ANDARILHO

ando atrás, farejo
o cheiro das solas que vão
mercúrio dos sonhos sombrios
hermes dos aferrolhados fados
exu das visões mais venéreas
não acelero, vou passo a passo
não deprimo ao primeiro passo em falso
ao primeiro risco na folha do asfalto físico
ao atropelo iminente na oswaldo
cruz do pé andarilho, em falso
sempre estou, e por isso
é tanta excomunhão
é tanto zunido grito rodopio
é tanto terço traça caliça que desce
ressequida em meus ombros
escrevo vazio, em vão, a seco
no vácuo do saco do pão
endurecido e embolorado, escrita
e pão de carcomidos traçados
e ultrapasso os percalços
e persigo o encalço do que ontem
era cinemascope a céu aberto
um quasar de amanhecer sideral
um suave pulsar em minha mão maquinante
uma escrita a polir um estilo de viver
a domar as formas do escrever
e o corpo volta a percorrer sinais
que as ruas lhe abrem aos frágeis sentidos
— sentidos de sobrevivente

 

 

 

 

 

 

APRENDIZAGEM

já tive
um amor
às mãos
um afeto
em meus pés
uma dor-de-cabeça
cotidiana
já cultivei
brutalidades pânicas
já esbocei
o retrato do artista
quando
jovem narciso
sem firma
reconhecida
hoje
destilo
minha deformação
no
sem-estilo
dos meus versos
incompetente
impaciência
para amar
e posar
para a
posteridade

 

 

 

 

 

 

AMOR FATI

amo a sorte
como quem ama
um ombro
um mote
um forte fascínio
e puxo os fios
do sol
que me atam
à vida ao meio-
-dia com
olhar ruminante
observo meu
corpo que
se ergue
por entre
a lida do sono
e dá à
luz
o espinho
que levo
à flor
da pele
são raras
as horas
em que caras
se mostram
atentas
ao excesso
de tumulto
no caminhar
do mundo mas
meus traços avaros
meus raios e
pregas
meus pêlos e
covas
atestam a sede
que congela
a verdade
sob minhas
infinitas
solas dos pés
apontando
o futuro

 

 

 

 

 

 

VIDA, ORDINÁRIA

levá-la com a leviandade e a leveza
que fazem do corpo porto iminente
levá-la com a roupa suja do lodo
levá-la com a pele suada do ócio
levá-la com a barba grande da tosse
levá-la com as sarnas inda feridas
e um veneno vertido em folhas frias

levar a vida com as unhas roídas
levar a vida com a virilha assada
levar a vida ardida sobre a língua
levá-la a torto e a direito, e voar
ao céu da boca infinita de orfeu
levar a vida varando esse inferno
levá-la à rimbaud, levá-la à al berto
levá-la à piva, faustino, waly
levá-la pra ali, levá-la pra aqui
e quieto a um canto do quarto cair

levá-la valendo cada vintém
levá-la tremendo a cada desdém
levá-la provando amores azuis
levá-la amando o seu próprio destino
levá-la puxando as cordas dos sinos
que chamam exu e espalham o axé
levar a vida sobre, entre, através

pelos pés e pelos dedos feridos
pelas pistas de dança, pelos ritos
pelas praias de desejos trazidos
lavar a vida ao delírio da luz
levar a vida ao solo desolado
levar a vida à praça aberta e olhar
com os olhos vidrados, cheios de mar
que uma vida é uma onda prima e última
vangloriar-se de vê-la vida múltipla
volvida do fim ao seu próprio início
mítica cobra a si mesma engolindo

 

 

 

 

 

 

ESQUECIMENTO E ESCRITA: DA AUSÊNCIA DE MÉTODO
Para Márcia Fraser

foi antes
quando a vida aparecia nua
eu vivia a alegria daqueles tempos
uma alegria enorme
eu a segurava forte entre os dentes
respirava e observava minha respiração
eu era um monge no alto de uma montanha
esquecendo-me que vivia
um escafandrista no fundo do oceano
medindo o mar com colherinhas de café
um ator de teatro kabuki
improvisando um texto milenar sobre a técnica do improviso
aprovava a minha vida com determinação e delicadeza
um grande sim
apontando para o futuro
e foi assim que desci da montanha
emergi das profundezas
saí do palco
sentindo-me preparado para cumprir os mesmos planos
viajar sem abandonar meu corpo leve
de gestos mínimos
continuava respirando e mantendo meus hábitos de filigranas
aos poucos, no entanto
fui deixando para trás a vida
concentrei-me em realizar novos planos
as grandes realizações que traçava
e com isso as rotinas se atropelaram
fiquei perdido em meio ao tráfego
esperando o bonde para seguir viagem
mas não existem mais bondes
e os ônibus
levam multidões desgovernadas para um mesmo lugar
segui, então, a pé
pela estreita calçada e cheguei até esta casa
onde moro acompanhado pelos cães
perdi meus dias, meus horários, meus diários
e hoje não quero mais
escrever para esquecer que um dia possuí uma vida nua
respirei o ar do mundo
e beijei o vento todas as manhãs
hoje quero tão só esquecer para escrever
como quem toma o primeiro gole
e se enamora do que apenas vive sob o céu







LARANJAS

mordo uma laranja
ignoro a cor da casca, abro janelas, peito
e espreito o calor fulminando o noturno ar no interior de tudo
certos livros recusam afetividades excessivas
por isso escrevo — conto
como nasci do delírio alheio
especulo (atenção ao impasse)
a quem pertenço entre os dois lados da rua?
a quem me assemelho na ambígua história dos meus passos?

