É
difícil retratar a obra de Kurt Schwitters (1887-1948) sem ter a
sensação de estar deixando alguma coisa importante de lado. Ao mesmo
tempo, exatamente a tentativa de abranger toda a sua obra resulta em um
movimento panorâmico que, inevitavelmente, deixa de incluir maiores
detalhes. Tal dificuldade se deve a dois fatores. Em primeiro lugar, à
sua imensa e variada produção: Schwitters foi poeta, prosador,
dramaturgo, crítico, ensaísta, teórico, pintor, escultor, arquiteto,
editor, publicitário, agitador cultural, etc. — e não exatamente nesta
ordem. Em segundo lugar, ao fato de todos estes "Schwitters" estarem
intimamente relacionados entre si, técnica e cronologicamente, assim
como estão as fronteiras das várias modalidades de arte que ele exerceu.
É necessário entender a sua obra como um conjunto de produções variadas,
necessariamente interligadas por um forte denominador comum: a sua
(sempre mutante e experimental) concepção estética. Por outro lado, é
importante também situá-lo em seu contexto artístico e histórico, já que
um de seus grandes méritos foi ter feito tudo o que fez, lá, nos idos
anos 20 do século passado, quando a arte dominante ainda estava presa às
amarras do século XIX e o concretismo e a arte pop ainda levariam
décadas para surgir.
Kurt
Schwitters, nascido em Hannover, Alemanha, formou-se em pintura e artes
plásticas em Dresden (1909-1914), um dos centros do expressionismo
alemão. Seu contato com o grupo da revista expressionista Der Sturm (A
tempestade), porém, só ocorreu em 1917, quando Schwitters fez uma
exposição, juntamente com Paul Klee, na galeria de mesmo nome, em
Berlim. A esta altura, a revista Der Sturm conciliava as várias
tendências de vanguarda da época, incluindo expressionistas, futuristas,
cubistas e dadaístas.
Kurt
Schwitters, que até então escrevera poemas em estilo neo-romântico e
pintara ao estilo dos naturalistas, descobre a poesia de August Stramm,
as teorias de Marinetti e a liberdade dos dadaístas. Era o impulso que
faltava para o seu rompimento com as tendências mais tradicionais. Suas
primeiras pinturas abstratas datam de 1917, e seus poemas parodiando o
estilo expressionista de Stramm, também.
Schwitters
aproxima-se e passa a conviver com os dadaístas (principalmente Hans
Arp, Tristan Tzara e Raoul Hausmann), e a participar de soirées dadá em
Zurique, Praga, Paris, na Alemanha e na Holanda. Uma adesão irrestrita
ao movimento dadaísta, porém, não chega a acontecer. Às já citadas
influências, viriam somar-se outras, vindas das artes plásticas, por
exemplo, do cubismo; depois, dos artistas do Bauhaus, e, mais tarde, do
construtivismo russo. Estava formado o húmus de onde brotaria a arte
Merz, uma estética criada por Kurt Schwitters e que percorrerá toda a
sua obra.
Merz versus
Dadá
Merz surgiu, em tese, como
mais um movimento de vanguarda que preconizava uma ruptura com valores
estéticos, sociais e políticos vigentes. Era, de certa forma, uma
extensão do dadaísmo, do qual Schwitters, porém, fazia questão de se
distanciar teoricamente. Merz nasceu da necessidade do próprio
Schwitters de dar um nome para o tipo de quadro que ele fazia, e que não
se encaixava nas denominações existentes. O nome Merz, que não significa
nada, foi tirado de um quadro seu, uma colagem na qual a palavra Merz
aparecia ao acaso, caco do recorte de um anúncio do Banco do Comércio
(Kommerzbank).
