*

 

poeta dos atrasos. sempre.

se falo pela morte, ela morreu

e nem uma rabeca lhe concerne ao corpo.

um rastro de sertão que ainda revelo

sobrou das sobras caiadas das paredes.

o cerrado, olho só, carvão e gusa.

 

                     (matéria bruta do tempo)

 

 

 

  

 

 

1.

meu cavalo selvagem, meu morcego

rebuscam o sertão atávico.

quando aquilante da noite,

revivo a árvore sem escrúpulos de mim.

 

os corpos nutrem espaços. vertem ossos

que quebram meu estado breve.

 

de emoção vou refazer meus gonzos.

 

 

 

2.

quisera o aço de quirera, a quirera de aço

que ruboriza a face:

um poema que nutra a vida de carne.

seja breve meu estro. seja ralo e breve,

como breves e ralas as palavras avançam

sobre o corpo do povo.

 

o ar é puro manejo. não há vento

que esconda meu grito.

 

                                    (per augusto)

 

 

 

 

 

 

*

 

a chuva que me habita não é chuva,

é um quadrado oblongo de facetas.

a quina do meu lábio, cada fresta

há de conter o rasgo destas almas.

 

as almas que te habitam são tão seres

que posam mergulhar na tua alma?

acaso, se carregas, tens um olho

que sabe a múltipla face do meu rosto?

 

tentar pode ser mais. e se me levas

te traço incorporado, último dia.

 

    (adentro o verde cinza da manhã)

 

 

  

 

 

1.

temporal derrubou mais de duzentas palavras,

aquinhoou postes da mata com o chão,

tripudiou sanções da revés da terra.

águas no enxurrio trouxeram mamatas aos

bebedouros:

lama verteu fluida, massenta, lavada.

no campeamento, aves emborcadas.

e o prefeito prometeu dar tapa aos pingos.

 

 

 

2.

se as entranhas da terra têm vergonha

resta-lhes a ilusão de cidade.

falo por uns sentimentos desuivos, lobo aguado

de um sentimento cerrado.

galhos apodrecem na face

como frutas sabem as moitas de gente.

 

 

 

3.

desavos.

meu sobrenome cavalo trafega aguares.

 

               (aguaças transladam húmus)

 

 

 

 

 

 

1.

de belga sou pedaço.

e espanhol, índio mostardo.

inácios me baixaram barranco,

joaquinas me trouxeram húmus.

meu cerrado do olho

vasta gados,

uns lençóis de linho em cada mão.

pinicos foram hino

lavrado.

— meu sobrenome cavalo, um mar de feras.

 

 

 

2.

quando baixa a carabina

de palavras, fico solto das noites.

chapéu é forma de dizer sobrâncias do conhecido.

não me saberem pode ser defesa.

— sombras são defesas da morte. —

vó e mãe contaram-me um gado urucuia

de olhar torto e saudades: tudo morto.

os garimpos do avô trouxeram pedras

que ainda piso.

quando sou pedra e argila?

— esgares de rio no meu olho.

 

                 (uma morte dos tempos)

 

 

 

 

 

 

*

 

"rápida manhã, delírio louco.

saber-se é mortal, posto que é chama". (r.r.)

 

contar o rápido do corpo, uma cidade

de avencas, lírios, pedras, coisas poucas,

corpos e ruas, veias, projetadas

montanhas arrasadas, demagogos.

 

a veia do cartão, tão meu delírio,

carrega-me a cidade esfomeada

 

                       (tão meu delírio)

 

 

 

 

 

 

*

 

sou belo, rumoroso, azul e noite.

tão belo como o choque do cavalo

de pura sede bebido, água de fonte,

inesgotável luz, amor tremido.

 

— a pedra e o pó me fazem madrugada

 

                               (rumoroso azul)

 

 

 

 

 

 

*

 

se alma de montanhas, decrescer.

a avidez de ser noite fica pura

como puros ouvidos soam doces

se extirpado seu revés do tempo.

 

que almas velarão a tua voz?

que riscos cederão estes teus olhos?

 

de outro, se montanha, pura pedra,

chão, rasgo, lua, estado, capim podre,

armar-se de nuances agridoces

mais que ficar, dirá: arrefecer.

 

o nu do rosto, dente permanente

traz a vontade de manhã mais nua

que reverbera os caldos de uma boca.

a boca só, em si, atropelada,

carrega uma cidade como fosse

viver cada rua, cada nesga

de rua, cada poça d'alma.

 

                    (lhes atropelo a alma)

 

 

 

 

 

 

*

 

o tumulto do corpo pode ausências.

calar tem por demais, arrefecido

instante de manhã chamado vento.

uns mistérios, dizer o mais que sono

sem a palavra livre revelada.

 

quando uma carne concebe, intimamente,

uma outra carne rasura seu instante

mais breve de pedra. e saber

aquilatar é tudo, face o tempo.

 

que outros mais dizer irão, somente,

sabedorias se nem cabe a rouca

lamúria que no lábio sempre espera

pelo espaço de só ser lamúria

 

                  (o corpo pode ausências)

 

 

 

 

 

 

*

 

tantos inácios são, tantas joaquinas,

solteirões e loucos, batizados,

sem batismos outros, totais crismas,

corpos sem osso quase, quase irmãos

casados como dia e noite casam.

 

tantas mulheres, anciãs, tantas celinas,

de armas, punhos, dentes, tantas almas

vistas do céu como se fossem linho

tirado de 200 mil lençóis.

 

tantos pinicos, cavalos, boiadais,

éguas, potrancas, potros, crioulos

que são potros e éguas e cavalos

e sumorejam a terra com seu sangue.

 

mais outros sangues, tão malditas mãos,

outros que tantos, tais são desencontros

de ativar a boca vil de pólvora

e remeter seu hálito cinzento

contra a maça-de-peito de qualquer.

 

                                    (genealogia)

 

 

 

 

 

 

(o grito)

 

há um relato de voz naquela voz,

tão retorcida voz, toda ela espanto.

o corpo que é voz tem um esgar

que deixa de ser corpo e é só voz.

 

se munch se dissesse, rediria

a voz candente, noite de gravura,

que é gravura e voz que firma a tela.

 

intensos tão meandros destes traços

que num itálico do grito a fala sente

o homem ser só grito, sem mais homem.

 

 

 

[Do livro Matéria Bruta]

 

 

 
 
 
 

Romério Rômulo (Felixlândia/MG). É professor de Economia Política da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Poeta e editor, prefaciou e publicou com Sebastião Nunes a primeira edição assinada dos poemas eróticos de Bernardo Guimarães, O Elixir do Pajé (Dubolso, 1988), mais de 100 anos depois da edição original. Até então todas eram clandestinas. Publicou os livros de poesia Bené Para Flauta & Murilo (1990), a caixa Tempo Quando (4 livros em 2 volumes, 1996), Matéria Bruta (2006) e Per Augusto & Machina (1999), entre outros. É um dos fundadores do Instituto Cultural Carlos Scliar, com sede no Rio de Janeiro. Outros poemas podem ser lidos em seu blogue [ http://romerioromulo.wordpress.com ].

 

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[ imagem ©gail perry johnston ]