Genocídio

 

Ela matou os três. Chegou de saco cheio, depois de ter batido o carro numa lixeira, sujado o pára-lama e ralado a pintura da porta. Sentiu vontade de atropelar todos os que via pelas ruas, mas envergonhou-se de chamar tanta atenção publicamente. Ah, mas eles não escapavam! Já tinha agüentado demais, eram inúmeras contas para pagar, compras no supermercado e comida para fazer.

Matou todos com uma dose exageradamente generosa do seu veneno favorito, que já não lhe dava mais o mesmo prazer quando era usado em ratos.

Matou-os e saiu com passos leves, para espairecer na varanda. Na rua, alguns cachorros reviravam latas de lixo e, por um momento, até pensou em lhes dar aquelas carnes frescas, cujo sangue ainda estava quente.

Sentou-se na cadeira de balanço e pensou que, finalmente, amanhã poderia voltar para casa somente após o happy hour e não teria que arrumar mais a bagunça de brinquedos espalhados pela casa. Talvez, amanhã, fosse ao shopping e conseguisse parcelar aquele vestido.






Coloral

 

Quando ele foi embora, ela tratou logo de tirar todas as flores e cores da casa. Pintou todas as paredes de bege.

Aquelas flores só faziam cheirar a cemitério. Ficavam sobre o aparador, estáticas e cabisbaixas, velando toda a energia que com ele tinha se esvaído.

A casa fica sóbria assim, pálida. Ao contrário dela, entregue às alucinações, às pontas de viagens inacabadas e um alcoolismo anestesiador.

Coisas muito coloridas têm cara de criança ou de prostituta.

O estranho era que, mesmo com tudo em bege tão discreto, longe dele ela estava se sentindo um pouco dos dois.






Não durmo com Gildas

 

Fiquei por tantos anos vivendo histórias das minhas divas no cinema, que passei a desconfiar de que meus homens também dormiam com Gilda.

A neurose do ciúme acabou com todos os meus relacionamentos. Foram oito casamentos ao todo. Todos destruídos por brigas, discussões e ciúme. Fui até acusada de levar pra cama — eu mesma — outras mulheres.

Não posso negar que em minhas fantasias isso, de fato, acontecia. Tempo perdido.

Hoje, prefiro viver ao som de As time goes bye e dormir, todos os dias, ao lado de Humphrey Bogart.

Minha vida acontece no escuro, sem lanterninhas.




 

 

 

 






Ciumentos Paranóicos Anônimos

(da série "Mulheres sob Descontrole")

 

Meu nome é Berenice. Estou há dois dias sem segui-lo.

Terça feira, depois que saí daqui, não resisti e fui direto ao trabalho dele. Não entrei. De jeito nenhum eu faria isso! Fiquei olhando meio de longe, lá de fora. Ele saiu depois de uns 20 minutos e entrou no carro. Preparei-me. Óculos escuros e a peruca nova, loira, porque a ruiva ele já conhecia e estava muito manjada.

Fui atrás, queria ver.

Ele passou no supermercado e comprou algumas coisas que não consegui identificar. Tenho tanta raiva de mercados com sacolas coloridas! Passou na videolocadora e ficou quase uma hora lá dentro. E eu à espreita.

De repente apareceu na janela do meu carro:

De novo, Berê?

Tentei explicar que faria uma surpresa, mas foi em vão. Ele me jogou na cara todo o meu passado comprometedor, as arruaças que já fiz e as confusões que já criei. Pediu-me para procurar um especialista e disse até que sou psicótica. Ah, se eu fosse mesmo, matava aquele desgraçado.

Ele pensa que eu não sei que mantém a amante em algum desses flats universitários no centro da cidade. Um dia, vou descobrir.

Dessa vez ele até riu da minha cara. Comecei a achar isso estranho porque antes ele discutia querendo me convencer. Mas agora... nem tentar mentir? Aí tem! Tenho certeza. Pensando bem, analisando friamente, vejo que ele pode estar usando uma estratégia maligna para me enlouquecer. Pode estar se fazendo de desentendido para que eu, ingenuamente, pense que a louca, paranóica e ciumenta sou eu. É isso mesmo. Ninguém muda de comportamento assim, do nada.

É mais uma armadilha dessa farsa chamada casamento. Meu Deus! Como não percebi isso antes?

Mas hoje eu pego! Hoje dou o flagra. Ele que me aguarde!






Psicodrama



            Era notável.

Chegava pondo furos no chão. Scarpins elegantes lhe davam pose de mulher moderna.

Vestido preto sem mangas, deixando lhe escapar a tatuagem no ombro. A franja caindo aos olhos, o decote mal-alinhado.

Segredos.

Corredor sem fim, silencioso. Um vazio de dar calafrios.

Ela entrou na sala e o viu deitado. Estava vestido de madeira, o rosto pálido, ar sombrio.

Fechou os olhos e lembrou-se de quando o encontrou sob o corpo de outra mulher. A cama era deles.

Sentiu-se intrusa. O sapato apertando. As pessoas a encaravam pasmadas. Ela se aproximou do corpo, tocou-lhe a mão tão fria.

Where is our love, my babe?

 

Teve que sair apressada, arrancando os sapatos e pisando o chão gelado. As sirenes estavam cada vez mais perto.

A polícia sempre atrapalhava seus planos passionais.











Aspiração

  

São milhas de estrada

e o vento toma o peito,

desfaz o nó na garganta,

desembaraça os cabelos,

esvaziamento.

 

O Amor bagunça nosso hall.

Visitas reparam,

casa revirada

sujeiras escondidas em cantinhos

esquecidos.






Imaturidade

 

O mundo parece tão lúdico

que me faz ficar aqui,

parada de costas,

olhando lá trás

meus castelos de areia.

 

Um cavalo que roda

fazendo-me sem direção

em altos em baixos.

Presa às loucuras

dessa vida imposta.






Insaciável

 

Qual o limite

dessa tênue linha

que separa

A sorte.

A morte.

 

A quantos passos

posso garantir

livre arbítrio

sobre essa dúvida

do         do

      eee

ndo       ndo.

 

Ir.

Ficar.

A escolha me arde,

quando o que quero

é o mundo.






Assombração

 

Minhas sombras têm vida.

Está toda nelas

aquela que era minha,

que me fazia menina,

mexer o corpo

dançando,

abrir a boca

sorrindo,

fechar os olhos

amando.

 

Hoje, quando caminho

cabeça baixa,

melancólica,

elas ficam de chacota

zombaria.

Vão, mal-educadas

divertindo-se

atrás de mim.






Arrebatamento

 

Cada movimento no raso é um passo pro fundo.

A

  bai

      xe

          o olhar.

Dos pés à cabeça

ainda dá pra reparar nesse

pedaço de carne

inerte.

 

Cada passo pro fundo é um puxão em tuas pernas.

C a r r e g o   você

até

o

fundo

imundo

desse poço iminente.

Perigo

fantasiado

de flerte.






Depois do Possuir

 

Vem, traz teu mundo 

                       Que quero dele teus sonhos

                                                Fazer parte

                                                E mirar-te sem erro

                                                No destro

                                     Bala certeira

                       No teu armado

       Verbo transitivo

Amar

 

No gatilho

Te amo

primeiro

Bang! Bang!

depois.






(imagens ©medioimages / colin anderson)










Samantha Abreu (Londrina-PR, 1980). Vive em Londrina, onde é graduanda em Letras. Escreve o blogue Alta Intimidade e a série "Mulheres sob Descontrole". É viciada em fantasias, tem a cabeça povoada por imaginações, além de personalidades múltiplas e intimamente reveladas.