A partir de seus
experimentos, sempre buscando novas formas de expressão, Schwitters
chega ao primado da forma estética, não importando que materiais se
usaria para atingi-la. Sob o pano de fundo da destruição causada pela
primeira guerra mundial e de uma sociedade necessitando de
reestruturação, sua arte passa a se utilizar de dejetos, restos, cacos
de objetos — o lixo da sociedade industrial — para reestruturá-los
esteticamente. Lá estão, em suas colagens e sobreposições, recortes de
jornais, passagens de bonde, nacos de madeira, restos de objetos de
metal, etc. Ele explica: "O material utilizado é irrelevante; o
essencial é a forma. Por isso utilizo qualquer material, contanto que a
obra exija"1. E é precisamente neste
detalhe: "contanto que a obra exija", que jaz uma das principais
diferenças entre o dadaísmo e a arte Merz. O irracionalismo e a
aleatoriedade, apregoados pelo dadaísmo, não eram compartilhados pela
arte Merz, cujo objetivo era de produzir, sempre, um resultado estético.
Segundo Ernst Schwitters, filho de Kurt, Merz era arte, enquanto o
dadaísmo era antiarte.
Uma
segunda diferença importante era a questão política. A arte Merz não era
engajada, no sentido restrito do termo. Kurt Schwitters distanciava-se
da reivindicação dadá de estabelecer o comunismo radical como sistema
político. Mas continuava ligado a Arp e Tzara, que estavam mais voltados
ao abstracionismo. Sua arte era politizada em sentido amplo: Schwitters
defendia que a arte deveria ser a cura do seu tempo, deveria relativizar
as idéias dominantes, colocá-las em cheque, desestabilizar a estrutura
vigente. Em suas soirées Merz, ao contrário das soirées dadá, não havia
protesto político, senão o protesto contra o comodismo e a tacanhice
burguesa. Era política como crítica social e estética, crítica através
da blasfêmia de usar lixo para fazer arte, através da profanação da arte
burguesa.
É
simplista, portanto, considerá-lo apolítico. Seu ceticismo era
conseqüente contra tudo o que se transformasse em consenso, tudo o que
se estabelecesse como regra. Schwitters foi um agitador cultural
engajado. Seus inúmeros manifestos, ensaios críticos e poemas foram
publicados nas várias revistas literárias, de diversos grupos existentes
e sua produção era imediatamente traduzida e publicada em outros países
da Europa, gerando discussões literárias e estéticas. Suas obras eram
expostas na Europa e nos EUA. A partir de 1923, passou a editar a
revista Merz, que durou até 1932, sendo um dos principais fóruns para as
querelas entre construtivistas e dadaístas, além de ter veiculado outras
tantas tendências e polêmicas. Kurt Schwitters tornou-se rapidamente uma
figura de proa entre os grupos de vanguarda, estabelecendo uma rede de
contatos e trocas com os artistas mais importantes do século XX.
Em
1936, quando a pintura abstrata foi proibida na Alemanha, as obras de
Kurt Schwitters foram retiradas dos museus e destruídas. O perigo de sua
mensagem libertária fora percebido pelos nazistas; e também por Kurt
Schwitters, que partiu para o exílio em 1937, poucos dias antes de seu
apartamento ser vasculhado pela gestapo. Schwitters viveu na Noruega até
a invasão deste país pelo regime de Hitler, em 1940. Ele e seu filho
conseguiram fugir para a Inglaterra, onde Schwitters viveu os anos mais
difíceis de sua vida, vindo a falecer em 1948, sem jamais ter retornado
à Alemanha.
Merz na
Literatura
Kurt
Schwitters aplicou o princípio da arte Merz também para a sua
literatura, criando a Poesia Merz, apresentada em vários manifestos. Em
analogia a seus quadros, montagens e colagens, Kurt Schwitters utiliza
na literatura restos e cacos da linguagem cotidiana, da linguagem da
propaganda, de slogans, ditos populares, banalidades e clichês.
No
posfácio da primeira edição de seu polêmico livro Anna Blume (1919),
Schwitters esclarece:
A poesia Merz é abstrata.
E utiliza, da mesma forma que a pintura Merz, pedaços de coisas já
existentes, no caso, de frases retiradas de jornais, de outdoors, de
catálogos, de conversas, etc., com ou sem modificações. (Isto é
terrível.) Estes pedaços não precisam ter relação com o sentido, pois o
sentido não existe mais. (Isto também é terrível.) Também não existem
mais elefantes, existem apenas pedaços de poema. (Isto é horrível). E
vocês? (Levantem recursos para a guerra!) Decidam sozinhos o que é
poesia e o que é acessório2.