restam as agora laranjas reluzentes
laranjas doces
laranjas postas na pia
iluminando meu desejo de cortá-las, abri-las, chupá-las
gomo a gomo
pondo em suspenso meu mal-estar:
alcançar o outro lado da rua
— porto partido
perdido entre prédios comerciais e elevadores de serviço

ah! estas são as minhas grandes laranjas
só não sei de herança (eros travestido?)
sem direito a escolha no balcão de retalhos
sou o que pareço e não sei o que sou
com que remendos emendaram meu verso
meu avesso
meu reflexo fatal
que desliza agora ao sabor das louras laranjas

o que há de possível
é apenas um rastilho de realidade por cima de tudo
na superfície das rugosas laranjas do destino.
o que há é apenas um papel-carbono sob minha mão
neste instante de instantâneos imperfeitos
deitados fora com quem arremessa pela janela
bagos de um sonho sem retorno

 

 

 

 

 

 

BORDERLINE

meus olhos nos seus
equilibrisas espreitando
o espírito do mundo
rosto sereno
quarto de desordens
e o terraço aéreo
sobre pontes e postes
eu pensamento em você
espreitando dublês-de-corpo
você desprezando seus pares
excessivamente ímpar
cheia de demônios familiares
e overdoses de histórias
eu junto a você
ouvindo sons circularem
por nossos circuitos
mais íntimos
pudesse tocar delicado
seu ombro sombrio
e segredar nonsenses
talvez escrevivesse
rumores na pele
mais perto
da febre de zarpar
que do prazer do retorno

 

 

 

 

 

 

A PLENITUDE O VAZIO A VIDA

indizível vastidão na boca, vastidão
que seca a língua, racha os lábios
fura os dentes, suja a saliva. toca de palavras
esse vórtice da vida, deserto pleno do corpo
dos afectos e sensações, une-se aos povos
antípodas da pele, à espera de que alguém
os roube como os roubo. oco da fala:
gaguejo e tatibitate através de tudo
no mapa do mundo vazio de lugares
cruzo planícies com olhos fundos
recolho o alheio incompartilhável
viajo leve e acompanhado, levo ao lado
nomes próprios e suas fomes: camões
e a melancolia do império, pessoa e seus outros
hilda e seu riso de bicho. viajo, mas não transmigro
vou junto ao corpo que recusa abrigo
descanso e exige o vazio da partida; vou com ele
e escapo, afogo-me em vento. por isso
a boca sussurra vida como quem acaricia o ar
com navalha, e a suavidade da viagem é a mesma
da lâmina cortando o ar em dois que são três:
a plenitude de um vazio que se torna vida

 

 

 

 

 

 

JUVENÍLIA

adolescentes inventam alfabetos
coreografam saltos no paraíso de
seus corpos, experimentam
a sensação de respirar
uma linguagem sem script
a arte & a perícia, o mergulho
no riso & a louca contaminação da vida
no exercício diário de morder sonhos
no corpo-a-corpo abrindo atalhos
nas virilhas e ombros
na força em erguer pontes
em seus membros, eles queimam
sóis por dentro
para que as manhãs gritem
sua exterior mudez
sobre as delicadas superfícies do futuro
que só desejam o puro acontecimento







DESMEMÓRIA

alucinações
impertinentes
desconversas sobre
antepassados, amnésia
de paisagens para que o coração
despeje afeto e azul no instante que se perde
recuso saudade e melancolia de gabinete
tenho a língua de fogo lambendo as paredes da casa
a pesada carapaça do sonho diário
e te observo sempre ao me pôr de pé:
janela esquadrinhando
o perfil desfocado
pelo exterior

frente às
ilhas de utopia
planto desmemorias como quem
pisa nos limites do território estrangeiro
cultivo meus delicados monstros com as
afecções e as ficções infernais que trago no corpo
com uma erudição incompartilhável
na impessoalidade material das palavras
e experimento minha vocação
junto às lâmpadas mornas das ruas
mariposa a me aventurar
fora de casa

 

 

 

 

 

 

O DEMÔNIO DA INAPTIDÃO

farsante de naturezas mortas
nada cabe em meu enredo
além de histórias de histórias
manuscritos ilegais e
repasto de sabor-saber alheio
cândido infante de musas nuas
quis possuí-las e acabei
louco varrido na poeira
de inacabados livros, como fosse
sinistro artista, dono de ímpios motivos
— ladrão do fogo olímpico
entretanto — ai de mim! — usei-o
para acender meu cigarro
e queimar meus maus versos

 

 

 

 

 

 

PÓS-ESCRITO

nenhuma lição a tirar desta viagem
nenhuma impressão que caiba em livro
nenhuma anotação competente sobre minhas gavetas
nenhuma meditação sobre o cultivo de jardins
apenas esse esgotamento, esse cansaço
essa redundância de álcool e éter na varanda
onde troco a fumaça do cigarro pela vigília dos altos prédios
apenas essa repetição narcótica de tudo
definitivamente de agora em diante
comprometida com a incerteza do que experimento

 

 

 

(imagens ©image source, stockbyte e martin hospach)









Sandro Ornellas (Brasília-DF, 1971). Professor de literatura na Universidade Federal da Bahia, publicou o livro de poemas Simulações (Salvador: Prêmio Fundação Casa de Jorge Amado/Braskem para autores inéditos, 1998) e participou das antologias Concerto lírico a quinze vozes (Salvador: Aboio Livre, 2004) e Tanta poesia (Salvador: Banco Capital, 2006). É colaborador regular da revista online Verbo 21 de Cultura e Literatura e possui ensaios publicados em revistas acadêmicas especializadas. Vive em Salvador, Bahia, e escreve o Simulador de Vôo.