*

tudo que é pequeno
tem um nome
o que é grande não se chama

 

 


*

lasciva
e assustada
eu,
lebre caligramática
escrevo quando
nada mais me resta
palavras,
pra que tanta pressa?

 

 


Mariana lisérgica
— ácido para Rosa Egipicíaca —

torres furam o azul
absoluto
pináculos de metal sintético espetam um céu às avessas
bombas de papel crepom explodem no lixo plástico
pétalas bruscas entornam um cálice vinho

não pedirei perdão
ao inferno

num átimo de vidro
o rio de sangue escorre
separando a cidade

pedras

estrelas terrestres
presas nas escadas
 
música ambarina
num coro de topázios

os olhos de Rosa esbugalhando o céu
absoluto azul que a torre fere

 

 


Medo

fique da flor
a lua
cor de pedra
óbvio retrato

pare o sangue
a paz congelada
gota vermelha gota
— vítrea —
o instante coagulado

o mundo já
presente, senão morto,
pesadelo e plenitude

vida  para sempre
no jardim do anonimato

 

 


*

Costuro com linha branca o lábio inferior
Em laçadas largas — a paisagem da janela,
Arremate você
Que puxa o fio sangüíneo
E dorme acorda chorando à noite

 

 


*

meu caos não aporta no cais
meu grito não corresponde aos meus ais
surpresa
o mundo não subsiste sem surpresa
aqui vou eu,
voa etérea alteza,
que só de dentro saem símiles
de primeira grandeza

 

 


*

o vento espalha paisagens no ventre

que sol firme
fere
a lua que mingua na língua macia?

a seta de apolo me transpassa
e atinge um olho d’água
que explode do centro da terra

o ventre espelha paisagens ao vento

 

 


*

corpo, misturar o corpo
copo, mistura oca
conteúdo, substância
alma, separar a alma
dentro  
o ovo vivo de vento

 

 


*

o amor é uma aposta estranha
o vencedor pelo vencido
cada um com o seu drama
contudo, não é nada
e o mundo inteiro reclama
quantos cavalos errados
para o único que ganha

 


Refinaria
                             (rascunho)


Desacentuar as sobrancelhas
Apagar o contorno dos lábios
O rictus                               /miolo de pão/


Dissolver o negro dos fios
O vermelho da face
O branco                             /esponja/


Dissipar a pele
Rasurar os olhos
Solucionar a língua                /corretivo/


Diluir a saliva
O suor do sono
O sal do sonho                     /sopro/


Desmantelar as articulações
Triturar os ossos
Amansar a alma                    /água/


Depois de tudo feito
Misturar a milésima
Primeira lágrima

Entregar a Eros
E abrir a porta

 

 


*

a fala da pele
descolada do osso
a pele que fala
deslocada do rosto
pétala e lábia
o falo 
o gozo
a pele que fala a pele
o osso sem rosto
o rosto sem osso
a pele

 

 


Pelle

evoé, chama  que ascende
liberta todas as línguas do fogo
na babel apocalíptica do corpo
incendeia minha biblioteca todinha
a calda que lava o vulcão
lambe o magma
e a palavra
e num espetáculo grandioso
colhe a pérola dos lábios do dragão

 

 


*

quinta após quinta
a roda da fortuna
me enrodilha em suas engrenagens
finjo que estou no outro
livre do movimento
e a esfinge, caricata
sorri vitoriosa
mas por pouco tempo

 

 


*

nada azul é comestível
vento entre pétalas hostis
a palavra e a diferença
liras intácteis, entretanto, azuis
minúscula flor erecta
brusca incólume pétala

 

 

 

*


as estruturas no fundo do mar têm mil
anos de verdade
ossos de deuses esquecidos e caracóis de coral
chicotes de pérolas
pupilas fosfóricas de feiticeiras negras
e muiraquitãs de pedra

as estruturas no fundo do mar têm dois mil
anos de cidade
esqueletos transparentes
ouro sobre azul
algas ondulantes
o murmúrio aterrador dos maremotos
e o fogo do centro da terra

as estruturas no fundo do mar têm três mil
anos de fragilidade
cacos de conchas verdes
navios esfacelados
tesouros, serpentes marinhas
enguias elétricas geladas