A
publicação do poema "An Anna Blume" (Para Anna Flor), com o subtítulo de
"Poema Merz I", causou um grande impacto na época. O poema foi impresso
em cartazes de um metro de altura e espalhado pela cidade de Hannover.
Kurt Schwitters foi severamente atacado pela crítica e tachado de
demente pela burguesia letrada. Choveram cartas de protesto nos jornais,
artistas saíram em defesa do autor, e o próprio Schwitters escreveu
várias crônicas e cartas abertas defendendo a si próprio e atacando os
críticos. Graças à polêmica, o poema tornou-se extremamente popular e
arrebatou os leitores mais afeitos a novidades, que passaram a recitar o
novo "poema de amor" de cor e salteado. "An Anna Blume" tornou-se um
mito e entrou para a história da literatura de língua alemã como um dos
mais polêmicos textos de todos os tempos. Sua recepção inclui um sem-fim
de paródias e citações ao longo das décadas (recentemente, inclusive por
um famoso grupo de hip-hop alemão).
A
polêmica continuou. O poema é realmente uma grande colagem, seguindo o
programa da poesia Merz, e causa, ainda hoje, estranhamento. As
deformações gramaticais, falsas regências e ortografia, bem como as
seqüências de pronomes são elementos da poesia expressionista. Os
resquícios da fala dialetal e as frases feitas tiradas de concursos de
charadas ou de ditados populares são elementos Merz. A introdução de
frases que quebram a lógica semântica ou elementos que rompem com a
lógica gramatical também são recursos freqüentes encontrados na poesia
expressionista, sem falar que tudo o que rompe com a lógica é também
típico dos dadaístas.
Quem é esta Anna Flor,
musa de cabelos amarelos e "vestido de chita", louca e irreal, que
caminha com as mãos e usa vestidos que se podem serrar? Um delírio capaz
de ser apreendido apenas por 27 sentidos? Um mero deboche — os elementos
grotescos, irônicos e infantis a comprovar — do sentimentalismo
romântico pequeno-burguês? Há quem diga que o amor seria sério, o páthos
expressionista ainda presente no poema, para ser — claro! —
imediatamente "dadaizado" nos versos a seguir3.
Constante Evolução
O
especial da literatura de Kurt Schwitters é a sua diversidade e o seu
alto grau de inventividade. Schwitters não se deixou limitar por
estilos, nem mesmo pelos que ele próprio criou. Ao mesmo tempo em que
desenvolvia sua própria abordagem construtivista nas artes plásticas,
pintava abstrações puras e paisagens bucólicas. Trabalhava,
paralelamente, em escultura, artes gráficas, fotografia e arquitetura
(em suas fantásticas construções Merz). Chegou a trabalhar na concepção
de espetáculos de dança, em roteiros de filmes, libretos de óperas e,
inclusive, a compor peças para piano (estudou harmonia e composição para
isso, mas chegou à conclusão de que suas peças, meros experimentos
teóricos, eram impossíveis de ser executadas).
Sua
produção literária registra, igualmente, incursões e experimentos em
todos os gêneros e estilos, bem como uma série de intersecções entre os
gêneros. Trabalhou com várias técnicas, em várias concepções de métodos,
em constante pesquisa. Muitos de seus poemas são cadeias de palavras sem
concatenação semântica lógica, aglomerados de verbos inventados e
palavras desconexas, formando uma composição rítmica, às vezes visual.
Outras vezes, uma seqüência semântica lógica é interrompida pela
introdução de um elemento que sugere outros sentidos, que remete a outra
cadeia lógica. Nestes casos, a associação de uma palavra com outra não
confirma o significado da primeira, mas desconcerta-o, relativiza-o, ou
até o invalida por completo. Às vezes, as palavras aparecem
descontextualizadas, referindo-se senão a si próprias, interligadas, na
melhor das hipóteses, a nível sonoro ou rítmico.
