. Atchim...

As folhas da moita pararam de chacoalhar. O silêncio estarrecedor só foi quebrado quando, deslocando algumas folhas, um enorme rosto apareceu e pôs seus olhos sobre Johnny. Os olhos castanhos e próximos um do outro não continham nenhuma docilidade, o nariz escuro e úmido encimava maxilares alongados que escondiam duas longas fileiras de dentes. Uma auréola de pêlos longos, negros e brilhantes circundava o rosto. O mesmo rosto que avançou na direção de  Johnny, fazendo a moita toda chacoalhar, descortinando o corpo robusto de um gorila adulto. O gorila avançou em poucos segundos pela metade do caminho que o separava de Johnny, como que dando a entender que qualquer plano de fuga seria inútil. Quando chegou mais perto, seu passo tornou-se mais lento e, num suave ziguezague hipnotizante, o gorila estava com seu rosto a trinta centímetros do rosto de Johnny. Enquanto sentia gotas de suor deslizando lentamente por suas têmporas, Johnny sentia também a respiração do gorila atingindo-lhe o peito nu. Trêmulo, Johnny controlou-se o máximo que pode, não se mexeu nem esboçou qualquer movimento e não emitiu som algum. Mas cometeu um erro fatal: seus olhos procuraram os olhos do gorila e, quando os olhos se cruzaram o gorila deu o passo final, o último que o separava de Johnny. Johnny afastou os olhos mas era tarde demais: o gorila tinha seu rosto quase colado ao de Johnny e abriu a boca mostrando todos os seus dentes, enquanto soltava um urro ensurdecedor.

Johnny ainda teve tempo de pensar que era lastimável morrer assim, atacado por um gorila desses que só se encontram no planalto central africano, como dona Célia havia lhe ensinado, na sétima série. Mas... Johnny não era africano, era de Guaratinguetá e morava em São Paulo há mais de dez anos. Nunca havia ido à África e o único país estrangeiro que conhecia era o Paraguai, onde ajudava tia Neli a carregar sacolas. Considerando essas afirmações, Johnny encarou novamente o gorila. Este afastava num movimento rápido sua pata dianteira, preparando-se para o golpe mortal, enquanto Johnny, calmo e iluminado pelos raios do esclarecimento, deixou transparecer um sorriso de alívio e satisfação. Porque é só nos supermercados Xavier que você encontra picanha maturada a quinze reais o quilo! Bom dia, eu sou o Fábio de Azevedo e vou ficar com vocês até o meio-dia, agora são oito horas em ponto e... Johnny tinha os olhos imóveis, e a única coisa que seus olhos viam era o teto outrora branco do seu quarto, com a familiar mancha verde-escura de bolor que ficava bem em cima da sua cabeça. Johnny quase sorria. Deslocando a cabeça para o lado, Johnny identificou a latinha de cerveja sobre o rádio-relógio que, entusiasticamente, anunciava uma promoção qualquer. Baixando ligeiramente os olhos, Johnny notou o maço com os poucos cigarros. Com um movimento rápido conseguiu pescá-lo, tirou um cigarro, devolveu o maço ao criado mudo e pegou o isqueiro. Depois de acender o cigarro, Johnny sentou-se e deixou-se ficar num estado de paz nirvânica. Afinal, dona Célia livrara-o da morte.

 

 

(imagens ©clementia)

 

 
 
 

 

 
André Faustino (Araraquara-SP, 1977). Poeta e professor de História, formado pela Unesp. Escreve o blogue Travessias.