...

as águas se afastam
e me descobrem nua
no edifício marítimo:

traga-me mulher
um naco de pão cru de medusas e quimeras
e alimento o corpo livre do peso das águas

e busco o sal
e seco ao sol
e tempero

sentirei as ondas
batendo no meu peito
e o vento alegre

dê-me seu sangue, mulher,
e com ele incendiarei o fundo do mar

 

 


*

se deuses não existem
pã está morto
e o mesmo o grande deus agoniza,

alguém, por amor à ciência
e em sã consciência pode me explicar
o que apolo veio fazer aqui
depois que honrei sua irmã?

 

 


Sim
(nos passos de plath)


Chove, faz sol

sopro as unhas
esperando o vento

tece a aranha
mais um fio
os papéis amassados

dentro, tênues
os reflexos

a seiva lilás do tronco
escorre granada ao meio dia

nada mais acontece

o menino da vizinha
solta um grito gelado
o alfaiate reclama

ah, se diferente fosse

a aranha tece o invisível
o vento amanhece


amanhã
amanhã não direi
basta para os vinte dois estertores

nem arrancarei a pele
na melodia do tempo

 

 


*

Ai, Santa Billie úmida
Que profana a uva e salta a veia
Carne aberta de ais & azeite
Santa Billie das tardes únicas
 
Voz dos sinos que desdobra a lua
Nua pelo corpo pouco e teso
E mantra o angelus diabolus
 
Ai, Santa Holiday
Quando ele me chupa perfeitamente
E posso cantar contigo
A melodia do êxtase
 
Ai, Santa Billie Holiday
Velai dourada por nós,
Gratas de tantas graças
(e à Nossa Senhora das Mercês)
 
Evoé, Santa Billie
Das montanhas de Ouro Preto no meu peito
Tua litania no entardecer de todos os sábados

 

 


*

bata na flor que te ama
dedo na pétala aveludada
toca o todo morde tudo
demoro muda e amada

bata na flor aliada
bata, bata, bata
a flor que incendeia
e carnívora cilada

bata na flor que te ata

seiva que se quis sílaba
na rima consagrada
bata na flor abstrata

vermelha, puta, feiticeira
bela e bélica
ama e mata
bata, bata, bata.

 

 


Toque de recolher

a América de Baudrillard
se perde no centro de Mariana
a mesa branca imita a lua cheia
pedais fosforecem à beira do olhar astigmático
carros escorrem no sinal vermelho

conhecido, um acorde antigo
ensurdece os ruídos
o mundo é um pano de fundo
e através dele transito você

eu, e na ponte pensamento de seus passos
leio as rodas, os apetrechos de viagem, suas notas
o dedo no interruptor do poema

o meu corpo em emergência
despedaça-se em mil estrelas-letras
e, ora névoa obnubilando a noite
ora luz alta no retrovisor
visita o seu caminho

entre imensos desertos e estradas absurdas

a presença absoluta
desloca o coração da cidade

aqui passeia o invisível
fecho o livro, abro os olhos
e vou embora

 

 

(Do livro Poikilótron, 2004, inédito)

 

(imagem ©david sacks)

 

Zoe de Camaris escreve por osmose. Tem manias de poeta ou mania de poetas. Sonha no Parnaso, ao lado de Glauco Flores de Sá Brito, Murilo Mendes e Marcos Prado (embora este último negue que está lá). Mora em Curitiba, onde morre de tédio — portanto, é suicida. Não gosta dos seus poemas e acha que é tarde para se iniciar nas Artes Plásticas. Deixou de ser feminista, é bonita e anacronicamente romântica. Faz análise, mas continua acreditando na rosa azul. Escreve o blogue Palavra de Pantera e joga Tarot.