Em
suas pesquisas poéticas abstracionistas, Schwitters compõe poemas com
numerais, com letras, poemas concretos, visuais, ou poemas sonoros
apenas com elementos supra-segmentais, sem referencial verbal. Em seus
poemas sonoros, utiliza, por exemplo, letras maiúsculas e minúsculas
como um sistema de notação, para demarcar crescendos e diminuendos. Seus
poemas visuais incluem desenhos feitos com carimbos e painéis em que as
letras são personagens de pequenas histórias. Também utiliza recursos
tipográficos variados, como letras de vários tipos e tamanhos em
distribuição não linear na página. A linguagem e os recursos da
propaganda (ele próprio ganhava a vida como publicitário) também fluíram
para o seu trabalho. O limite entre palavra e imagem, entre literatura e
pintura, é, para Schwitters, tênue. Suas colagens com recortes de
jornais, classificadas como artes plásticas, poderiam, igualmente,
constar como poesia visual.
Dentre
as várias técnicas de poesia desenvolvidas por Kurt Schwitters, mais
como exercício teórico e por isso sempre com poucos exemplos, estão o
Poema-i, cuja técnica era recortar, em sentido longitudinal, um texto já
existente, transformando a primeira metade do texto em poema. Se na
poesia Merz existia o processo de recortar e colar, na Poesia-i existe
apenas o primeiro passo.
Schwitters
escreveu um romance (existem fragmentos de um segundo), vários contos,
pequenos textos (que às vezes ele chamava de "Poesia Merz") e histórias
infantis, sempre com elementos grotescos, satíricos, irônicos,
anunciando o que, mais tarde, desembocaria no surrealismo. No teatro,
além de peças, cenas e esquetes, desenvolveu a "teoria do palco Merz",
um palco com elementos móveis, de formas geométricas variadas, com a
finalidade de eliminar as fronteiras entre texto, ação, cenário e
encenação e fazer do teatro uma arte absoluta. Depois, desenvolveu a
"teoria do palco Merz normal", em oposição à sua própria teoria do palco
Merz. Sua Ursonate, ou Sonata Primordial (de "primórdios"), um longo
poema sonoro não-verbal, surgido a partir da influência de Raoul
Hausmann, foi composta como uma peça musical, com melodias e ritmo. Algo
entre poesia e canto, com a estrutura de uma sonata. Na época em que
compôs a sonata, Kurt Schwitters partiu de estudos de harmonia e
composição, tentando criar um sistema de notação semelhante ao sistema
de notação musical. Acrescentou à "partitura" uma série de instruções
para a execução. Mesmo assim, aos músicos que se aventuram a interpretar
a Ursonate, uma peça de aproximadamente 35 minutos de duração, resta uma
partitura muito aberta, passível de várias interpretações e
reinvenções.
A recepção da obra de Schwitters, bem como de
toda a arte produzida na efervescente década de 20 do século passado,
sofreu a interrupção brutal do regime nazista e, depois, da II Guerra
Mundial. O isolamento do exílio, a falta de possibilidade de publicação,
as várias mudanças, entre tantos outros fatores, contribuíram para que
muitos manuscritos se perdessem ao longo dos anos. Com Schwitters não
foi diferente. Foram necessárias décadas para que a sua obra fosse
reencontrada (vários quadros estavam danificados por terem passado anos
mal embrulhados em porões úmidos), para que seus manuscritos fossem
organizados, publicados e voltassem, assim, ao convívio das gentes.
Com todas as adversidades
e o decorrente atraso da recepção, a influência da obra experimental de
Schwitters é visível tanto nas artes plásticas, como na literatura, no
teatro e na música. Ele tinha consciência da importância do seu papel
para a arte contemporânea, e dizia com humor — e com razão: "Sei que sou
importante como fator de evolução da arte e que, como tal, vou continuar
sendo importante". E, paciente, completava: "Esta é a minha herança para
o mundo, e não me aborreço que ele ainda não me possa
compreender"4.
Poemas de Kurt Schwitters
Tradução
de Fabiana Macchi
AN ANNA BLUME
Merzgedicht I
(um 1919)
O du, Geliebte meiner siebenundzwanzig Sinne, ich
liebe dir! — Du deiner dich dir, ich dir, du mir.
— Wir?
Das gehört (beiläufig) nicht hierher.
Wer bist du, ungezähltes Frauenzimmer? Du bist
— bist du? — Die Leute sagen, du wärest — lass
sie sagen, sie wissen nicht, wie der Kirchturm
steht.
Du trägst den Hut auf deinen Füssen und wanderst
auf die Hände, auf den Händen wanderst du.
Hallo, deine roten Kleider, in weisse Falten
zersägt.
Rot liebe ich Anna Blume, rot liebe ich dir! — Du
deiner dich dir, ich dir, du mir. — Wir?
Das gehört (beiläufig) in die kalte Glut.
Rote Blume, rote Anna Blume, wie sagen die Leute?
Preisfrage: 1.) Anna Blume
hat ein Vogel.
2.) Anna Blume ist rot.
3.) Welche Farbe hat der Vogel?
Blau ist die Farbe deines gelben Haares.
Rot ist das Girren deines grünen Vogels.
Du schlichtes Mädchen im Alltagskleid, du liebes
grünes Tier, ich liebe dir! — Du deiner dich dir,
ich
dir, du mir, — Wir?
Das gehört (beiläufig) in die Glutenkiste.
Anna Blume! Anna, a-n-n-a, ich träufle deinen
Namen.
Dein Name tropft wie weiches Rindertalg.
Weiss du es, Anna, weisst du es schon?
Man kann dich auch von hinten lesen, und du, du
Herrlichste von allen, du bist von hinten wie von
vorne: »a-n-n-a«.
Rindertalg träufelt streicheln über meinen
Rücken.
Anna Blume, du tropfes Tier, ich liebe dir!
Para Anna
Flor*
Poema Merz I
(c. 1919)
Ó tu, amada dos meus
vinte e sete sentidos, eu
lhe amo! — Tu teu te a
ti, eu a ti, tu a mim.
— Nós?
Isto (aliás) não vem ao
caso.
Quem és tu, dona
inumerável? Tu és
— és? — Dizem que serias
— deixa
que digam, eles nem sabem
como a torre da igreja se sustém.
O chapéu sobre os pés,
caminhas
sobre as mãos, com as
mãos tu caminhas.
Olá, teus vestidos
vermelhos, serrados em pregas brancas.
Eu amo Anna Flor
vermelho, vermelho eu lhe amo! — Tu
teu te a ti, eu a ti, tu
a mim. — Nós?
Isto (aliás) é coisa para
a brasa fria.
Flor vermelha, vermelha
Anna Flor, o que andam dizendo?
Responda e
ganhe: 1. Anna Flor tem um macaco no sótão.
2. Anna Flor é vermelha.
3. Qual é a cor do macaco?
Azul é a cor do teu
cabelo amarelo.
Vermelho é o chiado do
teu macaco verde.
Tu, moça simples de
vestido de chita, tu, doce
bicho verde, eu lhe amo!
— Tu teu te a ti, eu
a ti, tu a mim, —
Nós?
Isto (aliás) é coisa para
o braseiro.
Anna Flor! Anna, a-n-n-a,
gotejo o teu nome.
Teu nome pinga como tenra
gordura bovina.
Sabes, Anna? Já o sabes?
Posso ler-te também de
trás para frente, e tu,
a mais formosa de todas,
serás sempre, de trás para frente e de
frente para trás:
»a-n-n-a«.
Gordura bovina goteja
acaricia minhas costas.
Anna Flor, tu, bicho
gotejante, eu lhe amo!
Nennen Sie es
Ausschlachtung
(um 1919)
Anna Blume ist die Stimmung, direkt vor und direkt
nach
dem Zubettgehen.
Anna Blume ist die Dame neben Dir
Anna Blume ist das einzige Gefühl für Liebe, dessen
Du
überhaupt fähig bist
Anna Blume bist Du
Anna Blume ausschlachten heisst Dich schlachten
Bist Du schon einmal geschlachtet worden?
Anna Blume schlachten heisst Dich ausschlachten
Du lässt Dich gern ausschlachten?
Schlachte Anna Blume, die Stimmung vor dem
Zubettgehen
Schlachte Anna Blume, die Dame neben Dir
Anna Blume schlachten, ist die einzige
Ausschlachtung, deren Du
überhaupt fähig bist
Wenn Du nicht zufällig, Merz wolle Dich bewahren, ein
ganz
unfähiger Mensch sein solltest.
Chamem de
Dilapidação
(c. 1919)
Anna Flor é o teu ânimo
logo antes e logo depois de ir-para-a-cama.
Anna Flor é a dama ao teu
lado
Anna Flor é o único
sentimento de amor que és capaz de sentir
Anna Flor és tu
Dilapidar Anna Flor
significa aniquilar-te
Já foste aniquilado?
Aniquilar Anna Flor
significa dilapidar-te
Te apraz ser
dilapidado?
Aniquila Anna Flor, teu
ânimo antes de ir-para-a-cama
Aniquila Anna Flor, a
dama ao teu lado
Aniquilar Anna Flor é a
única dilapidação que és capaz de realizar
A menos que sejas — que
MERZ te livre — um ser completamente incapaz.
Sauberkeit
(Für Leute, die es noch
nicht wissen)
(1921)
Ich liebe die hygienische Sauberkeit. Ölfarben
riechen wie ranziges Fett. Temperafarben stinken wie faule Eier. Kohle
und Graphit sind der schmierigste Dreck, was man schon an der schwarzen
Farbe erkennen kann. Ich liebe die hygienische Sauberkeit und die
hygienische Malerei. Das nenne ich »MERZ«. Merzmalerei verwendet die
delikatesten Materialien, wie sauberen Roggenmehlkleister, desinfizierte
Zeug- und Papierfetzchen, gut gewaschenes Holz, alkoholfreie
Eisenbeschläge und dergleichen, die Merzmalerei ist absolut
bazillenfrei. Der einzige Bazillus, der tatsächlich durch Merz
übertragbar ist, ist der Tollwutbazillus. Er ist seinerzeit, ohne meine
Schuld, auf Merz übertragen durch den Biss tollwütiger Kritiker und
überträgt sich weiter auf jeden Herrn Kritiker, der sich neuerdings in
Merz festbeisst. Merz beisst nicht, aber die Herren Kritiker. Kritiker
beissen nämlich über, wie Bulldoggen. Ich bedaure es sehr, dass
mittlerweile fast die gesamte deutsche Kritik, mit Ausnahme einiger
starker Persönlichkeiten, infolge Merzbiss tollwütig geworden ist.
Limpeza
(Para os que ainda não
sabem)
(1921)
Eu amo a limpeza
higiênica! Tinta a óleo tem cheiro de banha rançosa. Tinta têmpera fede
como ovo podre. Carvão e grafite são os dejetos mais lambuzentos que há,
vê-se já pela própria cor. Eu amo a limpeza e a pintura higiênica. E
dei-lhe o nome de pintura »MERZ«. A pintura MERZ utiliza os materiais
mais delicados, como puríssimo grude de farinha de centeio, pedaços de
objetos e nacos de papel esterilizados, madeira bem lavada e ferragens e
afins sem adição de álcool. A pintura MERZ é completamente livre de
bacilos. O único bacilo realmente transmissível pela pintura MERZ é o
bacilo da raiva. O contágio ocorreu, sem que eu pudesse impedir, através
da mordida de críticos raivosos. No momento, o bacilo é retransmitido a
todos os críticos que se mordem com a pintura MERZ. MERZ não morde, mas
os críticos, sim. Os críticos mordem, e mordem-se de raiva, como
buldogues. É realmente lamentável que, atualmente, quase todos os
críticos alemães — com exceção de alguns poucos, de forte personalidade
—, estejam contaminados pela raiva, por terem mordido a pintura
MERZ.
Die
Raddadistenmaschine
(1921)
Die Raddadistenmaschine
ist für dich bestimmt. Sie ist durch eigenartige Zusammenstellung von
Rädern, Achsen und Walzen mit Kadavern, Salpetersäure und Merz so
konstruiert, dass du mit vollem Verstand hineingehst und vollständig
ohne Verstand herauskommst. Das hat grosse Vorteile für dich. Lege dein
Bargeld in einer Raddadistenkur an, du wirst es nie bereuen, du kannst
überhaupt nicht mehr bereuen nach der Kur. Ob du reich oder arm bist,
ist gleichgültig, die Raddadistenmaschine befreit dich sogar von dem
Geld an sich. Als Kapitalist gehst du in den Trichter, passierst mehrere
Walzen und tauchst in Säure. Dann kommst du mit einigen Leichen in
nähere Berührung. Essig tröpfelt Kubismus dada. Dann bekommst du den
grossen Raddada zu sehen. (Nicht den Präsidenten des Erdballs, wie viele
annehmen.) Raddada strahlt von Witz und ist bespiesst mit einigen
100.000 Nadelspitzen. Nachdem du dann hin- und hergeschleudert bist,
liest man dir meine neuesten Gedichte vor, bis du ohnmächtig
zusammenbrichst. Dann wirst du gewalkt und raddadiert, und plötzlich
stehst du als neu frisierter Antispiesser wieder draussen. Vor der Kur
graut dir vor dem Nadelör, nach der Kur kann dir nicht mehr grauen. Du
bist Raddadist und betest zu der Maschine voll Begeisterung. — Amen.
A Máquina de fazer
Radadistas
(1921)
A máquina de fazer
radadistas foi feita para você. Ela compõe-se de uma excepcional
combinação de engrenagens, eixos e cilindros, com cadáveres, ácido
nítrico e MERZ e foi construída de tal forma, que você entra nela em
pleno gozo de suas faculdades mentais e sai completamente sem juízo. Tal
efeito traz grandes vantagens para você. Invista o seu dinheiro em uma
cura-radadista e você jamais se arrependerá; aliás, a sua capacidade de
se arrepender será completamente inexistente após a cura. Não importa se
você é rico ou pobre, a máquina de fazer radadistas o libertará —
inclusive — da necessidade do dinheiro em si. Se você é capitalista,
passará primeiro por um funil, depois por vários cilindros, até
mergulhar num banho de ácido. Depois, você entrará em contato físico com
alguns defuntos. Vinagre gotejará cubismo dadá. Então você verá o grande
Radadá. (Não o presidente do globo terrestre, como muitos pensam).
Radadá irradia astúcia e é revestido de cerca de 100.000 agulhas
pontiagudas. Depois de ser chacoalhado para lá e para cá, alguém lerá
para você meus novos poemas, até você cair inconsciente. Aí você será
socado e radadado, para depois, de repente, ser expelido para fora da
máquina, transformado em um antiburguês com um novo penteado. Antes da
cura, você tinha pavor até do buraco de uma agulha, depois da cura, nada
mais o apavora. Você é um Radadista e reza diante da máquina com todo o
fervor. — Amém.
Z A
(elementar)
(1922)
Z Y X
W V U
T S R Q
P O N M
L K I H
G F E
D C B A
So,
So!-
(1942)
Vier Maurer sassen einst auf einem Dach.
Da sprach der erste: "Ach!"
Der zweite: "Wie ists möglich dann?"
Der dritte: "Dass das Dach halten kann!!!"
Der vierte: "Ist doch kein Träger dran!!!!!!"
Und mit einem Krach
Brach das Dach.
Bem
assim!
(1942)
Quatro pedreiros sentados
no telhado.
O primeiro falou:
"Encasquetado!"
O segundo retrucou: "Como
é possível então?"
E o terceiro: "Que o
telhado tenha sustentação!!!"
O quarto: "Se não há um
só vergalhão!!!!!!"
E num tremendo
estrondo
No telhado abriu-se um
rombo.
Kleines norwegisches
Wintergedicht
(1930-1935)
Schneeflocken fallen leise
In monotoner Weise.
Der Himmel ist so grau.
Pequeno Poema Norueguês de
Inverno
(1930-1935)
Flocos de neve caem
quietos
Em monótonos
trajetos.
O céu é cinza demais.
(Publicado em Sibila — Revista de Poesia e Cultura. Ano 4,
n. 7, setembro de 2004)
dezembro, 2005
_______________________________
Fabiana Macchi. Tradutora, reside em
Berna, Suíça.
_______________________________
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